Antes que
me acusem de ter transformado as vozes d’O Ventríloquo num derramamento de
profundo pieguismo sentimental ou uma esparrela de tons, sobretons e
panegíricos dóceis, eu queria dizer que não se trata desse tipo de coisa.
A roda da
vida gira numa velocidade que não consigo medir. Na verdade, eu queria mesmo
era falar um pouco sobre o Joe Cocker desde que ele faleceu no dezembro
passado.
Mentira. Eu queria era falar
sobre o documentário/show Mad Dogs & Englishman
lançado originalmente como um LP duplo e nos cinemas como um filme, no ano de
1970. Eu queria abordar os músicos ali presentes, cuja trajetória já havia sido
travada pelo tempo, como, por exemplo, o saxofonista Bobby Keys que faleceu,
pouca gente sabe, alguns dias antes de Cocker e que no tal documentário, num
passeio chuvoso de carro pela mesma avenida em que Kennedy foi assassinado, em
Dallas, nos presenteia com um dos diálogos mais interessantes e pouco
explorados no filme: O abismo de gerações. Mesmo a solidão do Joe Cocker após
as apresentações, um misto de homem desprotegido, algumas frases e olhares
muito me chamaram atenção quando revi recentemente instigado, justamente, por
sua morte e pelas muitas homenagens que surgiram na Rede. Confesso que dele
possuo apenas a edição delux, em cd, do LP ao vivo da tal turnê e o
documentário. Para não soar mentiroso, tenho uma velha coletânea que comprei
ainda na graduação.
Parágrafo longo,
a conversa, a minha conversa se perdeu. A conversa sobre o documentário ficou
por aí, na mente.
O tempo foi se tornando escasso
no último mês e mais ainda nas últimas semanas. No entanto, li, quando “jogado”,
não sem delicadeza, na Rede, um texto que achei bem bacana no Para Ler Sem Olhar, intitulado Oliver Sacks de 5 a 7. Não que o que
relato aqui tenha referência direta ao texto do Viana, mas, me deu uma
liberdade a mais para sair um pouco da tentativa de ser profundo como ele que,
por exemplo, sempre acerta em seus textos por ali (aliás, faço aqui propaganda
daquele espaço). Me impressiona a regularidade e mesmo o nível intelectual do
que ele compartilha conosco que acompanhamos seus escritos naquele blog. Mesmo seus textos mais pessoais (não que eu ache ou fique nos achismos de pensar que existam textos que não são pessoais) são tão analíticos e profundos quanto os explicitamente voltados para análises políticas, econômicas, culturais, etc. Mas,
isso é outra história. Sendo assim, isso aqui, o hoje, é um misto de várias
coisas. Introdução longa.
Falarei sobre o Alexandre e sobre
o que do Alexandre me fez escrever aqui, mesmo que agora, na distância, eu
consiga, mal e porcamente, organizar as coincidências da vida que me fizeram dizer
o que digo.
Conheço, se
é que conheço, se é que conhecemos alguém, o Alexandre há quase dez anos.
Estudamos juntos durante algumas disciplinas obrigatórias no Mestrado que
cursamos na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Sempre me chamou atenção,
mais do que dos outros colegas, o grau de inteligência que ele apresentava em
seus comentários, suas críticas e a maneira como se colocava, sem medo, nos
debates que surgiam naquela disciplina. Ali se apresentava o que se
concretizaria, melhor, o que se concretizará no decorrer dos próximos anos: Uma
certa geração com seus 30 anos que tem pensado, agido, refletido, em algum
momento, sobre nossa sociedade no tempo e no espaço – próximo ou longe nesse
mesmo tempo e espaço. Ou seja, sem medo do peso arrogante que a palavra tomou,
uma nova geração de intelectuais que, de alguma maneira, tem atuado, por
exemplo, no espaço universitário.
Alexandre é
Professor de História Antiga na Universidade Federal Fluminense, foi aprovado
num certamente de grande concorrência na vaga gerada pela grande perda que foi a
morte do Ciro Flamarion Cardoso. Enfim, isso diz algo ou não diz nada. Diria
muito ou muito pouco. Isso nada interessa ou interessa muito. Pode ou não. A
questão não é essa. A coisa aqui é outra. Então, os meandros de sua carreira
universitária não nos importa muito. Importa, talvez, por exemplo, certa vez em
Salvador, sua simplicidade bebendo cerveja comigo madrugada adentro junto com
alguns orientandos meus e a boa impressão que ele deixou para os mesmos e a
confirmação do que eu sempre dizia e digo para os alunos que trabalham ao meu
lado com pesquisa: Os melhores aprendizados acontecem em momentos de mais puro
prazer intelectual: na mesa do bar, na boemia, na madrugada.
Há quase um
ano, me lembro dele me informando que ia ser pai. Na cautela racional que
sempre apresentou, avisou de forma taxativa: “só não divulga, pois sabe como é,
os primeiros meses são sempre complicados numa gestação”.
Tenho por característica quando alguém
me pede segredo, não informar nem mesmo a deus. Às vezes até esqueço o que me
contaram. Desde criança tenho esse problema ou virtude. Não sei explicar.
Seu filho
Gabriel nasceu com saúde, na mesma época ele foi aprovado em concurso público e a vida seguiu em passos largos, não sem dificuldades.
Novembro
passado, encontrei Alexandre num evento acadêmico no qual os dois fomos
convidados em nossa antiga instituição de formação para, além de avaliar
trabalhos de mestrandos e doutorandos em nossas áreas de especialização
temática, ministrarmos uma pequena palestra sobre o que vínhamos pesquisando em
nossas universidades. Evidentemente, os horários eram paralelos e não pudemos
nos assistir. Mas o que ficou desse encontro recente com meu amigo de época de
pós-graduação foi uma conversa pela manhã, antes das atividades se iniciarem, e
que guardo na memória com muito carinho e registro aqui com muito zelo e profunda
admiração.
Diferentemente
de todas as pessoas com quem já conversei que são pais recentes ou de primeira
viagem, ou pais há mais tempo, ou profundos defensores da paternidade/
maternidade, Alexandre respondeu minha pergunta educada de “como vai o moleque?”
com a naturalidade e simplicidade de que lhe são características: “Rapaz, o
moleque vai bem, cai pra baixo e pra cima. O que mais faz é cair. Mas está numa
fase muito legal de se reconhecer como gente. De se olhar no espelho e se
perceber”. Não sei por que cargas d’água nós entramos no tema “animal de
estimação”. Creio que fui eu, não sei, talvez, muito talvez mesmo, por me
sentir um tanto deslocado na coisa da coisa de “ser pai”. E sabendo que o
Alexandre antes de ser pai é dono de gato e cachorro, me senti próximo nesse
tema e puxei, associando ao Gabriel, como ele lidava com a presença dos bichos em casa com uma criança em franco crescimento físico e psicológico.
Alexandre
riu e contou as peripécias do rebento e sua relação com seus animais: “Tudo na
mais tenra ordem louca”. Confesso que às vezes me assusta muito sua
racionalidade, basta ler os seus textos-opiniões no seu mural do Facebook sobre
política e mesmo amenidades. Infelizmente, o Alexandre não possui um blog, mas
tudo lá é público, então vale a pena dar uma conferida, mas deixo aqui minha
reclamação formal: ia ser muito legal se o Alexandre tivesse um blog. Enfim,
com sua velha e conhecida maneira lúcida e racional de falar, mas sem perder o
maravilhoso tom de moleque de Campo Grande, aquela coisa que só quem conhece a
Zona Oeste sabe, bradou: “Porra, fico impressionado com a diferença gritante
entre cachorros e gatos. O primeiro come o próprio vômito, a merda, é sempre
bobo e fiel na sua dedicação quase triste ao dono. O gato não, o gato está ali,
sempre muito imponente, limpo, sagaz”. Evidente que as palavras transcritas são
chulas paráfrases que eu nem devia me aventurar a colocar entre aspas dos sons
que saíram da boca do Alexandre, mas, ele que me perdoe ou vá se foder, pois
O Ventríloquo é meu e não dele. Mas, foi mais ou menos esse o conteúdo de sua
fala.
Eu na minha
humildade e um certo ar constrangido fui comentar sobre o meu gato Gregório, o
apego que tenho por ele, como lido com o bichano, relatei um porre que tomei e quando bêbado sentado no chão da sala dei a chorar quando olhei para ele olhando para
mim. E dei a bradar: “Um dia morrerá, pobre Gregório. Um dia você morrerá! Puta
que pariu, você morrerá!”
Alexandre
riu. E ríamos. Quando perdi um pouco a vergonha, perguntei na mais juvenil
curiosidade: “Você não acha meio irracional minha atitude? Comecei a me achar
mais sensível a tudo à minha volta: pessoas, animais, água, planta...” E ele: “Não,
ao contrário. Ter um bicho de estimação me deixou muito racional. Ser pai é que
me deixou irracional!”. Aquilo me assustou pela severidade da frase e não pude silenciar,
afinal, eu e Alexandre temos a mesma idade e apenas meses nos separam e era a
primeira vez que eu ouvia um pai, ainda mais de primeira viagem, me dar uma
resposta que mais se aproximava do que eu pensava e tentava argumentar com
todos os “pais babões” – não que eu não vá ser um dia um “pai babão” também –,
mas que no capital simbólico de “serem pais” e “você não” sempre me
apunhalavam: “Você não entende. Você não é pai”. Alexandre explicou:
“Ter um bicho de estimação me deixou mais racional. Eu
sacrificaria meu animal se por ventura o visse sofrendo e sem a mínima solução,
isso seria o racional, o mais correto a se fazer. O Gabriel me deixou
irracional no sentido de que penso mais com o coração. Recentemente – ele
relatou um dos tombos do filho – ele caiu e bateu a cabeça. Fiquei um tanto
desesperado e eu e minha esposa ficamos na dúvida de fazer ou não uma
tomografia numa criança tão pequena e o excesso de radiação na cabeça do nosso
menino. Tivemos que buscar no fundo da mente uma racionalidade que nos
fizesse colocá-lo diante de um mínimo, porém, eminente tipo de risco. Fiquei
ligando constantemente para a pediatra, monitorando, ficando sem dormir. Ou
seja, parece racional isso, mas no fundo, não é tanto. Pois estávamos quase
neuróticos por causa do tombo”.
O evento iniciou, o evento
terminou. Nos sentamos os dois no Amarelinho, vendo quem ia e vinha, bebemos
uns muitos chopes, depois cada um foi para o seu lado: Eu fui beber mais chope
em Botafogo antes de pegar um voo no Santos Dumont, Alexandre voltou para a
rotina da paternidade.
Meu gato agora mesmo subiu na
minha perna, bateu com a pata no meu braço e miou. Me chama para algo que não
sei: deve ser para correr atrás dele, vê-lo comer, limpar sua caixa, não sei.
Não mio, não falo a língua dos gatos. Fico pensando que o Gabriel deva agora
estar andando, dando passo a passo, o Alexandre e sua esposa rindo, olhando,
observando. Logo ele falará nossa língua, xingará como o pai, defenderá suas próprias posições políticas, debaterá num mundo em que eu e o Alexandre em nossas aulas
lutamos para ser melhor. Me parece ser um bom pai. Me parece que ajudará a
educar ao lado de sua esposa um bom cidadão. Tudo me parece. Meu gato desistiu
e foi embora do meu escritório. Deitou na porta. Eu não faria isso com o meu
filho: acho que eu largaria tudo e ia ver o que ele queria.
Ontem ele
entrou em contato comigo via Facebook solicitando um e-mail de um professor.
Comentei sobre nossa conversa, a de novembro. Sobre esta de agora e sobre
tantas outras conversas. Rimos um pouco. Falei do impacto do que ele disse
naquele dia e que iria colocar isso no papel ou num papel metafórico. Ele riu. Eu
disse que muitas vezes ouço de conhecidos que são pais, recentes ou não, frases
do tipo: “Sua vida só terá sentido quando tiver um filho” ou “Sua vida terá um
objetivo maior.”. Sempre achei e continuo achando que minha vida tem um
objetivo desde que nasci, independente de ter ou não, ajudar ou não a por outra
vida no mundo que, sejamos sinceros, não é mais lá um mundo muito digno de ser
vivido. Comentei que muitas vezes eu achava piegas, apesar de entender todo o
amor envolto às crias, esse tipo de afirmação. Alexandre riu e disse, aqui o
cito ipsis litteris: “É piegas mesmo.
Eu acho que filho não dá sentido pra viver. Acho que dá sentido pra não morrer...
Que tu fica pensando: “Caralho, se eu morrer e esse filho da puta precisar de
mim?”."
Eu precisava
voltar ao trabalho, ele também. Nos despedimos. Pois a vida é, no fundo,
despedida mais do que chegada.
E acho que
o Gabriel aprenderá muito bem isso com os pais que tem. Seja bem vindo,
moleque, mas não esqueça o até!