Há tempos ele escreveu um poema, desses despretensiosos de quem acha que é poeta e no fundo é mesmo, porque todo mundo é poeta, treinador de time de futebol e conhecedor de doença. Na mesa de um bar, dos poucos bares em que eu ainda o via, nem bebendo, nem falando, só, ele só lá no canto com a mesma cara pro nada, ele me viu. Ele viu que eu o via. E o vi sorri de canto de boca um sorriso que há tempos eu também não o via dar.
Não
era de declamar poemas, acho que no fundo era timidez ou não gostava mesmo. Só
uma vez que me lembro dele se expondo, declamando no Castelinho do Flamengo num
sarau, acho que num sábado primaveril, bonito até, mas pelo bem da verdade do
que digo aqui, nem poema era, estava mais para versos em prosa ou uma prosa poética,
sei lá. Mas nesse dia eu vi com esses olhos já meio embaçados pela idade.
Nesse
dia do bar, do sorriso que andava já há muito tempo escasso, ele declamou, mas
veio em minha direção, eu também estava só, mas não por necessidade como ele,
eu estava pela ocasião. Cumprimentou-me com o jeito de sempre – o que não
mudava – um sorriso largo, cheio de dentes, uns dentes brancos, meio pra frente.
Era um sorriso que você dava sua mão direita em defender que ali estava um
homem feliz. A famosa frase do poeta Maiakóvski – “Dizem, que em algum lugar,
parece que no Brasil, existe um homem feliz” – seria a mais pura verdade, eu
diria com firmeza que o russo o viu antes de partir dessa para o não sei o que!
Mas
era só o sorriso. Uma dessas máscaras que a gente mal decifra, como aqueles
quadros que de longe dão um entender e de perto são borrões. Acho que ele era
isso, ou pelo menos o seu sorriso, sorrindo, fosse de longe ou de perto,
formava uma paisagem ampla de um lago, de crianças felizes, de esperança, mas quando
se olhava com atenção, com calma, tempo – tudo que não havia a ninguém – seria
possível perceber que aquele sorriso era uma grande mancha de vários pigmentos
entre angústia, dor interna, confusão, silêncio.
Mas
veio até mim. Na mão esquerda uma folha de papel de caderno de escola, um poema
manuscrito com esferográfica azul. Amenidades e eu curioso para ler ou ouvir o
poema – ele percebeu.
Ofereci
um trago da cerveja, ameacei pedir um copo, disse que não, era coisa rápida, era
madrugada e já estava na sua hora, disse com voz rouca, decidida, porém, sem
raiva ou coisa do tipo. Uma voz meio sensação de bala de tamarindo. Você me
entende? Alguma vez chupou bala de tamarindo? Saberia a sensação da metáfora.
Parecia que as palavras estavam contadas, como
o tempo da gente é contado em segundos, minutos, horas, dias, semanas e anos. Explicou
que era um poema antigo, de 2010, escrito numa madrugada, que andou mexendo nas
caixas velhas, na papelada amarelada e que encontrou. Revirou o computador,
procurou pastas, em contas de e-mail e não encontrou digitado no editor de
texto, queria um favor.
Não
entendi direito naquele momento. Mas, aceitei digitar o poema e disse sorrindo
depois de sorver o gole da cerveja sobre a mesa que naquele mesmo dia, mais
tarde, depois do almoço, eu o entregaria de volta o manuscrito. Não disse nada além
de obrigado, apertou firme minha mão, numa firmeza tão contundente que meus
dedos molhados pelo suor do copo quase se transformaram na sua. Levantou-se,
olhou para trás e deu o mesmo sorriso aberto. Pensei: tudo vai bem, ele está
estável nessa montanha russa em que o mundo vive já faz uns anos.
Não
entendi direito naquele momento, não me culpo. Ninguém pode prever.
Só
encontraram seu corpo, putrefato – coisa triste – uma semana depois de se
encher de tudo que é porcaria até não acordar mais. Fico pensando se já não
fazia tempos que ele não caminhava entre nós. Mas se não entendi antes, não
será agora que entenderei. Segue o poema, exatamente como no manuscrito
entregue naquele ano de 2022, um poema de doze anos atrás:
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