terça-feira, 18 de novembro de 2014

A nostalgia contemporânea, os cabelos cacheados, o velho novo mundo

Acho que começou como eu queria, me parece que a voz ecoou consideravelmente na conversa de abertura do velho Ventríloquo. Acho que hoje posso fechar a parte dois da saga “A nostalgia contemporânea” que se iniciou naquela mesa de bar virtual do texto passado. Assim como aquele, este já estava pronto, como pronto estão sempre meus tons de voz, seja pedalando, dirigindo ou caminhando, não necessariamente nesta ordem vulgar de coisas. Converso sozinho. Mas, sozinho não me construo.
Ficou claro o impacto marcante da minha última ida ao Rio de Janeiro e lembrei de algumas coisas fundamentais percorrendo a cidade acordando: Os mendigos se recolhendo, os trabalhadores vindo do subúrbio, o boteco, a lanchonete de sucos. A vida pulsante na grande cidade. Se é que a vida pulsa ali ou se é que não pulsa já da mesma maneira nas pequenas capitais.
Começo pelo “velho mundo”. É fato, meu velho mundo morreu, talvez, ainda restem resquícios fortes e necessários de reavivamentos de memória. Mas, isso, não lembro se comentei, aos poucos, apesar de estrangeiro em terra minha, com cada pedalada, cada passo trocado e esbarrão de ombro na pressa das calçadas cheias, fui readquirindo o velho traquejo, a ginga citadina. Ao menos, do menos de tudo, o sotaque não perdi. O mundo que é novo, não deixa de se inserir no mundo que é velho, mas as coisas mudaram. A questão é: os valores não podem mudar e essa luta é diária, é constante. Que seja. Me recordei dos cabelos cacheados da menina. A história é curta e vale um chope. Nada demais. Talvez, eu até seja tacanhamente poético. Ou não.
A coisa toda perde acento, pois não lembro seu nome e vagamente consigo desenhar com palavras como caminhava, meio desengonçada, meio menina magra. Mas de uns olhos de um profundo verde e cabelos castanhos cacheados. A pele branca porcelana. Ela acreditava na revolução. Eu não. Talvez, a única amiga que me sobreviveu verdadeiramente de amizade na época de graduação em História se lembre. Mas eu não. Eu não lembro e não acreditava na revolução. Aliás, eu não acreditava em muita coisa além daquilo que eu necessitava questionar.
Eu me recordo bem que ela me pedia suplicante que tocasse Lua de São Jorge no violão e eu não sabia que raio de música era aquela – hoje eu entendo – mas na época eu não entendia e continuava sem entender. Ao passo que o tempo foi passando, fui ficando cada vez mais relapso com o que havia de sonho na realidade daquela menina. Só sei que ela começou a namorar um cara do subúrbio como eu, de um subúrbio melhor subúrbio que o meu, perto de uma linha de trem, mais perto do que a linha de trem que passava no meu subúrbio. Ela e ele acreditavam na revolução, talvez, ele menos que ela, ou mesmo ele não. Eu era certo que não.
Eu tinha lá minhas predileções. Na verdade, queria descer a ladeira da minha casa e voltar em paz e sem ser assaltado. Conseguir de alguma forma me sustentar com aquilo que eu gostava e havia escolhido fazer. Para os meus pais aquilo tinha uma importância tamanha: Eu ser feliz. Meu pai e minha mãe eram revolucionários. Foram revolucionários. Eu estava sendo revolucionário não sendo revolucionário? Afinal, se eu fosse revolucionário como os meus pais, não estaria sendo conservador demais? Coisas de menino.
A questão é que meu pai saiu criança dos rincões do Paraná direto com a família para ser colono em Cordeiro no Rio de Janeiro – ele me re-contou essa história recentemente enquanto me visitava, aliás, quando voltei de minha rápida viagem ao Rio. Lá, ele ordenava vacas, cuidava de bois no pasto, tinha oito anos. Seu irmão mais velho, aos doze rumou para a capital e foi trabalhar abrindo valas, aquelas valas largas em Manguinhos para passar a tubulação. Comprou um sítio em Mesquita, no alto do morro e voltou para Cordeiro aos dezesseis anos, pois aos dezesseis anos dele Mesquita era um buraco perdido qualquer. Meu pai conta que lembra bem: “Vamos embora, vamos para o Rio”. Papai se escondeu no pasto, gritava que não queria abandonar as suas vacas e que viver na cidade grande ia ser ruim. Meu tio também já me contou a história, mas em tom gozador da frouxidão do meu pai garoto.
Minha mãe sonhava em ser enfermeira. Ela tinha que ser enfermeira. Mas parou de estudar para sustentar junto com a irmã mais velha uma casa com mais cinco irmãos. Como nômades de um pai ótimo sapateiro e uma mãe ótima cozinheira viviam de casa em casa de favor. Quando eu tinha oito anos de idade minha mãe se formou num curso de auxiliar de enfermagem e passou a dar plantão. Quando eu tinha vinte, minha mãe orgulhosa terminou o curso técnico de enfermagem, só pelo prazer de dizer que era técnica em enfermagem. Para os meus pais, o Segundo Grau técnico era um título grandioso. Não era mentira. Eles acreditavam na revolução. Eu não. Coisas de menino.
Mas, as pessoas mudam. A revolução que eles falavam era baseada no estudo. E para meus pais tudo de mais importante na minha vida deveria perpassar pela leitura e pela escrita. Logo, pela escola. No fundo, meus pais não sabiam ou sabiam. A revolução pela qual eles lutavam se concretizaria em mim e o instrumento era a educação familiar e a aquela que eu receberia em boas escolas, nas melhores escolas que eles poderiam me dar.
Meu pai, quando defendi minha tese, não chorou, esboçou alívio. No dia dos pais, de surpresa, enviei por Sedex um exemplar encadernado com dedicatória em sua homenagem. Aliás, na dedicatória de minha tese se lê:
“Dedico esta tese à minha mãe, Isabel Cristina Gonçalves Alvaro, por me ensinar o amor ao trabalho que extrapola as lógicas da vida; ao meu pai, Apparecido Alvaro Filho, por me ensinar a responsabilidade que traz a dedicação ao ofício que escolhemos para sobreviver. Vocês dois são meu maior trunfo e orgulho! Meus melhores professores!”
Dias depois, mamãe me contou por telefone que meu pai, ao atender seus clientes na rua, em dias de trabalho, estava carregando o exemplar nas mãos e antes de oferecer os produtos – meu pai é representante de vendas de uma empresa Química, o melhor, diga-se de passagem – mostrava orgulhoso as poucas páginas que redigi para obter o tão sonhado título de doutor em História. E meu pai tem um orgulho que talvez eu não tenha: meu filho é verdadeiramente um doutor. Meu pai acredita na revolução. Eu também. As pessoas mudam. Gostaria de me encontrar, talvez, cruzar meus olhos com a menina da graduação, apenas perguntar: Fulana, como vai você? Eu agora acredito.
E foi essa crença maluca que me levou a pegar um metrô até Botafogo quando o Diego Viana me enviou uma mensagem, avisando que estaria por lá com mais uns amigos. O Viana deve ser um dos últimos jovens bastiões que tentam heroicamente manter uma certa regularidade de boa reflexão em bloges quando o sumidouro das redes sociais tragou o velho e bom debate. A nostalgia.
A média de idade naquela mesa de bar pairava nos doce trinta e poucos anos, mas a nostalgia que imperava ali parecia que cada um de nós havia vivido vários verões. O Ventríloquo data de 2007, antes disso viajei por blogs comunitários de literatura, vendi poesia para gringos na Lapa, recitei no Castelinho do Flamengo. Mas nada foi mais visceral do que o blog. Não sei de quando data o Pra Ler Sem Olhar, aliás, não sei como fomos nos descobrindo. Acreditamos na revolução pela escrita.
O curioso ali naquela mesa eram as ideias se construindo entorno da nostalgia. Piadas nostálgicas, velhos jovens que haviam sido tragados pelos likes do Facebook e que se queixavam da ausência dos debates nas caixas de comentários. Falava-se em feeds, googleranks, palavras chave... E a nostalgia, a cada tulipa de chope suada, naquele dia suado, naquela noite que se rasgava em São Sebastião do Rio de Janeiro, tudo se crivava. Não pude ficar. Mas enquanto, meio bêbado de sono ou de cevada, eu observava a escuridão da baía de Guanabara com um vento fresco e pesado que entrava pela janela do táxi, só pude recordar: eu acreditava na revolução e vivia agora a nostalgia da contemporaneidade!

2 comentários:

Diego disse...

É, bicho, as redes sociais são um sumidouro mesmo...

Mas acreditamos, né? Talvez mais na escrita como, ela mesma, revolução, afinal, não há futuro na idéia de uma revolução que não passe por tomar as rédeas do que se faz – e ao escrever, isso é necessário.

Cara, meu blog data de 2005 e ontem mesmo pensei umas coisas engraçadas, ao consertar os links de tantas vezes que ele mudou de endereço: ter começado esse blog me moldou muito. Muito da minha vida, com suas transformações todas, está registrado ali, de maneiras que às vezes não me dão o menor orgulho, a não ser por perceber a diferença entre aquele eu e este...

Por sinal, depois quero comentar uma coisa engraçada contigo.

PS: Já que você voltou a postar, que tal dar uma atualizada no layout? :-)

Bruno Alvaro disse...

Concordo, Diego. Aliás, olhando, melhor, ouvindo aqui O Ventríloquo, tenho a mesma sensação que a sua sobre minha mudança, minha transformação, amadurecimento, reflexões. Me acho até um tanto bobo em alguns momentos. Me envergonho de algumas postagens, etc, etc. Ainda acho a escrita a mais fundamental ferramenta revolucionária que temos e ela se transmita num caminho de si ao tomarmos as rédeas da vida e provocarmos a tal revolução. Bicho, fiquei curioso agora com o que você tem pra comentar: não vai dizer que ainda vai ficar me sacaneando? Hahahahaha
Resposta ao teu PS: Você me atingiu no calcanhar de Aquiles, vou ter que fuçar isso aqui pra conseguir mudar o layout, um drama desde o começo!