segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

Entendi o que é um ABC

 


Não sei bem se você me ouve. Mas acho que mais doloroso é ouvir no silêncio a própria voz e essa ressoa há tempos. De fato, faz muito tempo que essa conversa está guardada na caixa do peito. Não sei se pelo próprio tempo, o desalinho, desânimo, o tal do silêncio me fez ficar mudo e só. Você está aí? Você ainda está aí?

São muitas dores, eu sei. E eu ouço o som da minha voz ou mesmo o silêncio se quebrando com a caneca de pedra sabão mineiro se enchendo com a água do filtro de barro para que eu tome minha medicação. Mas não importo para ninguém. É o que o cérebro vai pregando como peça de pastor levando suas ovelhas ao matadouro e todo mundo um dia vai para o matadouro. Não é?

Continuo. Ouça mais um pouquinho, fugi do assunto, mas foi coisa rápida.

Hoje é dia 03 de janeiro de 2022, uma segunda-feira. Hoje, na verdade, num sábado de 1898, nascia em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Luís Carlos Prestes. A citação ao 03 de janeiro de hoje e ao de 1898 diz muito sobre essa jornada de ler cronologicamente – como temos conversado – a obra de Jorge Amado. Já uns dias iniciei O Cavaleiro da Esperança: vida de Luís Carlos Prestes, mas não parei para te contar as impressões, os sentimentos que tive ao ler o livro que o antecede na obra do baiano de Itabuna: ABC de Castro Alves.

Publicado originalmente em 1941 e retomado na série Coleção Jorge Amado da Companhia das Letras, com posfácio de Domício Proença Filho, li a edição de 2010 da editora.

Do escrito de Proença Filho entendi enfim o que é um abc, apesar de eu não ser tão ignorante, mas mesmo lendo sempre o posfácio como deve ser lido – no final – o ritmo da escrita de Jorge Amado era da mais pura louvação ao poeta baiano, seu conterrâneo. A voz dos escravos. A explicação, a exposição, de Domício Proença Filho ajudou e evidenciou mais o sentimento que me batia entre angústia e admiração.

 O que Jorge Amado, na sua cadência, na conversa com a sua negra, a sua amiga – companheira – nas areias, contando a grandeza, os feitos do poeta, humanizando Castro Alves, nos leva a tal ponto da gente se dar conta – sabe? – e se lembrar que é sempre bom perguntar-se: O que é uma biografia de verdade?

Amado usa notas de fim – adianto que no livro sobre Luís Carlos Prestes o mesmo acontece – dá opiniões. Ele consegue romancear uma vida, mas não são todas as vidas – a minha e a tua – grandes romances escritos ao acaso pela pena de algo maior?

Sinto angústia. Pelo menos sinto. E sentir alguma coisa já é algo, afinal, como num trecho do ABC: “Já que que a vida esmagava assim tantos homens e tantos sentimentos, já que ela era tão feia e tão errada, então ela não a queria, não se misturaria com ela, fugiria. A morte é também, amiga, bela como a mais bela das mulheres quando se tem medo da vida, de encará-la face a face, quando se pensa que o destino do homem é a desgraça. Para os que assim pensam, as estrelas do céu são um chamado, a lua é um convite, a morte é a suprema amante, só ela pode dar aos homens os bens que a vida não possui. E eles caminhas para a morte de passo firme e decidido porque vão para uma festa, não têm nada que os prenda à vida, estão desligados dos demais homens” (p. 47).

Jorge Amado canta em cada letra do alfabeto os feitos do poeta, insere um cotidiano em que a verdade mais pura é a dor que o passado não pode esquecer: a ausência da Liberdade.

E ele lembra bem, encerro assim, com uma voz que não é minha, mas que é do grande que segue amado: “Nessas noites oleosas da Bahia, quando do céu desce um infinito mistério, quando do mar chegam as canções mais doces de Iemanjá, quando da terra vem um cheiro poderoso de flores várias, nessas noites, amiga, vêm do mais escondido da cidade, de trás dos morros, do mais profundo da noite, ninguém sabe mesmo de onde, esses sons que do cais nós ouvimos de coração saltando no peito. São os baticuns das macumbas, são os candomblés batendo em honra dos santos que tu amas. De Oxóssi, meu santo, de Omolu, o deus que tanto temes, de Xangô e de Ogum. São atabaques deixando que a música role sobre a cidade e a evolva e a transporte para uma atmosfera de sonho. Nós sabemos, amiga, que lá, onde tantas vezes estivemos, naqueles escondidos lugares onde nossos irmãos negros festejam seus pobres deuses, negras dançam vestidas com os mais lindos vestidos de mundo. Sabemos também que a qualquer momento a caravana policial pode invadir o terreiro da macumba e levar os sacerdotes, os assistentes e os santos. Sabemos que é sempre uma aventura um baticum de candomblé. Que dos negros nem os deuses são livres para dançar na Terra. Mas que nem por isso deixa de, sobre as ladeiras da Bahia, ressoar a trágica voz dos atabaques, que nem por isso deixam de ser cantadas as canções de Iemanjá, nossa mãe, dona do mar e do nosso destino (...). Antes, negra, era ainda pior. No tempo do poeta Castro Alves, no tempo da sua infância e também depois, os negros eram escravos comprados em leilões, mercadoria que se vendia, trocava e explorava. E em troca de tudo que eles deram ao branco, sua força, seu suor, suas mulheres e filhas, a maciez da sua fala que adoçou a nossa fala, sua liberdade, o branco lhe quis dar apenas, além do chicote, os deuses que possuía. Mas deuses os negros traziam da África, os deuses da floresta e do deserto. E continuaram fiéis aos seus deuses por mais que rezassem aos deuses dos seus donos. E cavaram no subsolo das cidades templos que o homem branco não podia atingir” (p. 62-63).

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