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Aquarela de Carybé, encontrada originalmente no livro Iconografia dos Deuses Africanos no Candomblé da Bahia, lançado em 1981 |
Demorei
algum tempo para esboçar cada frase que deposito aqui pelos meus lábios. Talvez
pelo receio de ser mal interpretado entre o que se faz palavra junto ao
pensamento e se concretiza em som. Considero que sou um meio termo entre o
esboço e o concreto, aquilo que ficará cravado no fundo do ouvido.
Demorei
um tempo para me reconhecer nesse intervalo, nessa lacuna, e claro que isso tem
seu preço: enjôo, mal estar, febre, dores de cabeça horríveis. Muito
provavelmente porque a estética é a ressaca que surge no dia seguinte após a
vigília na construção de um texto-conversa.
Há uns
bons meses assisti uma entrevista do produtor, músico e compositor Alexandre
Kamal Kassin que mexeu profundamente comigo. Até compartilhei a impressão em
algumas rodas de conversa. Mas a coisa nunca se manifestou concreta para
produzir alguma voz específica que valesse todo o esforço de me expor com
alguma apresentação nova sem mover ao vivo, como de costume, um músculo sequer
da fase.
Em
determinado momento do vídeo, Kassin comenta que um dia viajando pela Bahia com
um amigo francês, foram procurar uma mãe de santo para que jogasse os búzios
para que o europeu descobrisse qual era o seu “ôrixa”. “Querer saber meu ôrixa”,
dizia ele.
Quando
chegaram ao local, segundo Kassin, a mãe de santo o olhou e disse firmemente: “eu
jogarei os búzios para o seu amigo, porém, antes tenho duas coisas importantes
para te dizer, uma é mais importante que a outra, mas as duas serão
fundamentais na sua vida.” A primeira coisa foi: “Ligue para sua mãe e a
tranquilize, seu tio teve um problema grave de saúde, mas já está bem. Fale com
ela o mais rápido o possível, se não ela pode partir e não voltar mais” e a
segunda coisa, continuou o músico, “largue o que você está fazendo. Você não é
feliz e realizado. Você acha que é. Mas não é. Sua vida será melhor se você
fizer o que quer fazer de verdade.”.
Basicamente
isso. Ele então ligou imediatamente para o Rio de Janeiro. Seu tio havia
sofrido um infarto, mas já se recuperava. Sua mãe estava nos Estados Unidos e
assim que a telefonou, ela se tranquilizou e sua pressão arterial baixou. Na
época, Kassin era produtor musical de alguns ou um, não me lembro, programas da
Rede Globo de Televisão. Financeiramente estava realizado. Porém, de fato, ele
pausa sorrindo, não era plenamente feliz fazendo o que fazia.
A
história segue. Kassin pediu demissão, abriu um estúdio e passou a se dedicar
integralmente à profissão de produtor de discos de jovens artistas brasileiros
como ele e alguns grandes nomes da MPB. No mini programa-documentário, o
carioca finaliza sua fala dizendo que não tinha maior prazer que virar a noite
num estúdio e mesmo assim acordar cedo na manhã seguinte. Hoje não ganha tão
bem quanto ganhava na TV. Mas é feliz.
O longo
parêntese de minha fala tem razão de ser, sofri um pouco sobre como te deixar a
par disso. Mas, não havia outro meio de você ouvir. A tal ressaca estética do
pós-escrito. Dois fatos são singulares para mim e explicam o porquê de uma
história que não é minha estar na introdução da nossa conversa. Volto ao
passado, para depois te levar novamente ao mesmo ponto de partida.
Quando
eu tinha entre seis e sete anos de idade tinha pesadelos terríveis. Na verdade,
não sei quando se iniciaram, se de fato aos seis, mas, é o que consigo lembrar
e a memória serve ao esquecimento. Certamente, a Psicologia explica. Mas,
fiquemos com o senso comum daquele momento: Para os meus pais e os mais velhos
da família, eu estava em fase de crescimento e era absolutamente normal aquele
tipo de coisa. Porém, os sonhos medonhos se tornaram doentios, eu tinha
insônia, minha mãe acordava com meus gritos. A vida de fato se tornou um
inferno para uma criança que era cercada de amor por todos os lados. E não
existe inferno mais profundo que uma criança infeliz.
Curioso,
mas se penso em duas pessoas cuja religião nunca foi um fator determinante para
educação e formação ética, elas são os meus pais. Cada um tem uma
característica muito particular: papai nunca conversou, que eu me lembre, sobre
deus ou qualquer coisa do tipo. Nem “papai do céu” saía da sua boca. Nunca vi
meu pai fazendo sinal de cruz, rezando ou qualquer coisa do tipo na minha
infância. O máximo que me recordo era um cordão de ouro com uma imagem de São
Jorge. Mas isso sempre foi moda no subúrbio e não sei se havia algum sentido de
religiosidade nisso. Contudo, sempre foi um homem sensível ao filho. Meu pai é
muito frouxo para assunto de morte. Hoje, adulto, tenho certeza que meu pai se
caga de medo de morrer. Digo isso rindo, pois de fato, ele morre de medo da
morte. Não fala no assunto, jamais. Não sei nesse ponto o que se passa em sua
cabeça. Conversamos sobre tudo. Menos sobre morte. Da morte, meu pai quer
distância.
Minha
mãe é o inverso. Não sei se desde cedo ou se por profissão, ela ficou um tanto
fria com o fenômeno inevitável para cada um de nós. Mamãe passou isso para mim.
Curioso que temos similitudes peculiares. Diferentemente de meu pai, sempre vi
minha mãe na busca por certo tipo de resposta que, de fato, a gente nunca vai
ter. Até certo ponto, tentamos os dois. Nos debatemos na tentativa de buscar em
algo que queríamos palpável, não a solução talvez, mas a resposta para o que
nos acontecia. Posso dizer por ela que desistimos quase juntos.
De todo
modo, me lembro na infância dos plantões que ela dava no Hospital Iguaçu, um
prédio sombrio e úmido que me deva medo. Ali, meu avó ficou internado, não
recordo se veio a falecer. Mas, me lembro de visitar alguns parentes que, um a
um, foram dando seu último suspiro na terra.
Nesse
hospital minha mãe uma vez me mostrou “a pedra”. A pedra era – e é – uma mesa
de concreto de cumprimento de um ser humano padrão. Ali se colocam os corpos
sem vida, os preparam para o velório, lhes dão banho. Vi a pedra vazia, claro.
Os corpos saiam por onde mamãe deixava o plantão. Um portão preto ao fundo do
hospital e que dava de frente para uma carceragem da Polinter de Nova Iguaçu.
Às 19:00 horas em ponto meu pai estava lá com seu fusca amarelo e eu
conversando com ele aguardando minha mãe.
Hoje,
com a distância que o tempo me traz, vejo que via minha saindo a cada dia mais
morta do que os corpos sem ar que eram transportados pelos carros funerários.
A tal não-religião
da família não foi impedimento para que meu pai aceitasse o conselho de uma
amiga de trabalho, que frequentava o terreiro de Candomblé em frente a nossa
casa, para que me levasse para curar meu mal noturno. Não sei se houve
relutância.
A
questão é que minha lembrança me leva ao fundo da casa do Seu Clair e da Dona
Iraci, me vejo entrando dentro do pequeno espaço com ela de branco, imponente,
fumando. Ouço atabaques e vejo gente conhecida e que nunca mais revi. Cânticos
são entoados. Acho que sou a única criança. Ela bafora algo em meu rosto, não
tenho medo. Minhas mãos estão nas mãos de minha mãe. A mãe de santo sorri para
mim. Diz que nhôzinho ficará bem, diz que vou voltar a sonhar coisas boas e me
dá de beber numa cuia de coco um líquido doce e forte. Tem gosto de ervas e
hoje sei que tem gosto de álcool. Nhôzinho bebe. Bebe que fica bom. Eu bebo e
peço mais. Ela ou a entidade que a possuía sorri uma gargalhada que eu já havia
ouvido e tinha medo às noites mal dormidas, mas que ouviria nos anos seguintes voltando da
universidade, da rua, de onde você quiser imaginar e que não temeria mais desde então. Nhôzinho
gosta. Nhôzinho bebe.
Nunca
mais. Eu repito: nunca mais tive um pesadelo sequer na minha vida e mesmo nos
momentos tortuosos e mais tristes, há uma lógica racional que não me permite
acreditar que me afundarei num pesadelo enquanto durmo, mesmo se não durmo bem.
Mas é como se algo suspirasse palavras no meu ouvido dizendo: não é real.
Finco
meus pés no Pelourinho, suo o calor da tarde. Não há linho de fina qualidade
que suporte. À nossa frente a arte de Carybé. Imponentes figuras talhadas em
madeiras: são os orixás. Não sei quantas vezes em minhas idas e vindas à Bahia
que paro para contemplar toda aquela grandiosidade.
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Museu Afro-Brasileiro |
Ela
sorri. Pois ela busca algo mais do que eu. Ela olha tão atentamente. Mas, eu
sei. Um dia, ela diz, terei coragem de procurar uma mãe de santo para me
orientar. Eu sorrio por dentro e uma voz que eu já conheço da lembrança me
sussurra palavras que alertam minha reticência: O medo é o Orixá falar.