quinta-feira, 20 de maio de 2021

Certa manhã acordei de sonhos intranquilos


 
Chove. 06:00AM. Ponto. Estou quase terminando os diários do compositor e cantor estadunidense Kurt Cobain. 06:00AM em ponto, tive insônia. Para dormir ou tentar me acolher nos braços de Morfeu resolvo ouvir dois cds que me foram muito importantes, os dois do percussionista, compositor e cantor (e às vezes ator de cinema) pernambucano Otto: “Samba pra Burro” (1998) e “Certa manhã acordei de sonhos intranquilos” (2009).

Em meio a madrugada chuvosa, o ar-condicionado sempre em 20 ºC, enviei uma mensagem de texto compartilhando a canção “Bob”, faixa 1 do cd de 1998 para meu primo Gustavo Gonçalves Alvaro, no Rio de Janeiro. Prontamente, o que é raro, ele respondeu: “Caralho, moleque, estava ouvindo esse cd anteontem”. De fato, em meados da década de 2000, íamos muito, ele, eu e mais gente e pelas madrugadas nos sentávamos no fim da tarde na praia de Copacabana. Copacabana assim como a Avenida Paulista: nunca dorme. Nós também não dormíamos.


Clipe da música "Bob"


As músicas terminaram, o sono não veio. Os remédios devidamente tomados. Seria talvez alguma ansiedade? O impacto da letra manuscrita de Kurt Cobain em inglês escaneada de um lado e suas impressões angustiantes sobre si e o mundo postos em minha língua materna? Lembrei do cd de 2009 do Otto. Ainda de fones de ouvido o coloquei para tocar, como o ouviria mais tarde ou agora enquanto vocês me ouvem quando acabei de pedalar dentro de um quarto pequeno em minha bicicleta com pneus slicks aros 26. Caminho – não de um lado para o outro, não chego a tanto – inevitavelmente por corredores de minha própria mente e busco lá no fundo, não que eu não soubesse, que não fosse conduzido como numa hipnose, já que eu havia escutado recentemente, e ouço como fã de carteirinha, o programa do Canal Brasil e também transformado em podcast “O Som do Vinil” com o ex-baterista do Titãs e pesquisador musical Charles Gavin, sua conversa com o Otto sobre o cd de 2009 e o impacto que essa obra artística teve (não vejo outra expressão)... Enfim, o próprio Otto deixa claro, o título do disco faz referência ao livro “A metamorfose”, de Franz Kafka (Link do Episódio no Spotify).


Gosto muito da edição que tenho traduzida pelo Modesto Carone, cuja edição publicada pela Companhia das Letras data de 1997. Em sua 22ª reimpressão, de 2009, já amarela na estante e tirei a poeira para deixar como posfácio ao que vocês não ouvem as frases kafkianas iniciais do livro e a primeira vez que se ouve a voz de Gregor Samsa na narrativa (p. 7):

“Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranqüilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas uras como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo do qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha. Suas numerosas pernas, lastimavelmente finas em comparação com o volume do resto do corpo, tremulavam desamparadas diante dos seus olhos.

– O que aconteceu comigo? – pensou.

Não era um sonho. Seu quarto, um autêntico quarto humano, só que um pouco pequeno demais, permanecia calmo entre as quatro paredes bem conhecidas.”
 
Obs. Mantive tranquilo grafado como publicado na edição que tenho em mão, naquela altura o famoso acordo da língua portuguesa ainda não havia sido assinado. Linguiça era lingüiça, tanto quanto tranqüilos se mantinham os porcos que hoje continuam tranquilos.

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