segunda-feira, 17 de maio de 2021

Crônica que ninguém lê (ou O retorno d'O Ventríloquo)


O que passa por sua cabeça enquanto pedala? Corre? Caminha? Faço escolhas ruins de releituras e leituras quando minha mente está passando por momentos em que insiste em me pregar peças. Talvez, a medicação, a genética, a química dentro de mim. De qualquer maneira, preciso ser rápido com a memória. Mais uma vez: talvez, pela medicação ou mesmo pela velhice (apesar de ainda estar em flor de idade), as drogas – devidamente receitadas pelo meu psiquiatra – mexem de diversas maneiras com meu subconsciente. Muitas vezes transformam minha jornada num transtorno, mesmo que haja benefício.
Disse hoje para alguém que uma boa literatura deve ter sua dose de drama. E não estava mentindo. Com o carro que não é meu, com a bicicleta que nem sei se é minha, com os movimentos que às vezes parecem mecânicos, fui pedalar na Orla da Atalaia, em Aracaju na hora do almoço. Único momento que tenho tido em tempo entre meus afazeres domésticos, intelectuais, burocráticos como: lavar a louça, dar ração ao Gregório, preparar aulas, ler livros e artigos, pensar nas orientações de Iniciação Científica e Mestrado, dar pareceres, prestar contas sobre meu pós-doutorado, organizar comprovantes financeiros comprovando que o dinheiro recebido e gasto pelo programa de mestrado foi empenhado corretamente. Insisto: faço más escolhas de leituras quando a vida não vai bem. Recentemente foi publicada uma edição bilíngue (inglês, nos manuscritos, e português) dos diários do compositor, guitarrista e cantor da banda estadunidense Nirvana, Kurt Cobain, que se suicidou com um tiro de espingarda aos 27 anos, em 1994. A edição é luxuosa, comprei na pré-venda no próprio site da editora, há um certo tempo, por isso ganhei umas memorabilias ou como queiram “souvenires” sobre o finado. Já estou quase terminando a leitura e é angustiante. Ponto. Não importa. O que passa por sua cabeça enquanto pedala?
Hoje, na hora do almoço, quando iniciei meu giro parti da Praia da Cinelândia sentido nova rótula do Farol da Marinha, o objetivo era dar algumas voltas no percurso: Rótula da Cinelândia – Nova Rótula do Farol, que fica praticamente na Praia dos Artistas. 




O exercício mais importante é manter minha mente pensando, praticamente conjugando verbos de ações. Daí as palavras e a narrativa do que ninguém lê se constrói na minha cabeça. Mas eu ouvia uma música constante no início, certamente, por hoje ser segunda-feira e eu ter aula de piano. Enquanto eu pedalava e, para ser sincero, isso ocorreu durante toda a primeira passagem sentido Farol da Marinha, eu só ouvia o “Prelude in C Major, BWV 846”, do compositor protestante luterano Johann Sebastian Bach.


Na versão web é possível ver e ouvir no vídeo acima a execução primorosa do Prelude in C Major

Há uma explicação plausível: tenho enrolado muito no estudo, principalmente nos antepenúltimo e penúltimo compassos. Ontem, estudei um pouco pela noite, então era de se esperar que eu ouvisse a música, visualizasse a partitura na minha frente. Logo me desgarrei quando vi à minha direita a Praia dos Artistas o mar e seu horizonte nublado e, claro, quando fiz a rótula do Farol a pancada de vento que tomei no meu peito. Não havia motivo para ficar pensando em figurinhas escritas entre linhas. Precisava focar em coisas mais interessantes: o cotidiano da Orla enquanto eu estava em movimento.

Um casal de mãos dadas aparentava tesão um pelo outro. Um homem na rede. Uma profissional do sexo me mandando um sinal, respondi que depois. Ela riu. Não viu meu sorriso de máscara. Os caras do famoso lava-jato. A polícia no furgão que fica de frente para o Eu (coração) Aracaju em letras coloridas. Os bares e restaurantes com um casal, um homem só e sua cerveja. A academia com corpos sendo definidos. Primeira volta. Foi-se o vento. A música que vocês ouvem queria voltar à minha mente. Disse que não! Não! Acelerei a cadência. Pesei a marcha, aproveitei o vácuo do vento. Um caminhão recolhia cocos. Garis, sem saber sua importância, faziam seu trabalho. Um homem tirava fotos nas estátuas: tirou com Tiradentes, ao lado havia Zumbi do Palmares, olhou para o chão, Tiradentes é mais fácil de ser reconhecido com sua corda no pescoço. Uma estátua de um negro guerreiro com uma lança em punho, não. Não tive tempo de perceber se ele tirou também uma foto com o líder do famoso quilombo. Eu tinha pressa. Um rapaz corria. Dois homens com máscara no queixo caminhavam. Uma moça segurava um sombreiro na porta de um restaurante vazio. Avistei uma coruja no calçadão, pouco antes, novamente da rótula do Farol da Marinha. A coruja – juro – olhava fixamente para uma pichação na parede oposta a nós dois, do outro lado da pista: “Fora Bozo”. Olhava atenta. A coruja é o símbolo da sabedoria. Mas, sempre há mais pombos cagando na nossa cabeça que corujas para admirarmos.

Nenhum comentário: