terça-feira, 11 de janeiro de 2022

Sobre o suicídio de Souza Paiol

Há tempos ele escreveu um poema, desses despretensiosos de quem acha que é poeta e no fundo é mesmo, porque todo mundo é poeta, treinador de time de futebol e conhecedor de doença. Na mesa de um bar, dos poucos bares em que eu ainda o via, nem bebendo, nem falando, só, ele só lá no canto com a mesma cara pro nada, ele me viu. Ele viu que eu o via. E o vi sorri de canto de boca um sorriso que há tempos eu também não o via dar.

Não era de declamar poemas, acho que no fundo era timidez ou não gostava mesmo. Só uma vez que me lembro dele se expondo, declamando no Castelinho do Flamengo num sarau, acho que num sábado primaveril, bonito até, mas pelo bem da verdade do que digo aqui, nem poema era, estava mais para versos em prosa ou uma prosa poética, sei lá. Mas nesse dia eu vi com esses olhos já meio embaçados pela idade.

Nesse dia do bar, do sorriso que andava já há muito tempo escasso, ele declamou, mas veio em minha direção, eu também estava só, mas não por necessidade como ele, eu estava pela ocasião. Cumprimentou-me com o jeito de sempre – o que não mudava – um sorriso largo, cheio de dentes, uns dentes brancos, meio pra frente. Era um sorriso que você dava sua mão direita em defender que ali estava um homem feliz. A famosa frase do poeta Maiakóvski – “Dizem, que em algum lugar, parece que no Brasil, existe um homem feliz” – seria a mais pura verdade, eu diria com firmeza que o russo o viu antes de partir dessa para o não sei o que!

Mas era só o sorriso. Uma dessas máscaras que a gente mal decifra, como aqueles quadros que de longe dão um entender e de perto são borrões. Acho que ele era isso, ou pelo menos o seu sorriso, sorrindo, fosse de longe ou de perto, formava uma paisagem ampla de um lago, de crianças felizes, de esperança, mas quando se olhava com atenção, com calma, tempo – tudo que não havia a ninguém – seria possível perceber que aquele sorriso era uma grande mancha de vários pigmentos entre angústia, dor interna, confusão, silêncio.

Mas veio até mim. Na mão esquerda uma folha de papel de caderno de escola, um poema manuscrito com esferográfica azul. Amenidades e eu curioso para ler ou ouvir o poema – ele percebeu.

Ofereci um trago da cerveja, ameacei pedir um copo, disse que não, era coisa rápida, era madrugada e já estava na sua hora, disse com voz rouca, decidida, porém, sem raiva ou coisa do tipo. Uma voz meio sensação de bala de tamarindo. Você me entende? Alguma vez chupou bala de tamarindo? Saberia a sensação da metáfora.

 Parecia que as palavras estavam contadas, como o tempo da gente é contado em segundos, minutos, horas, dias, semanas e anos. Explicou que era um poema antigo, de 2010, escrito numa madrugada, que andou mexendo nas caixas velhas, na papelada amarelada e que encontrou. Revirou o computador, procurou pastas, em contas de e-mail e não encontrou digitado no editor de texto, queria um favor.

Não entendi direito naquele momento. Mas, aceitei digitar o poema e disse sorrindo depois de sorver o gole da cerveja sobre a mesa que naquele mesmo dia, mais tarde, depois do almoço, eu o entregaria de volta o manuscrito. Não disse nada além de obrigado, apertou firme minha mão, numa firmeza tão contundente que meus dedos molhados pelo suor do copo quase se transformaram na sua. Levantou-se, olhou para trás e deu o mesmo sorriso aberto. Pensei: tudo vai bem, ele está estável nessa montanha russa em que o mundo vive já faz uns anos.

Não entendi direito naquele momento, não me culpo. Ninguém pode prever.

Só encontraram seu corpo, putrefato – coisa triste – uma semana depois de se encher de tudo que é porcaria até não acordar mais. Fico pensando se já não fazia tempos que ele não caminhava entre nós. Mas se não entendi antes, não será agora que entenderei. Segue o poema, exatamente como no manuscrito entregue naquele ano de 2022, um poema de doze anos atrás:


O suicídio de Souza Paiol
 
Já é madrugada, mais uma madrugada
Pego o isqueiro e acendo um cigarro inexistente
Enxergo a fumaça esbranquiçada
Penso no ontem
Pois do amanhã nada sei
Fortuna é um bem que não quero
Um pássaro emite seu som em algum lugar do escuro
Poucos carros passam na Avenida Adélia Franco
Penso em me perguntar quem foi ela um dia
Em algum lugar do mundo eu estou
Sozinho
Se olho para o lado
Vejo Alain Delon caído
Um morto na capa de um LP
Uma foto é uma representação quase precisa
Uma lata de Guaraná Jesus e um sorriso
I’ve got a feeling ecoa no meu ouvido bom
“Todo mundo teve um bom ano...”
É isso que diremos
É isso que esperamos
Mais uma canção dos Beatles
O sonho de mais uma canção
Aquela que não conhecemos
Pois se São Miguel tivesse mesmo matado o dragão
Se São Jorge pisasse na lua
Eu faria agora minha oração antes de dormir
Mais um avião desce no aeroporto Santa Maria
São Sebastião flechado me feche os olhos
Eu quero dormir
Já é madrugada, mais uma madrugada
Uma mesa sem porta retratos
Uma bela canção de amor
Já não passa um carro
O pássaro foi tragado pelo escuro
Todos os santos levaram o fluído do isqueiro
Souza Paiol se matou.
 
27 de fevereiro de 2010 – 01:28 AM

segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

Entendi o que é um ABC

 


Não sei bem se você me ouve. Mas acho que mais doloroso é ouvir no silêncio a própria voz e essa ressoa há tempos. De fato, faz muito tempo que essa conversa está guardada na caixa do peito. Não sei se pelo próprio tempo, o desalinho, desânimo, o tal do silêncio me fez ficar mudo e só. Você está aí? Você ainda está aí?

São muitas dores, eu sei. E eu ouço o som da minha voz ou mesmo o silêncio se quebrando com a caneca de pedra sabão mineiro se enchendo com a água do filtro de barro para que eu tome minha medicação. Mas não importo para ninguém. É o que o cérebro vai pregando como peça de pastor levando suas ovelhas ao matadouro e todo mundo um dia vai para o matadouro. Não é?

Continuo. Ouça mais um pouquinho, fugi do assunto, mas foi coisa rápida.

Hoje é dia 03 de janeiro de 2022, uma segunda-feira. Hoje, na verdade, num sábado de 1898, nascia em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Luís Carlos Prestes. A citação ao 03 de janeiro de hoje e ao de 1898 diz muito sobre essa jornada de ler cronologicamente – como temos conversado – a obra de Jorge Amado. Já uns dias iniciei O Cavaleiro da Esperança: vida de Luís Carlos Prestes, mas não parei para te contar as impressões, os sentimentos que tive ao ler o livro que o antecede na obra do baiano de Itabuna: ABC de Castro Alves.

Publicado originalmente em 1941 e retomado na série Coleção Jorge Amado da Companhia das Letras, com posfácio de Domício Proença Filho, li a edição de 2010 da editora.

Do escrito de Proença Filho entendi enfim o que é um abc, apesar de eu não ser tão ignorante, mas mesmo lendo sempre o posfácio como deve ser lido – no final – o ritmo da escrita de Jorge Amado era da mais pura louvação ao poeta baiano, seu conterrâneo. A voz dos escravos. A explicação, a exposição, de Domício Proença Filho ajudou e evidenciou mais o sentimento que me batia entre angústia e admiração.

 O que Jorge Amado, na sua cadência, na conversa com a sua negra, a sua amiga – companheira – nas areias, contando a grandeza, os feitos do poeta, humanizando Castro Alves, nos leva a tal ponto da gente se dar conta – sabe? – e se lembrar que é sempre bom perguntar-se: O que é uma biografia de verdade?

Amado usa notas de fim – adianto que no livro sobre Luís Carlos Prestes o mesmo acontece – dá opiniões. Ele consegue romancear uma vida, mas não são todas as vidas – a minha e a tua – grandes romances escritos ao acaso pela pena de algo maior?

Sinto angústia. Pelo menos sinto. E sentir alguma coisa já é algo, afinal, como num trecho do ABC: “Já que que a vida esmagava assim tantos homens e tantos sentimentos, já que ela era tão feia e tão errada, então ela não a queria, não se misturaria com ela, fugiria. A morte é também, amiga, bela como a mais bela das mulheres quando se tem medo da vida, de encará-la face a face, quando se pensa que o destino do homem é a desgraça. Para os que assim pensam, as estrelas do céu são um chamado, a lua é um convite, a morte é a suprema amante, só ela pode dar aos homens os bens que a vida não possui. E eles caminhas para a morte de passo firme e decidido porque vão para uma festa, não têm nada que os prenda à vida, estão desligados dos demais homens” (p. 47).

Jorge Amado canta em cada letra do alfabeto os feitos do poeta, insere um cotidiano em que a verdade mais pura é a dor que o passado não pode esquecer: a ausência da Liberdade.

E ele lembra bem, encerro assim, com uma voz que não é minha, mas que é do grande que segue amado: “Nessas noites oleosas da Bahia, quando do céu desce um infinito mistério, quando do mar chegam as canções mais doces de Iemanjá, quando da terra vem um cheiro poderoso de flores várias, nessas noites, amiga, vêm do mais escondido da cidade, de trás dos morros, do mais profundo da noite, ninguém sabe mesmo de onde, esses sons que do cais nós ouvimos de coração saltando no peito. São os baticuns das macumbas, são os candomblés batendo em honra dos santos que tu amas. De Oxóssi, meu santo, de Omolu, o deus que tanto temes, de Xangô e de Ogum. São atabaques deixando que a música role sobre a cidade e a evolva e a transporte para uma atmosfera de sonho. Nós sabemos, amiga, que lá, onde tantas vezes estivemos, naqueles escondidos lugares onde nossos irmãos negros festejam seus pobres deuses, negras dançam vestidas com os mais lindos vestidos de mundo. Sabemos também que a qualquer momento a caravana policial pode invadir o terreiro da macumba e levar os sacerdotes, os assistentes e os santos. Sabemos que é sempre uma aventura um baticum de candomblé. Que dos negros nem os deuses são livres para dançar na Terra. Mas que nem por isso deixa de, sobre as ladeiras da Bahia, ressoar a trágica voz dos atabaques, que nem por isso deixam de ser cantadas as canções de Iemanjá, nossa mãe, dona do mar e do nosso destino (...). Antes, negra, era ainda pior. No tempo do poeta Castro Alves, no tempo da sua infância e também depois, os negros eram escravos comprados em leilões, mercadoria que se vendia, trocava e explorava. E em troca de tudo que eles deram ao branco, sua força, seu suor, suas mulheres e filhas, a maciez da sua fala que adoçou a nossa fala, sua liberdade, o branco lhe quis dar apenas, além do chicote, os deuses que possuía. Mas deuses os negros traziam da África, os deuses da floresta e do deserto. E continuaram fiéis aos seus deuses por mais que rezassem aos deuses dos seus donos. E cavaram no subsolo das cidades templos que o homem branco não podia atingir” (p. 62-63).