sexta-feira, 28 de maio de 2021

Os diários publicados de Kurt Cobain (Editora Belas Letras, 2021)


 

Mesmo que pareça, isso não é uma resenha. Minha voz soa um tanto rouca – talvez pelo excesso de sorvete de menta com chocolate ou mesmo por, em meio a pandemia de COVID-19, lecionando remotamente do pequeno apartamento alugado, esquecer de beber água enquanto falo sobre História Medieval para docentes em formação. Ontem terminei após três dias as 591 páginas da edição em língua portuguesa publicada neste ano de 2021 pela Belas Letras, Editora de Caxias do Sul, RS, com tradução de Fernando Scoczynski Filho.
Intitulado “Kurt Cobain- Diários”, a leitura é pesada, afinal, são escritos retirados de diários. A organização é interessante, mesmo que, enquanto historiador de formação, eu esteja habituado com isso: de um lado os manuscritos – fotografados/escaneados/fotocopiados, como queiram – e do outro a tradução à nossa língua (não tenho conhecimento da edição original cujo título é “Journals”, certamente, seguiu essa linha). Não quero falar com você sobre conteúdo. Kurt foi um artista, mas acima de tudo: uma pessoa. Basta uma busca pela Internet e você poderá ter suas próprias conclusões sobre seu trabalho musical – se bom ou ruim – e, se se achar no direito, tecer suas conclusões vazias sobre a personalidade de um jovem de 27 anos que se suicidou com um tiro de espingarda no queixo na estufa de plantas de sua casa, em 1994. Eu ainda tinha 13 anos de idade e o show do Nirvana um pouco mais de um ano antes, no Hollywood Rock, no Rio de Janeiro, transmitido ao vivo por uma grande rede de TV, ainda era um forte impacto na minha cabeça. Não, não é um trocadilho com o impacto do projétil na cabeça do jovem Kurt. Nunca busquei fotos macabras da cena do suicídio e demorei muito para ler na íntegra sua carta final (que, FELIZMENTE, não está presente na publicação “Diários”.  O que não deixa de ter lógica, afinal, trata-se de uma carta de suicídio – não publiquem cartas de suicídio, a Sociedade de Psicologia agradece, abutres. Tais documentos só têm validade se manuseados – no meu ponto de vista – historicamente, sociologicamente, antropologicamente. Como me esquecer do que senti numa aula de História da antiga 7ª Série ginasial a carta-suicídio de Getúlio Vargas, a frase de efeito: “Saio da vida para entrar na história” me assombrou durante meses. Que ironia).
Por sinal, um parêntese, disse que sou historiador de formação, sim, é verdade e me veio na lembrança uma pichação que li a caminho da faculdade, não lembro o ano, deveria ser nos primeiros períodos, pois ainda ia de ônibus (depois meu pai me liberou o carro): “É melhor queimar de uma vez a se apagar aos poucos”. A frase que se tornou lendária, pois foi citada na carta deixada por Cobain, na verdade, é um trecho de uma canção de Neil Young, chamada “My My, Hey Hey (Out Of The Blue)”. Quem pichou o muro, ali, na altura da Praça do Canhão, em Realengo, Zona Oeste do Rio de Janeiro, onde está a Estação de Trem, o pequeno viaduto, um complexo de quarteis do Exército, casas de subúrbio e por onde passava meu ônibus Nova Iguaçu X Bangu, talvez não tivesse essa informação sobre ser uma citação. Eu não sabia. Soube quando no mesmo dia entrei no laboratório de informática da Universidade, acessei a Internet e “descobri”. Fim.
Como eu disse – acho que você ouviu bem –, terminei ontem o livro “Diários”. Escolho mal minhas leituras quando não estou bem psicologicamente. Já disse isso outras vezes, eu sei. Sou repetitivo. Acho que já conversamos sobre isso a respeito d’O Processo de Kafka.
Diários são materiais importantes. Eu tenho um diário. Não, O Ventríloquo não é um diário. Por mais que possa parecer que eu reparta com você minha vida, são vozes que sei imitar, vozes que sei colocar para fora sem que você perceba meus lábios se movendo. É assim desde 2007. Mas, eu tenho um diário. Escrevo a mão. A capa é linda. Ele foi feito artesanalmente pela Aline Viana, acho que ela tem uma conta no Instagram chamada Miçanga na Praia e vende esse material. A arte dele [o meu diário] é uma fotografia em sépia do Aldir Blanc com o João Bosco tomando cerveja num botequim no Rio de Janeiro e na contracapa os dois de pé, foto em preto e branco, na porta, acho, do mesmo botequim. Elas são do período de lançamento do Lp Galos de Briga (1976).
Ontem escrevi nesse diário. Apesar de ser um diário, não escrevo diariamente. Mas como havia terminado de ler o livro – do Kurt Cobain? Livro? – fiquei pensando nas últimas páginas escritas, sobre vício em heroína, sobre o que viria ser o último trabalho de estúdio do Nirvana, o Lp “In Utero” (1993), o impacto na mídia, sua ira etc. Antes de dormir, ouvi via streaming o material. “In Utero” de fato é um bom trabalho artístico, mistura bem o que foi o primeiro Lp “Bleach” (1989) – meu preferido – com o que alavancou a banda para o cenário mainstream, o conhecido “Nevermind” (1991). Tenho a discografia completa em Cd e alguns Lps da banda. Em Cd as versões são todas remasterizadas e Delux, comemorações de 20 anos de lançamentos. Dei as edições antigas para amigos.
No fundo, numa sexta-feira como essa, numa sexta-feira de final de maio, 28, nem sei por que estou conversando, falando. Talvez eu esteja meio zonzo ainda. Não sei. Continuo. Sigo.
Recordei-me, ou encaixou melhor, a biografia que li da banda tempos atrás, escrita por Michael Azerrad, intitulada “A História do Nirvana – ‘Come As You Are’”, tradução de Júlio de Mattos, Editora Madras, 2008 [original de novembro de 1993, nos Estados Unidos] e, também, o excelente documentário “Cobain: Montage of Heck” (2015).
Os antidepressivos foram fazendo efeito no meu corpo. Ainda com certo tempo de tirar os fones dos ouvidos após a audição de “In Utero”, fiz o download na plataforma de streaming do show “Live and Loud” gravado pelo Nirvana no dia 13 de dezembro de 1993 e cujo DVD minha mãe me presenteou na última vez que visitei o Rio de Janeiro, em 2019. Fiz meu exercício matinal no quarto onde tenho estudados nos últimos meses obras de Bach no piano da Roland e ouvi offline “Live and Loud” e só parei de pedalar quando a última canção “Endless, Nameless” terminou.
 
Ps. Como comprei o livro em pré-venda no site da Belas Letras, recebi algumas memorabilias como o manuscrito em folha separada da letra da canção “Lithium”. Música número um no meu setlist de fã do Nirvana e se o post scriptum pode ser mais longo, a bicicleta mais cara – no sentido monetário do termo – que tenho, dada de presente em outubro de 2019 pelos meus pais, foi batizada justamente com o nome da canção. Lítio é uma medicação ambulatorial para transtornos mentais, como bipolaridade, por exemplo. Infelizmente, em determinando momento da vida, tanto eu quanto minha mãe tivemos que ser tratados, não ao mesmo tempo, é claro, com essa medicação.

quinta-feira, 27 de maio de 2021

12 anos de Universidade Federal de Sergipe

Universidade Federal de Sergipe - Campus São Cristóvão




Dia 27 de maio de 2009, uma quarta-feira. Eu e mais umas duas pessoas aprovadas em concurso público de provas e títulos, assinávamos o Termo de Posse como Servidores Públicos Federais, novos docentes. Eu havia chegado no domingo, dia 24 de maio, meus pais me levaram ao Aeroporto Internacional Antônio Carlos Jobim, o Galeão. Meu pai me abraçou e apertou minhas mãos olhando com seus olhos verdes, querendo chorar, nos meus castanhos escuros já chorando. Minha mãe me abraçou e chorou, disse algo quase sussurrando no meu ouvido, que nunca me esqueci e mantenho firme, gostem ou não de mim. Ela disse assim: “Nunca esqueça de onde você partiu, não esqueça tudo o que você lutou para chegar aonde chegou, mas principalmente, de onde você é, quem você é, onde é sua casa, onde você nasceu.”
Nasci no dia 18 de julho de 1983, às 06:20 – em ponto – de uma tarde chuvosa e fria, em Mesquita, Primeiro Distrito do Munício de Nova Iguaçu. Parto normal e rápido. Meu pai trabalhava no comércio, em Madureira, numa rede chamada Papelaria América, entrou como auxiliar de serviços gerais e aos poucos chegou a Gerente de uma das filiais, passou por várias, Rua Uruguaiana, no Centro do Rio de Janeiro, Rua da Alfândega, Cascadura, Nilópolis... Minha mãe foi auxiliar de cozinha, trabalhou com faxina em casas de gente rica, oriunda ainda naquela época da aristocracia iguaçuana e que nos anos 90 migrou para a Barra da Tijuca, Recreio dos Bandeirantes... Morávamos num sítio enorme, as terras eram baratas em Mesquita nos finais dos anos 70 e início dos anos 80, a casa era “bem ajeitadinha”, segundo conta minha mãe. Era uma casa de estuque, o que chamamos aqui em Sergipe de “casa de taipa”. Não havia luz elétrica, uma pequena televisão de imagem preta e branca conectada numa bateria de carro não me chamava atenção. Eu gostava de ficar no chão da casa brincando com bonecos, trecos de todo o tipo, ou correr entre as plantações de cana, café, pés de jaca, manga espada e carlotinha. Havia muitos abacateiros também, além de araçá e goiaba (branca e vermelha), isso quem conta é meu pai. Essas minhas incursões me renderam quase morrer afogado numa fonte que havia ao lado de nossa casa, o que me salvou foi o instinto rápido de minha mãe e as várias vitórias-régias e um velho que não lembro o nome – depois ligo para o Rio de Janeiro para perguntar – que tinha um sítio vizinho ao nosso e capinava seu terreno no outro lado da cerca de arame. Eu tinha problemas de saúde: não peguei peito, logo não mamava leite materno, não comia direito e o ambiente era muito frio no inverno e no verão mesmo que o sol não fosse algo diretamente chocante, as muitas árvores e a mata atlântica oriunda da Serra do Mendanha que é todo um maciço que circunda a geografia entre Baixada Fluminense e Zona Oeste etc. tornava a necessidade de respirar complexa para mim. Na verdade, a geografia do Estado do Rio de Janeiro é fantástica, a própria capital tem um quê de charme medonho: uma cidade espremida entre as montanhas, morros e o mar. Com quase dois anos de idade completos, meus pais e tios (irmão do meu pai casado com a irmã da minha mãe) que também moravam no grande sítio, aonde também residiam minha avó paterna e seus dois filhos: um tio mais novo e uma tia doidona mais velha que até hoje não fala com o restante da família, compraram uma casa – mais abaixo da montanha. Mudaríamos então para o Morro da Chalet, n. 300, hoje no bairro Santa Terezinha, no agora munícipio de Mesquita. 12 anos. E ainda tenho sotaque. 12 anos e ainda sinto o cheiro das árvores no quintal da minha infância. 12 anos e não vejo muito sentido em tudo que fiz para chegar aonde cheguei, mesmo chegando. 12 anos e aprendi que assim como a força do amor da minha mãe e do meu pai, proporcionalmente, eu não sabia, quando via minha – já formada – enfermeira, trabalhando para o SUS, se doando, ganhando pouco, com o branco do uniforme com gotas de sangue que não eram seu – que o ódio, inveja, rancor, contra Servidores Públicos iria me fazer o mesmo mal que fez à ela, levando-a ao poço da depressão, aos remédios, psicólogos, psiquiatras. Sigo o mesmo caminho, mas ao menos ainda há a Prozac. Quando converso com minha mãe e questiono se não há um excesso de drama, sua firmeza e sutileza de quem nasceu em Marechal Hermes, subúrbio do Rio de Janeiro, viveu a infância em Cabuçu e Mesquita, ela me aconselha: 
se disserem que você está fazendo drama ou é fraco: Manda se foder”.
 

quinta-feira, 20 de maio de 2021

Certa manhã acordei de sonhos intranquilos


 
Chove. 06:00AM. Ponto. Estou quase terminando os diários do compositor e cantor estadunidense Kurt Cobain. 06:00AM em ponto, tive insônia. Para dormir ou tentar me acolher nos braços de Morfeu resolvo ouvir dois cds que me foram muito importantes, os dois do percussionista, compositor e cantor (e às vezes ator de cinema) pernambucano Otto: “Samba pra Burro” (1998) e “Certa manhã acordei de sonhos intranquilos” (2009).

Em meio a madrugada chuvosa, o ar-condicionado sempre em 20 ºC, enviei uma mensagem de texto compartilhando a canção “Bob”, faixa 1 do cd de 1998 para meu primo Gustavo Gonçalves Alvaro, no Rio de Janeiro. Prontamente, o que é raro, ele respondeu: “Caralho, moleque, estava ouvindo esse cd anteontem”. De fato, em meados da década de 2000, íamos muito, ele, eu e mais gente e pelas madrugadas nos sentávamos no fim da tarde na praia de Copacabana. Copacabana assim como a Avenida Paulista: nunca dorme. Nós também não dormíamos.


Clipe da música "Bob"


As músicas terminaram, o sono não veio. Os remédios devidamente tomados. Seria talvez alguma ansiedade? O impacto da letra manuscrita de Kurt Cobain em inglês escaneada de um lado e suas impressões angustiantes sobre si e o mundo postos em minha língua materna? Lembrei do cd de 2009 do Otto. Ainda de fones de ouvido o coloquei para tocar, como o ouviria mais tarde ou agora enquanto vocês me ouvem quando acabei de pedalar dentro de um quarto pequeno em minha bicicleta com pneus slicks aros 26. Caminho – não de um lado para o outro, não chego a tanto – inevitavelmente por corredores de minha própria mente e busco lá no fundo, não que eu não soubesse, que não fosse conduzido como numa hipnose, já que eu havia escutado recentemente, e ouço como fã de carteirinha, o programa do Canal Brasil e também transformado em podcast “O Som do Vinil” com o ex-baterista do Titãs e pesquisador musical Charles Gavin, sua conversa com o Otto sobre o cd de 2009 e o impacto que essa obra artística teve (não vejo outra expressão)... Enfim, o próprio Otto deixa claro, o título do disco faz referência ao livro “A metamorfose”, de Franz Kafka (Link do Episódio no Spotify).


Gosto muito da edição que tenho traduzida pelo Modesto Carone, cuja edição publicada pela Companhia das Letras data de 1997. Em sua 22ª reimpressão, de 2009, já amarela na estante e tirei a poeira para deixar como posfácio ao que vocês não ouvem as frases kafkianas iniciais do livro e a primeira vez que se ouve a voz de Gregor Samsa na narrativa (p. 7):

“Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranqüilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas uras como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo do qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha. Suas numerosas pernas, lastimavelmente finas em comparação com o volume do resto do corpo, tremulavam desamparadas diante dos seus olhos.

– O que aconteceu comigo? – pensou.

Não era um sonho. Seu quarto, um autêntico quarto humano, só que um pouco pequeno demais, permanecia calmo entre as quatro paredes bem conhecidas.”
 
Obs. Mantive tranquilo grafado como publicado na edição que tenho em mão, naquela altura o famoso acordo da língua portuguesa ainda não havia sido assinado. Linguiça era lingüiça, tanto quanto tranqüilos se mantinham os porcos que hoje continuam tranquilos.

terça-feira, 18 de maio de 2021

Salve o grande Jamelão (12 de maio de 1913 - 14 de junho de 2008)

Essa é curta, não lembro o ano, mas o Fernando Vanucci ainda era vivo e cobria o carnaval carioca pela Rede Globo de Televisão. Aliás, bons tempos, ele foi o âncora, a voz da TV na Sapucaí entre 1985 até 1999. Mas, vamos ao que interessa e, de certa maneira, fica a dica para quem pedala pelas zonas urbanas, na selva de concreto. Um jornalista, que não lembro o nome, estava na Marquês de Sapucaí, a Estação Primeira de Mangueira no aquecimento, ao grande intérprete, a entidade Jamelão, o repórter pergunta: "Jamelão, como é que tá preparado, 83 anos, tantos carnavais nas costas, para 'cantar o samba' - como você prefere - como é que está esse ano?". Responde o sambista: "Tá tudo certo. É a mesma coisa do ano passado. Não tem nada de novo aqui." O repórter querendo dar uma de esperto pra cima dele: "Tá tudo igual (...) mas o senhor preferiu não ficar lá embaixo, veio cá pra cima". O Jamelão sem se abater, finaliza: "Malandro é o gato que come peixe e num vai na praia". Por um frame é possível ver, o repórter se vira para a câmera e em graça diz: "É a sabedoria popular de Jamelão, cheio de expressão, que vai agora cantar o samba aqui na avenida. Voltamos com Fernando Vanucci".

Fica aí a história! E na versão Web/PC d'O Ventríloquo é possível ver o trecho do vídeo logo abaixo:



segunda-feira, 17 de maio de 2021

Crônica que ninguém lê (ou O retorno d'O Ventríloquo)


O que passa por sua cabeça enquanto pedala? Corre? Caminha? Faço escolhas ruins de releituras e leituras quando minha mente está passando por momentos em que insiste em me pregar peças. Talvez, a medicação, a genética, a química dentro de mim. De qualquer maneira, preciso ser rápido com a memória. Mais uma vez: talvez, pela medicação ou mesmo pela velhice (apesar de ainda estar em flor de idade), as drogas – devidamente receitadas pelo meu psiquiatra – mexem de diversas maneiras com meu subconsciente. Muitas vezes transformam minha jornada num transtorno, mesmo que haja benefício.
Disse hoje para alguém que uma boa literatura deve ter sua dose de drama. E não estava mentindo. Com o carro que não é meu, com a bicicleta que nem sei se é minha, com os movimentos que às vezes parecem mecânicos, fui pedalar na Orla da Atalaia, em Aracaju na hora do almoço. Único momento que tenho tido em tempo entre meus afazeres domésticos, intelectuais, burocráticos como: lavar a louça, dar ração ao Gregório, preparar aulas, ler livros e artigos, pensar nas orientações de Iniciação Científica e Mestrado, dar pareceres, prestar contas sobre meu pós-doutorado, organizar comprovantes financeiros comprovando que o dinheiro recebido e gasto pelo programa de mestrado foi empenhado corretamente. Insisto: faço más escolhas de leituras quando a vida não vai bem. Recentemente foi publicada uma edição bilíngue (inglês, nos manuscritos, e português) dos diários do compositor, guitarrista e cantor da banda estadunidense Nirvana, Kurt Cobain, que se suicidou com um tiro de espingarda aos 27 anos, em 1994. A edição é luxuosa, comprei na pré-venda no próprio site da editora, há um certo tempo, por isso ganhei umas memorabilias ou como queiram “souvenires” sobre o finado. Já estou quase terminando a leitura e é angustiante. Ponto. Não importa. O que passa por sua cabeça enquanto pedala?
Hoje, na hora do almoço, quando iniciei meu giro parti da Praia da Cinelândia sentido nova rótula do Farol da Marinha, o objetivo era dar algumas voltas no percurso: Rótula da Cinelândia – Nova Rótula do Farol, que fica praticamente na Praia dos Artistas. 




O exercício mais importante é manter minha mente pensando, praticamente conjugando verbos de ações. Daí as palavras e a narrativa do que ninguém lê se constrói na minha cabeça. Mas eu ouvia uma música constante no início, certamente, por hoje ser segunda-feira e eu ter aula de piano. Enquanto eu pedalava e, para ser sincero, isso ocorreu durante toda a primeira passagem sentido Farol da Marinha, eu só ouvia o “Prelude in C Major, BWV 846”, do compositor protestante luterano Johann Sebastian Bach.


Na versão web é possível ver e ouvir no vídeo acima a execução primorosa do Prelude in C Major

Há uma explicação plausível: tenho enrolado muito no estudo, principalmente nos antepenúltimo e penúltimo compassos. Ontem, estudei um pouco pela noite, então era de se esperar que eu ouvisse a música, visualizasse a partitura na minha frente. Logo me desgarrei quando vi à minha direita a Praia dos Artistas o mar e seu horizonte nublado e, claro, quando fiz a rótula do Farol a pancada de vento que tomei no meu peito. Não havia motivo para ficar pensando em figurinhas escritas entre linhas. Precisava focar em coisas mais interessantes: o cotidiano da Orla enquanto eu estava em movimento.

Um casal de mãos dadas aparentava tesão um pelo outro. Um homem na rede. Uma profissional do sexo me mandando um sinal, respondi que depois. Ela riu. Não viu meu sorriso de máscara. Os caras do famoso lava-jato. A polícia no furgão que fica de frente para o Eu (coração) Aracaju em letras coloridas. Os bares e restaurantes com um casal, um homem só e sua cerveja. A academia com corpos sendo definidos. Primeira volta. Foi-se o vento. A música que vocês ouvem queria voltar à minha mente. Disse que não! Não! Acelerei a cadência. Pesei a marcha, aproveitei o vácuo do vento. Um caminhão recolhia cocos. Garis, sem saber sua importância, faziam seu trabalho. Um homem tirava fotos nas estátuas: tirou com Tiradentes, ao lado havia Zumbi do Palmares, olhou para o chão, Tiradentes é mais fácil de ser reconhecido com sua corda no pescoço. Uma estátua de um negro guerreiro com uma lança em punho, não. Não tive tempo de perceber se ele tirou também uma foto com o líder do famoso quilombo. Eu tinha pressa. Um rapaz corria. Dois homens com máscara no queixo caminhavam. Uma moça segurava um sombreiro na porta de um restaurante vazio. Avistei uma coruja no calçadão, pouco antes, novamente da rótula do Farol da Marinha. A coruja – juro – olhava fixamente para uma pichação na parede oposta a nós dois, do outro lado da pista: “Fora Bozo”. Olhava atenta. A coruja é o símbolo da sabedoria. Mas, sempre há mais pombos cagando na nossa cabeça que corujas para admirarmos.