Faz tempo ou mesmo eu não vejo o tempo passar. Você vê? Não sei. O gato dorme aos meus pés e saí antes para fazer a barba, me relaxa fazer a barba. É um bom barbeiro, de lâmina e toalha quente no meu rosto. Calmamente depois de amaciar minha pele, a mesma toalha, já mais fria, cobre meus olhos e sinto a lâmina passar pelo pescoço. Faz tempo.
Era
para estar por aqui conversando com você sobre Capitães da Areia, que já
li novamente faz tempo. É, faz tempo. Mas não tenho tido forças e nem sei
direito o que me move. Se eu pudesse nem me mover me movia. Ia vendo a barba e
os cabelos crescerem com o tempo passando e quem sabe a morte chegando
tranquila como o gato aos meus pés. Porém, o tempo passa lento, o gato perturba
tanto quanto os mosquitos que chegam sem convite quando cai a noite.
Já
li uns três livros alguma coisa de quê depois do Capitães da Areia e depois
desses três comecei o ABC de Castro Alves, que sucede Capitães da
Areia, sabe? Pois é. Faz tempo. Nem sei. Não me lembro bem, mas sei que
decidi ler um a um, cada livro – e alguns ainda não tenho – de Jorge Amado na
ordem cronológica dos lançamentos originais. Um a um. Mas nem isso me move. Nem
a bicicleta me move. Fiz a barba pois estavam me incomodando os pelos do bigode
entrando pela boca e, falo a verdade, me relaxa deitar na cadeira do barbeiro
nessa cidade pequena que é grande que me faz lembrar da cidade onde eu nasci e
ao mesmo tempo esquecer a cidade onde eu nasci... deitar na cadeira do barbeiro
me relaxa, pois sentir a toalha quente sobre meu rosto, depois meus olhos vendados
e a lâmina percorrendo meu pescoço, nem sei, mas me relaxa.
Não
sei bem o que é amizade, acho que nunca soube. Sei que há por aí, espalhadas
pelo mundo, tão perto, outros tão longe, umas amizades de contar no dedo. Mesmo
assim não sei bem. Pois todo mundo tem problemas. Problemas com família, com
dinheiro, consigo mesmo ou até comigo. Acho que às vezes sou um tipo de
problema até mesmo para a minha mãe e o meu pai – que o que não vejo os guarde
com saúde, pois nem sei, faz tempo e o tempo vai passando. Às vezes bate essa ideia
torta que me balança: sou um problema para a minha mãe e para o meu pai.
E pensando essa ideia, construindo, me bate forte uma ideia deles lá longe e eu
aqui longe também e o tempo passando para todo mundo, já que o tempo passa
mesmo. Mas é mais fácil lidar com o tempo passando, a saudade aumentando e a ideia
torta crescendo feito barriga gestante, feito barba e cabelos ou crianças mal-educadas
por parentes violentos e que se tornam crianças violentas. Ou um amor violento
que considera fraqueza qualquer tipo de tristeza diante de qualquer tipo de
tristeza, do que lidar com minha cara no espelho.
Faz
tempo. Já nem sei. Não há grama mais verde no vizinho, não há nem grama. E não
sei direito o que é amizade e por isso fico em silêncio com os pés quentes
graças ao gato. Os pés quentes me dão a sensação de vivo, pois morto ou pessoa
sem sorte tem pé frio. Não é? Nem sei.
Não
pedalo mais. Não acho graça em sair. E se saio é coisa rápida ou mesmo forçado.
Mas não pedalo e isso me dói. Dói tanto quanto ouvir de um amor violento que é
frescura demais ficar triste pela tristeza. É a síndrome vazia na crença de que
se você lida bem com os seus problemas todo mundo tem que lidar. Por isso mesmo
me relaxa fazer a barba, a toalha quente sobre meu rosto como que me
entorpecendo e de repente meus olhos vendados e a lâmina passando pelo meu
pescoço aparando os fios meio brancos, meio ruivos para ficarem brancos da barba
que cresce, pois os cabelos já estão grandes.
E
todo mundo tem problema, eu sei. Até me satisfaz – não vou mentir – saber que
tem gente por aí que lida bem com seus problemas. Mas me bate uma angústia
danada e forte de saber que tem gente que só porque lida bem com seus problemas,
se motivam num deus, numa santa, numa coisa que não sei o quê, na esperança de
viver novamente com quem já se foi ou de ouvir quem já se foi... essa gente que
se fia nisso, me angustia quando me falam é frescura, você é fraco. E me
vem uma ideia torta – faz tempo, nem sei – de que sou mesmo fraco e, pior, sou
um problema para a minha mãe e pai e para as amizades que – olhe lá – conto nos
dedos. Eu que nem sei o que é direito amizade, acho que nunca soube e, talvez,
nem essas amizades saibam o que é amizade: todo mundo tem problemas e por isso
não dá tempo de pensar direito nisso, isso nem é problema, por que basta você
ir sumindo e você percebe que ninguém vê ou na verdade você vai sumindo e estão
esperando que você pergunte por que elas sumiram e todo mundo no fundo some porque
todo mundo está esperando um telefonema, uma mensagem, uma carta de olá,
como vai?, mas você, digo, eu, vou sumindo, pois veio essa ideia do amor
violento: eu sou mesmo um estorvo, um problema e arranjo problema. E acho
mesmo que o problema sou eu e se sou eu, não faz muita diferença ficar
incomodando perguntando: olá, como vai?
Faz
tempo. Nem sei. É aquela coisa meio chinfrim, você sabe? E vem quem é prolixo,
vem quem é alto astral, vem que é do berço da sinceridade e quem quer te mudar
o pensamento com frases de efeito: isso é frescura, ficar triste pela
tristeza. Aí eu vou ficando em silêncio, vou ficando mudo e acho que mudo a
gente vai diminuindo e sumindo. Mas é difícil ficar mudo, é um processo de
treinamento e é doloroso.
Acho
bonita aquela canção do Paulinho da Viola, Sinal Fechado, acho a letra
bonita e é bonito como ele encaixa cada acorde naquela melodia angustiada. E
vai sumindo.
Esses
malditos mosquitos. Esses malditos remédios. Mas deve ser mais difícil para
quem se mete a escrever poesia. Pois quem escreve poesia fica no dilema: dou
para o mundo ler ou guardo para mim?
Eu,
particularmente, não vejo sentido em poesia que não se dá ao mundo para
leitura. Pois poesia quer palco tanto quanto quem pensa em dar cabo um dia dá
cabo. Mas aí é ideia minha, ninguém precisa concordar, tanto quanto ninguém
precisa chancelar poema como bonito ou feio. Poema é poema. E eu nem entendo
direito de poesia, sei que há amores violentos como versos que se encaixam,
como há também amizades que se perdem por a gente nem saber o que se tem.
Mas
uma coisa é certa, todo mundo tem problema e o meu problema convém
mais aos outros do que seus próprios problemas. Todo mundo tem uma solução para
o meu problema, às vezes com uma carga tão violenta de certeza que chego a me
envergonhar de ousar a falar do que eu julgo serem meus problemas – tem gente
com problema pior que o teu! Fraqueza, frescura! – e por isso para quê
ficar me expondo? Faz tempo e o vento vai mudando e o que é mesmo amizade?
Talvez nem o gato esquentando os meus pés saiba dizer, se ele falasse.
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