quarta-feira, 27 de outubro de 2021

“Porque a revolução é uma pátria e uma família” – Em Capitães de Areia (1937)

 


“A temática das crianças que vivem nas
ruas continua bastante atual. Para escrever
Capitães da Areia, Jorge Amado foi dormir no
trapiche com os meninos. Isso ajuda a explicar
a riqueza de detalhes, o olhar de dentro e a
empatia que estão presentes na história.”
Zélia Gattai Amado


Eis que estou aqui. Pois fugir de si mesmo quando nos olhamos no espelho é impossível. Mas eu sentia que faltava alguma coisa e mesmo que eu já não veja sentido, ao menos que eu me esforce para dar sentido ao que comecei. Já conversei com você há tempos sobre Capitães da Areia, publicado originalmente por Jorge Amado em 1937, livro que sucede Mar Morto e antecede ABC de Castro Alves. O que eu te disse, continua valendo, porém, veja bem, se me prontifiquei a dar sentido à coisa toda, devo dar sentido. Faltava algo. E em meio aos turbilhões da minha mente, como vastos cachos de uma cabeleira esparsa ou mar de viração: encontrei.

Já estava lá há semanas. Um quê qualquer de presságio não me deixou fazer o que eu queria. E eu gosto de liberdade. Faltava a foto da capa do livro na edição de 2008, com posfácio de Milton Hatoum, com capa azul céu (ou mar) sobre fotografia intitulada Jogo de Capoeira, de Marcel Gautherot. Tirada em Salvador, c. 1940-5, é uma obra de arte. Mas faltava a minha própria foto do livro como um todo. Encontrei.

Dedicado, entre outras pessoas, à Anísio Teixeira, Capitães da Areia é um dos romances mais conhecidos de Jorge Amado, seu sexto para ser mais exato. O ano de 37 do século XX marca, também, a perseguição de Getúlio Vargas aos comunistas e os livros de Amado sendo censurados e queimados em praça pública na sua adorada “cidade da Bahia”, Salvador. Entre as cinzas se formando no ardor da fogueira estavam as páginas do recém-publicado Capitães da Areia.

Li quando menino a história de Pedro Bala e seu grupo tão variado. Não tão menino. Li adolescente. Alguns anos após a chacina da Candelária, que ocorreu aos pés da famosa igreja carioca, na noite do dia 23 de julho do ano de 1993. Coincidentemente, no acervo da Fundação Casa de Jorge Amado, em Salvador, há uma carta do autor emitida do México para Anísio Teixeira, em 26 de julho de 1937, informando ao intelectual, entre outras coisas, que para o fim do mês seguinte seria lançado seu último romance e que ele seria dedicado à Teixeira “em sinal de admiração, amizade e gratidão” (ver carta no anexo final da edição de 2008 da Coleção Jorge Amado – Editora Companhia das Letras). Datas próximas, anos distantes. Mas adocica um pouco nossa prosa, mesmo que com ar de tristeza, você não acha? Eu até acho que prendo sua atenção com isso. Vivo achando coisas. Por exemplo, ele informa ao Anísio Teixeira na tal carta de 1937, que começou a escrever o livro em Sergipe e o finalizou na viagem ao México. As cartas são coisas interessantes, você concorda? Ninguém escreve mais carta para lugar nenhum, a não ser os bancos e suas cobranças disso e daquilo outro. Deixa estar.

Li quando adolescente Capitães da Areia, já disse. Li com uns treze anos de idade, acho. Acho, pois não sou de marcar as datas e anos de minhas leituras, o que me atentam à memória são as leituras e o que permeava o ar naqueles tempos e aqueles assassinatos ficaram na minha cabeça aos dez anos recém completados em 1993.

A chacina da Candelária mexeu com muita gente e, tenho certeza, sabe?, que por isso a professora de Literatura colocou esse livro denso na lista anual de sugestões de leitura para a antiga Oitava Série Ginasial. Não era obrigatória a leitura, não fazia parte do currículo dos quatro livros que deveríamos ler naquele ano. Mas ela sugeria, deixava lá uma listinha. Peguei na biblioteca comunitária da minha cidade – havia uma biblioteca comunitária – e li. Um tio meu, se me recordo bem, tinha um exemplar também e eu o já havia visto pela estante e sei que ele leu, ele lia muito e de tudo. Quem gostava de leitura já havia lido Capitães da Areia, que eu chamava com o de no lugar do da. Demorei muitas vidas para entender o motivo do da Areia, acho que no presságio de ver a areia e o mar e fotografar o livro na solidão do areal aprendi que melhor e mais correto era mesmo Capitães da Areia e não “Capitães de Areia”. Percebi isso enquanto focalizava a câmera para a minha fotografia.

Entendi melhor também as imagens, a poesia nua e a denúncia clara de que a literatura para ser bela não precisa mascarar a verdade. Ela precisa ultrapassar gênero, raça, cor, credo e ela ainda precisa ser assim, mas acho que está se perdendo pelo medo, pelos medos, pela confusão de medos e de lados. A literatura precisa doer, trazer dor tanto quanto alento. Pois a vida é no fundo essa luta constante pelo pão e sobrevivência e se há algum humor aqui ou ali nesse livro, se há as gargalhadas dos capitães da areia... Isso tudo é para nos lembrar justamente que a vida é luta. Luta que se ganha, mas que no fim, não adianta, se perde.

Claro que há passagens amareladas pelo tempo. Fervoroso comunista nos seus romances iniciais, filho rebelde de um coronel do cacau, Jorge Amado tinha suas utopias, mas, ora, e quem não as tem? Mas só um calhorda para não enxergar a beleza que é doutrinada por essa literatura da ação. E isso traz tanta coisa interessante na escrita desse escritor baiano.

O suicídio, que tenho observado de perto, traça uma linha como uma constante via nesses romances iniciais de sua carreira, nem que seja mascarado num mergulho eterno em busca de Iemanjá, tanto quanto sua denúncia sobre as mazelas da vida e a esperança no socialismo como solução maior que o mergulho profundo nas águas de Iemanjá. Não posso dizer que o primeiro aspecto perdurará nas demais obras – nossa conversa ainda será longa e a maré, tanto quanto a areia da praia nunca estão no mesmo lugar, nunca ficam da mesma maneira como as deixamos no dia anterior. As mazelas, sim, continuam como denúncia, com um humor mais constante, mais vivo, numa invenção de inversão da Bahia que, cada vez mais será Salvador de maneira mais clara ao mundo, chegando até a confundir esse mundo que é a Bahia com sua capital que é Salvador. O socialismo também, pois não é preciso se manter filiado ao antigo e verdadeiro partidão para manter em si a ideologia, mesmo que não mais a utópica como nos cânones. Explicando isso são melhores analistas que eu os livros deixados por Eric Hobsbawm, Perry Anderson, Terry Eagleton, Carlos Astarita, Jacob Gorender, Ciro Flamarion Cardoso, Emília Viotti da Costa, Anita Leocádia Prestes, entre tantas reflexões, tantas e tantas mais que já nem sei quais são quais e o que li. Não entrarei em pormenores nessa conversa, preciso beber alguma coisa. Mas os remédios não permitem, a preocupação não permite e minha fraqueza diante da vida, vendo a força diante da morte de uma Dora preparada para o derradeiro final com seus amigos olhando perdidos dentro de si... tudo isso não me permite descanso para a mente, só me espero como cinza um dia espalhado, o vento levando, pois a nenhum lugar pertenço mais e menos me sinto pertencente que não seja a solidão. 



Dos meninos dos trapiches lá do areal, de um Pedro Bala, um Professor, João Grande, o Sem-Pernas, Gato, o Volta Seca ou Pirulito... Estou longe o mais profundo em tudo desses personagens que com certeza ainda zanzam por aí. Estou longe em tudo: história, vida, sofrimento, sobretudo, da força que cada um carrega. Pois, eu estou dizendo: não se engane você, existem por aí muitos deles resistindo e dando gargalhadas. Dos meninos capitães do romance de Jorge Amado, eu sou areia, não sirvo nem para construção de um trapiche. 



segunda-feira, 18 de outubro de 2021

A solidão ou o que é amizade?

Faz tempo ou mesmo eu não vejo o tempo passar. Você vê? Não sei. O gato dorme aos meus pés e saí antes para fazer a barba, me relaxa fazer a barba. É um bom barbeiro, de lâmina e toalha quente no meu rosto. Calmamente depois de amaciar minha pele, a mesma toalha, já mais fria, cobre meus olhos e sinto a lâmina passar pelo pescoço. Faz tempo.

Era para estar por aqui conversando com você sobre Capitães da Areia, que já li novamente faz tempo. É, faz tempo. Mas não tenho tido forças e nem sei direito o que me move. Se eu pudesse nem me mover me movia. Ia vendo a barba e os cabelos crescerem com o tempo passando e quem sabe a morte chegando tranquila como o gato aos meus pés. Porém, o tempo passa lento, o gato perturba tanto quanto os mosquitos que chegam sem convite quando cai a noite.

Já li uns três livros alguma coisa de quê depois do Capitães da Areia e depois desses três comecei o ABC de Castro Alves, que sucede Capitães da Areia, sabe? Pois é. Faz tempo. Nem sei. Não me lembro bem, mas sei que decidi ler um a um, cada livro – e alguns ainda não tenho – de Jorge Amado na ordem cronológica dos lançamentos originais. Um a um. Mas nem isso me move. Nem a bicicleta me move. Fiz a barba pois estavam me incomodando os pelos do bigode entrando pela boca e, falo a verdade, me relaxa deitar na cadeira do barbeiro nessa cidade pequena que é grande que me faz lembrar da cidade onde eu nasci e ao mesmo tempo esquecer a cidade onde eu nasci... deitar na cadeira do barbeiro me relaxa, pois sentir a toalha quente sobre meu rosto, depois meus olhos vendados e a lâmina percorrendo meu pescoço, nem sei, mas me relaxa.

Não sei bem o que é amizade, acho que nunca soube. Sei que há por aí, espalhadas pelo mundo, tão perto, outros tão longe, umas amizades de contar no dedo. Mesmo assim não sei bem. Pois todo mundo tem problemas. Problemas com família, com dinheiro, consigo mesmo ou até comigo. Acho que às vezes sou um tipo de problema até mesmo para a minha mãe e o meu pai – que o que não vejo os guarde com saúde, pois nem sei, faz tempo e o tempo vai passando. Às vezes bate essa ideia torta que me balança: sou um problema para a minha mãe e para o meu pai. E pensando essa ideia, construindo, me bate forte uma ideia deles lá longe e eu aqui longe também e o tempo passando para todo mundo, já que o tempo passa mesmo. Mas é mais fácil lidar com o tempo passando, a saudade aumentando e a ideia torta crescendo feito barriga gestante, feito barba e cabelos ou crianças mal-educadas por parentes violentos e que se tornam crianças violentas. Ou um amor violento que considera fraqueza qualquer tipo de tristeza diante de qualquer tipo de tristeza, do que lidar com minha cara no espelho.

Faz tempo. Já nem sei. Não há grama mais verde no vizinho, não há nem grama. E não sei direito o que é amizade e por isso fico em silêncio com os pés quentes graças ao gato. Os pés quentes me dão a sensação de vivo, pois morto ou pessoa sem sorte tem pé frio. Não é? Nem sei.

Não pedalo mais. Não acho graça em sair. E se saio é coisa rápida ou mesmo forçado. Mas não pedalo e isso me dói. Dói tanto quanto ouvir de um amor violento que é frescura demais ficar triste pela tristeza. É a síndrome vazia na crença de que se você lida bem com os seus problemas todo mundo tem que lidar. Por isso mesmo me relaxa fazer a barba, a toalha quente sobre meu rosto como que me entorpecendo e de repente meus olhos vendados e a lâmina passando pelo meu pescoço aparando os fios meio brancos, meio ruivos para ficarem brancos da barba que cresce, pois os cabelos já estão grandes.

E todo mundo tem problema, eu sei. Até me satisfaz – não vou mentir – saber que tem gente por aí que lida bem com seus problemas. Mas me bate uma angústia danada e forte de saber que tem gente que só porque lida bem com seus problemas, se motivam num deus, numa santa, numa coisa que não sei o quê, na esperança de viver novamente com quem já se foi ou de ouvir quem já se foi... essa gente que se fia nisso, me angustia quando me falam é frescura, você é fraco. E me vem uma ideia torta – faz tempo, nem sei – de que sou mesmo fraco e, pior, sou um problema para a minha mãe e pai e para as amizades que – olhe lá – conto nos dedos. Eu que nem sei o que é direito amizade, acho que nunca soube e, talvez, nem essas amizades saibam o que é amizade: todo mundo tem problemas e por isso não dá tempo de pensar direito nisso, isso nem é problema, por que basta você ir sumindo e você percebe que ninguém vê ou na verdade você vai sumindo e estão esperando que você pergunte por que elas sumiram e todo mundo no fundo some porque todo mundo está esperando um telefonema, uma mensagem, uma carta de olá, como vai?, mas você, digo, eu, vou sumindo, pois veio essa ideia do amor violento: eu sou mesmo um estorvo, um problema e arranjo problema. E acho mesmo que o problema sou eu e se sou eu, não faz muita diferença ficar incomodando perguntando: olá, como vai?

Faz tempo. Nem sei. É aquela coisa meio chinfrim, você sabe? E vem quem é prolixo, vem quem é alto astral, vem que é do berço da sinceridade e quem quer te mudar o pensamento com frases de efeito: isso é frescura, ficar triste pela tristeza. Aí eu vou ficando em silêncio, vou ficando mudo e acho que mudo a gente vai diminuindo e sumindo. Mas é difícil ficar mudo, é um processo de treinamento e é doloroso.

Acho bonita aquela canção do Paulinho da Viola, Sinal Fechado, acho a letra bonita e é bonito como ele encaixa cada acorde naquela melodia angustiada. E vai sumindo.

Esses malditos mosquitos. Esses malditos remédios. Mas deve ser mais difícil para quem se mete a escrever poesia. Pois quem escreve poesia fica no dilema: dou para o mundo ler ou guardo para mim?

Eu, particularmente, não vejo sentido em poesia que não se dá ao mundo para leitura. Pois poesia quer palco tanto quanto quem pensa em dar cabo um dia dá cabo. Mas aí é ideia minha, ninguém precisa concordar, tanto quanto ninguém precisa chancelar poema como bonito ou feio. Poema é poema. E eu nem entendo direito de poesia, sei que há amores violentos como versos que se encaixam, como há também amizades que se perdem por a gente nem saber o que se tem.

Mas uma coisa é certa, todo mundo tem problema e o meu problema convém mais aos outros do que seus próprios problemas. Todo mundo tem uma solução para o meu problema, às vezes com uma carga tão violenta de certeza que chego a me envergonhar de ousar a falar do que eu julgo serem meus problemas – tem gente com problema pior que o teu! Fraqueza, frescura! – e por isso para quê ficar me expondo? Faz tempo e o vento vai mudando e o que é mesmo amizade? Talvez nem o gato esquentando os meus pés saiba dizer, se ele falasse.