É inevitável não ouvir algo e
consequentemente não ser tomado por alívio ou pavor. As vozes – desde sempre ou
quase sempre – permeiam os acirrados debates dos psiquiatras, dos psicólogos e
psicanalistas. Reais? Imaginadas?
De qualquer maneira, as vozes são
produzidas intencionalmente algumas vezes. Talvez sim. Talvez não. Não sei do
que se trata essa voz, o tom em que ela se localiza na tessitura do tempo,
em qual clave encaixá-la. Não sei. Por certo, você saiba... Dolores sabia. Ao
menos segundo ela, sabia.
Havia um tempo, acho que uns três anos
ou um pouco mais, que eu não via Dolores. E parece que o tempo lhe foi justo.
Envelhecer bem é uma benção. Eu por exemplo, dos últimos três anos perdi uma
bola, foi-se um casamento, a barba esbranquiçou, tomo ansiolíticos, ISRS,
carbonato de lítio e, evidentemente, tenho fodido pouco ou quase nada.
Engordei, mesmo não tendo apetite. Enquanto Dolores manteve seu ar esbelto,
alta, aparentemente feliz e em contraste com minhas profundas olheiras roxas
que pareciam uma maquiagem borrada, ela estava com o rosto limpo e a brancura
de sua pele transmitia um quase mais alvo do que a neve do Bendito
Cordeiro, que se não me falha a memória e a preguiça de pesquisa, é o hino
número 123 do Cantor Cristão usado pelas Igrejas Batistas, de
qualquer maneira: foda-se! Afinal, tudo quanto é igreja cristã e evangélica
canta essa música que é, na verdade, uma melodia e letra de dois estadunidenses
do século passado. Sim, já fodi com a Dolores. Nos dois sentidos do termo.
Primeiro de modo bom, tanto para ela quanto para mim. Depois, no mau sentido.
De início pensei que havia sido pior para ela, vejo que foi pior para mim.
A noite não foi boa. Nenhuma noite é
boa. Mesmo quando a noite é boa e consigo dormir já com o sol raiando. E encontrar
a Dolores ao acaso, quase esbarrando sem querer – quando esbarrar mesmo
querendo é um risco – foi curioso. Ela queria me abraçar e educadamente,
mascarado, é claro, sorri, acho que não deu para ela perceber o sorriso, e
gesticulei apontando para o chão a marca de segurança da metragem da fila. Ela
pensou em insistir, mas parou. Fomos conversando de longe, a máscara abafava um
pouco as frases, amenizava o rubor de seu rosto em alguns momentos, mas foi
possível por uns instantes conversarmos educadamente sobre vida, trabalho,
quarentena, morte e sua nova inclinação religiosa. Seus olhos brilharam quando
entrou nesse assunto. Se eu estivesse nos bons e velhos tempos de manipulador,
juro que diria que aquilo me brochou. Porém, para haver uma brochada é necessária
uma ereção, coisa que estava complicada para mim... Deixa estar.
Dolores começou a falar empolgadamente
dos desígnios de Deus e que Deus falava com ela em sonhos e lhe dava profecias
e que na noite anterior havia sonhado comigo e que Deus havia falado com ela
sobre mim. Ora, já era uma deixa para escapar daquilo tudo, já estávamos no
estacionamento, ela se aproximando e eu com medo de passar-lhe o vírus ou o
vírus dela passar para mim. Na verdade, nem sei ou sabemos se estamos ou não
contaminados. Acho até que meu maior medo era o vírus da religião dela me
contaminar o cérebro e me levar à loucura de passar a acreditar numa salvação
para além de não querer cortar os pulsos ou tomar todos os remédios juntos,
misturados com o que restava da garrava da melhor cachaça que eu tinha em casa.
Mas sou fã de carteirinha do Aldir Blanc Mendes, tomei um porre homérico no seu
aniversário de 70 anos e sua recém morte em maio passado – não vou mentir –
mexeu comigo. Não há um substituto para um artista como o mestre. Nem para a
sua coragem. Enfim. Realmente mexeu comigo.
Uma vez vi um vídeo do Aldir
testemunhando sobre a Elis Regina, em comemoração aos seus 70 anos, em 2015, por
sinal, um testemunho muito bonito. Ele comentava sobre a espiritualidade da
cantora, rezas, essas coisas, mas o que sempre me chamou atenção e volta
constantemente na minha cabeça, é a parte em que ele dizia achar deselegante,
apesar de ateu, recusar uma reza de alguém. Porra, nem ateu eu sou! Sou
agnóstico e se o Aldir Blanc achava deselegante receber reza, passe, a coisa
que fosse, por que eu não poderia ficar mais uns minutos da minha medíocre vida
ali parado naquele estacionamento de supermercado, me expondo a um vírus
desconhecido e que, inclusive, havia levado o próprio Aldir um mês antes, para
ouvir sobre algo desconhecido de uma velha conhecida?
Dolores começou a me falar de sonhos e
das “revelações”. Pois o sonho vindo de Deus era uma coisa mais profunda, ela
disse algo assim. Talvez, eu esteja pecando pelo esquecimento e falta de
atenção naquele momento. Mas foi algo assim, eu sei que foi. O meu pensamento
ao ouvir aquilo tudo é que não esqueço, foi uma fração de segundo, mas parecia
uma eternidade: meu pensamento sobre os sonhos. Os sonhos que
tive até aquela conversa:
Porra, sonho todo mundo tem, Dolores!
Eu tive muitos sonhos bons até determinado momento da minha vida. Até aqui. Até
ontem. Me lembro bem do meu primeiro sonho: ganhar o Quartel General do
Comandos em Ação (ou G.I. Joe). Eu tinha vários bonecos, muitos bonecos. Hoje
você não encontra essa merda por menos de dois mil e quinhentos reais! Cheguei
a escrever para o Porta da Esperança, aquele programa do Silvio Santos. E
escrevi incentivado pelo meu pai, que era gerente de uma cadeia de lojas de
brinquedos e outras coisas, uma empresa que seria o que é hoje uma rede de
lojas de departamentos. Meu pai tinha o dinheiro e a oportunidade de me
presentear com aquilo, mas preferiu “incentivar” minha escrita. Nunca ganhei o
Quartel General do Comandos em Ação, Dolores! Claro que tive outros sonhos com
brinquedos, sonhos estúpidos como todo sonho infantil com brinquedos. E de se
pensar que eu era uma criança que tinha tudo quanto é brinquedo e
parafernálias, se eu pensar muito nisso meu psiquiatra, que não vejo faz dois
meses ou um pouco mais e nem sei se está vivo, teria que aumentar minhas doses
de remédios e estou querendo parar com a merda desses remédios. Mas me lembro
de outro sonho, mais divertido. Eu sonhava muito com a Natália Lage, sonhava
namorar a Natália Lage, não sei, acho que eu tinha uns 11 anos, coisa assim, um
pouco mais, talvez. Mas não dá para esquecer que ela foi meu “primeiro amor”.
Engraçado que não havia erotismo nos sonhos, confesso que nem lembro se eu me
excitava, certamente eu nem sabia que palavra era essa. Pois o que me chamava
atenção nela era o sorriso, os lábios, e eu nem imaginava tocar naqueles
lábios. Na verdade, eu tinha era uma admiração, sei lá, alguma coisa assim,
entende, Dolores? Eu via a Natália Lage na TV e pensava: “essa menina deve ser
muito inteligente”. Lógico que o tempo passou e com ele passando comecei a ter
sonhos sexuais e meu maior sonho era fazer sexo, mas só me restava a
masturbação vendo pornochanchadas ou a Sylvia Kristel nas madrugadas de sábado
em Emmanuelle. Quando realizei o sonho de fazer sexo, vi que era bom. E era
melhor ainda quando eu satisfazia de verdade minha parceira sexual, entende,
Dolores? Mas isso também foi se tornando um problema. Pois sexo não é uma mão
única, seja você pensando em agradar o outro ou agradar a si mesma, Dolores. O
sexo é uma coisa, por sinal, muito importante na vida, uma das coisas mais
importantes, na verdade, ao menos eu acho. Ele harmoniza perfeitamente, mesmo
na casualidade, o universo. De qualquer maneira, esse sonho – fazer sexo – eu
realizei. O que fode aqui no meu pensamento são os sonhos que não realizei.
Minha cabeça começa a doer enquanto você fala sobre seus sonhos proféticos e
sua imaginação de ter recebido, como uma Moisés feminina, uma ordenança sobre a
minha pessoa, de um ser que não deveria possuir artigo masculino e ser
assexuado. Eu tinha um sonho de ser entrevistado pelo Jô Soares no seu
programa. Caralho, o Jô não tem nem mais programa! E está velho também. Espero
que com saúde. Eu sonhava em tomar alguma coisa naquela canequinha que tinha na
frente dos convidados, ser cortado por ele durante a entrevista, sorrir
elegantemente. Sonhava também em um cara a cara com a Marília Gabi Gabriela.
Aquele bate bola que ela fazia no final do programa. Que mulher provocante,
inteligente, aquela voz. Sonhava em participar do Sem Censura com a Leda Nagle
e, puta merda!, a Leda nem trabalha mais no Sem Censura! Eu sonhava em
casar-se, sabe, Dolores? E me casei. Porra, mas foi a pior coisa que eu fiz
para com quem eu me casei e para mim. Casamento tem seus altos e baixos,
momentos bons e momentos ruins, mas se casar, pode acreditar, por si só já é
uma escolha de merda. Tanto que divorciei. O pior dos sonhos não realizados, da
voz na minha cabeça, era simplesmente tomar um chope, veja bem: UM! Apenas um
chope com o Aldir Blanc, mas ele morreu. E agora você aí falando sem parar
sobre o sonho que teve comigo, sobre o seu Deus. Mas não posso ser deselegante.
O Aldir não seria.
Dolores por fim disse que na sua
igreja, foi o máximo que eu consegui captar após a rapidez dos meus
pensamentos, todos os dias havia reuniões de ungidas e ungidos (ela não falou
ungidas e ungidos, eu separei a coisa do “ungidos e ungidas”). Umas trinta
pessoas, segundo disse, para rezar e receber as profecias de solução contra o
vírus. E disse também que o vírus não os atingia – Dolores ficou muito
ruborizada quando falou isso, não sei se por minhas sobrancelhas terem se
movido de forma inquisidora. Por sinal, sobrancelhas bem delineadas
naturalmente, isso uma parceira que tive falou certa vez na cama. Inclusive,
seu fetiche eram minhas sobrancelhas, por isso fazia sexo comigo, ela disse.
Dolores tirou a máscara, gesticulei que
não. Fiquei sem palavras. Seus lábios continuavam lindos, perfeitos. Mas não
tive nenhuma excitação, ereção. Não havia nenhum sentimento erótico por ela em
mim. Quando voltei rapidamente à realidade, falei sobre a lei estadual para o
uso de máscara em locais públicos. Dolores e seus lábios perfeitos e seus
dentes perfeitos sorriram para mim. Meus dentes, por sua vez, estão amarelados
de café e cigarro e acho que estou perdendo um dente lá do fundo. Dolores com
sua voz suave disse que Jesus, o Salvador e, consequentemente, ela, estavam
acima da lei dos homens. Eu não aguentava o meu mau hálito de café e cigarro
dentro da minha máscara, mas sorri – o que foi bom estar de máscara, pois assim
ela não viu meus dentes amarelados, sempre tive dentes bonitos quando jovem – e
brinquei que as mulheres também faziam leis. Ela ficou séria, parou de sorrir.
Retrucou: você não acredita, não é?. Respondi honestamente que não.
Honestamente, como sempre fui para todas as mulheres que me levaram para cama –
não, nunca consegui levar uma mulher para cama, convencê-la a fazer sexo
comigo, eu sempre fui tímido, talvez, tenha alguma relação com os sonhos não
realizados, não sei, o Quartel General do Comandos em Ação. De todo
modo, expliquei que respeitava tudo o que ela havia dito até então, mas que eu
era agnóstico, agnóstico como quando ela me conheceu e nos relacionamos. Seu
rosto ficou mais sério. O rubor de timidez, leve vergonha, talvez, não sei,
tinha mudado. A ira, por sinal, um pecado capital para a Igreja Católica, não
sei se também é aplicada a noção de pecados capitais para as igrejas
Evangélicas, tomou-lhe de assalto como costuma tomar religiosos e partidários
políticos, seja da Esquerda ou da Direita, porém, atualmente, muito mais os
doentios, cegos e seguidores do fascismo que se instalou no nosso país, cujo
misto de religião e política transforma-os em vozes destoantes em si mesmos e
até mesmo frente aos seus apoiadores externos, se é que em algum momento eles
tiveram algum apoio. Ninguém sabe, muito menos eu. Mas a Extrema Direita
tupiniquim é muito esquisita e burra. Mas qual extremismo não é?
Aqueles lábios perfeitos se cerraram.
Eu já havia visto aquela cena uma vez no fim. Seria mais uma vez o final?
Dolores está foragida. Agora estou
internado em repouso num quarto de um hospital da rede privada, com cobertura
do meu plano de saúde. A rapidez de alguém ter ligado para o 192, a agilidade
da equipe de socorro do SAMU, o atendimento dedicado dos enfermeiros e da
médica da urgência do hospital público mantido pelo SUS, a cirurgia bem
sucedida, mesmo após uma parada cardíaca na mesa de operação... me salvaram de
vir a óbito ali no chão de asfalto daquele estacionamento. Morrer só. Todos nós
vamos morrer sós. Foram dois tiros à queima roupa na barriga. Após a liberação
de transferência, muito gentilmente, o cirurgião que me operou no hospital
público me fez uma visita no hospital pago (e caro), senti sua mão leve e macia
apertando meu tornozelo esquerdo por debaixo do lençol sem cheiro e alvo como a
neve: Ataulfo, você só está vivo por um milagre!