quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

04/01/2024

 

Tomei uma dessas pílulas para ansiedade, aquelas fitoterápicas. Não acho que funcione plenamente, além do mais, o café que estou passando prejudicará seu efeito. De tempos em tempos percebo que me distancio mais e mais do mundo lá fora. Desci para descartar o lixo, dois grandes sacos, subi dois lances de escada com o vizinho de porta e não lhe dei boa tarde, não o saudei com os olhos, não sorri: senti uma alegria enorme e não me sujeitar a tais gestos de conduta social.

Não sei ao certo – estou sem ânimo ou curiosidade para verificar pelas receitas que guardei ao fim de cada consulta – se foram dois ou três anos que eu engolia pílulas e mais pílulas disso e daquilo outro: para dormir. Para acordar. Para me manter acordado. Para sorrir. Para dormir...

Os lençóis estão na máquina de lavar que entre uma pausa e outra se move com sons ritmados. Até que nesse dia inteiro de calor um leve vento está entrando pela janela da sala. Aqui é tudo tão minúsculo, talvez esse amenize a solidão que eu procuro.

Leio. Ler é algo bom. Não por coincidência acabei de reler um dos livros do Fonseca, um de 2003. Ler sem obrigação é um prazer que quase não me dou mais – e me dou muitos poucos prazeres nos últimos anos. Ontem fui obrigado a ler um texto. É ruim ler por obrigação, tanto quanto nos obrigamos a escrever. Não posso deixar o café esfriar.

quarta-feira, 30 de agosto de 2023

A vida é saudade...


 

A roupa no varal, o sol da manhã, o vento mexendo as folhas das árvores num quintal tão longe... No fundo a gente vive de saudade. Conversamos solitariamente com umas sombras que se impõem num chão de terra ou asfalto.

Chego a pensar que até o cheiro de alguma coisa ativa uma memória de infância ou da semana passada. Pois de tudo na vida, algo que não se ensina é sentir saudade. A gente sente e fim.

Se vejo uma criança correndo ou chorando, me vejo naquela criança chorando ou sorrindo. Acho que ando até chorando demais. São lembranças velhas misturadas com coisas antigas. Quando alguém me conta uma história, uma história só sua, me pego marejando meus olhos ou desviando o olhar para baixo, assoviando para cima. A questão é que ninguém ensina a gente a sentir saudade. Você já veio para o mundo com esse sentimento.

Mesmo que não saiba explicar direito, sente falta do útero, sente falta da pipoca doce naquele começo de beco do calçadão movimentado. Sente até um desassossego ao se dar conta que o barulho do trem urbano te comove.



Mas acho que as manhãs de sábado são mais sofríveis na memória – talvez memória seja um bom bocado de saudade – pois às vezes me vejo imaginando, lá longe, o que eu estaria fazendo: olhando para a cidade lá embaixo? Descendo para ir ao Centro bater perna naquele sol de inverno? Ou simplesmente olhar os cachorros deitados? Não sei.

Domingo também não me vale muito, é tão angustiante quanto. Fica mais pesado. Se saudade é um pouco de solidão, domingo prevê que seguirei sozinho. No fundo, a gente é saudade. 


terça-feira, 11 de janeiro de 2022

Sobre o suicídio de Souza Paiol

Há tempos ele escreveu um poema, desses despretensiosos de quem acha que é poeta e no fundo é mesmo, porque todo mundo é poeta, treinador de time de futebol e conhecedor de doença. Na mesa de um bar, dos poucos bares em que eu ainda o via, nem bebendo, nem falando, só, ele só lá no canto com a mesma cara pro nada, ele me viu. Ele viu que eu o via. E o vi sorri de canto de boca um sorriso que há tempos eu também não o via dar.

Não era de declamar poemas, acho que no fundo era timidez ou não gostava mesmo. Só uma vez que me lembro dele se expondo, declamando no Castelinho do Flamengo num sarau, acho que num sábado primaveril, bonito até, mas pelo bem da verdade do que digo aqui, nem poema era, estava mais para versos em prosa ou uma prosa poética, sei lá. Mas nesse dia eu vi com esses olhos já meio embaçados pela idade.

Nesse dia do bar, do sorriso que andava já há muito tempo escasso, ele declamou, mas veio em minha direção, eu também estava só, mas não por necessidade como ele, eu estava pela ocasião. Cumprimentou-me com o jeito de sempre – o que não mudava – um sorriso largo, cheio de dentes, uns dentes brancos, meio pra frente. Era um sorriso que você dava sua mão direita em defender que ali estava um homem feliz. A famosa frase do poeta Maiakóvski – “Dizem, que em algum lugar, parece que no Brasil, existe um homem feliz” – seria a mais pura verdade, eu diria com firmeza que o russo o viu antes de partir dessa para o não sei o que!

Mas era só o sorriso. Uma dessas máscaras que a gente mal decifra, como aqueles quadros que de longe dão um entender e de perto são borrões. Acho que ele era isso, ou pelo menos o seu sorriso, sorrindo, fosse de longe ou de perto, formava uma paisagem ampla de um lago, de crianças felizes, de esperança, mas quando se olhava com atenção, com calma, tempo – tudo que não havia a ninguém – seria possível perceber que aquele sorriso era uma grande mancha de vários pigmentos entre angústia, dor interna, confusão, silêncio.

Mas veio até mim. Na mão esquerda uma folha de papel de caderno de escola, um poema manuscrito com esferográfica azul. Amenidades e eu curioso para ler ou ouvir o poema – ele percebeu.

Ofereci um trago da cerveja, ameacei pedir um copo, disse que não, era coisa rápida, era madrugada e já estava na sua hora, disse com voz rouca, decidida, porém, sem raiva ou coisa do tipo. Uma voz meio sensação de bala de tamarindo. Você me entende? Alguma vez chupou bala de tamarindo? Saberia a sensação da metáfora.

 Parecia que as palavras estavam contadas, como o tempo da gente é contado em segundos, minutos, horas, dias, semanas e anos. Explicou que era um poema antigo, de 2010, escrito numa madrugada, que andou mexendo nas caixas velhas, na papelada amarelada e que encontrou. Revirou o computador, procurou pastas, em contas de e-mail e não encontrou digitado no editor de texto, queria um favor.

Não entendi direito naquele momento. Mas, aceitei digitar o poema e disse sorrindo depois de sorver o gole da cerveja sobre a mesa que naquele mesmo dia, mais tarde, depois do almoço, eu o entregaria de volta o manuscrito. Não disse nada além de obrigado, apertou firme minha mão, numa firmeza tão contundente que meus dedos molhados pelo suor do copo quase se transformaram na sua. Levantou-se, olhou para trás e deu o mesmo sorriso aberto. Pensei: tudo vai bem, ele está estável nessa montanha russa em que o mundo vive já faz uns anos.

Não entendi direito naquele momento, não me culpo. Ninguém pode prever.

Só encontraram seu corpo, putrefato – coisa triste – uma semana depois de se encher de tudo que é porcaria até não acordar mais. Fico pensando se já não fazia tempos que ele não caminhava entre nós. Mas se não entendi antes, não será agora que entenderei. Segue o poema, exatamente como no manuscrito entregue naquele ano de 2022, um poema de doze anos atrás:


O suicídio de Souza Paiol
 
Já é madrugada, mais uma madrugada
Pego o isqueiro e acendo um cigarro inexistente
Enxergo a fumaça esbranquiçada
Penso no ontem
Pois do amanhã nada sei
Fortuna é um bem que não quero
Um pássaro emite seu som em algum lugar do escuro
Poucos carros passam na Avenida Adélia Franco
Penso em me perguntar quem foi ela um dia
Em algum lugar do mundo eu estou
Sozinho
Se olho para o lado
Vejo Alain Delon caído
Um morto na capa de um LP
Uma foto é uma representação quase precisa
Uma lata de Guaraná Jesus e um sorriso
I’ve got a feeling ecoa no meu ouvido bom
“Todo mundo teve um bom ano...”
É isso que diremos
É isso que esperamos
Mais uma canção dos Beatles
O sonho de mais uma canção
Aquela que não conhecemos
Pois se São Miguel tivesse mesmo matado o dragão
Se São Jorge pisasse na lua
Eu faria agora minha oração antes de dormir
Mais um avião desce no aeroporto Santa Maria
São Sebastião flechado me feche os olhos
Eu quero dormir
Já é madrugada, mais uma madrugada
Uma mesa sem porta retratos
Uma bela canção de amor
Já não passa um carro
O pássaro foi tragado pelo escuro
Todos os santos levaram o fluído do isqueiro
Souza Paiol se matou.
 
27 de fevereiro de 2010 – 01:28 AM