segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

A aspereza da vida

O silêncio ainda rodeia a casa, os cachorros caminham, se deitam, caminham. Não há muito que fazer. Não posso me atrasar, nunca tive o hábito de tomar café, curioso, posso sentir a colher de sopa entrando e se chocando com meus dentes com um Nescal morno e um leite com nata, enquanto sentado na mureta da varanda minha mãe me obrigava a me alimentar antes de ir para a escola. Não sei o que gostava menos.
Não posso me atrasar. O 005 Mesquita X Praça Mauá passa religiosamente no mesmo horário. São os mesmos rostos, do trocador, do motorista, da moça da poltrona alta. Todos com olhares cansados, vidas cansadas. Não entendo bem as coisas, mas meu pai disse que seria interessante para mim, apesar da universidade, apesar do terceiro período, ele tinha razão, difícil ele não ter razão. Apesar de eu já não ir às aulas regularmente.
Hoje o terminal é um museu, não sei que fim deu o bar bem em frente ao ponto do Caxias X Praça Mauá. Dali escoava de quando em quando, também, até uns ônibus para Itaipuaçu e cercanias. Não me recordo a empresa. Era engraçado como as roupas se modificavam, os empregos também, pouco, mas, também. O pessoal do Evanil que fazia Nova Iguaçu X Praça Mauá era meio esnobe, penso eu.
Eu cheirava a querosene, minhas mãos estavam sempre sujas de tinta branca, maldita tinta branca, ou zarcão. Não, eu não tomava banho ao final do expediente, queria sair dali o mais rápido o possível. Digressões.
O que importa para você agora são as manhãs e a conversa com Tereza, não? Como descrevê-la sem sentir um cheiro demasiadamente doce que exalava de sua bolsa quando a abria para pegar um cigarro? Como te falar como ela era sem sentir na minha boca aquele gosto de pão francês com bife à milanesa que eu tomava no café da manhã naquele bar que agora me foge o nome da memória? Como? Não sei nem se posso impostar a voz e tentar imitar os emigrantes que trabalhavam ali ou os chineses que saíram do cais, dos enormes navios e passaram a noite inteira fodendo e bebendo.
Nunca perguntei sua idade, mas, assim como ela eu sempre tomava café no mesmo banco redondo de haste de ferro e assento de madeira envernizada. Nos primeiros dias, sequer nos olhávamos. Na verdade, eu a espiava de canto de olho quando acendia com uma delicadeza seu cigarro de filtro amarelo ou sei lá o que.
Eu procurava variar minha rotina, meu pai, figura forte em minha formação, sempre me aconselhou jamais fazer os mesmos caminhos, ter os mesmos hábitos: “Podem estar te vigiado”, ele dizia. Logo, dia sim, dia não, tomava café numa birosca diferente da Praça Mauá, as biroscas estão acabando, assim como a Praça Mauá. O único lugar mais atrativo e com comida decente era aquele boteco ao lado do puteiro que também não me lembro o nome. Puteiro muda muito de nome no centro do Rio. Não acabaram com o bar e nem com o puteiro.
Ali se servia um tal “Copacabana”, pão com ovo estrelado e queijo prato e, sim, o impecável pão com bife à milanesa. O lugar era decente, dentro do que você possa entender ou como queira entender por decente. Minha tese é que a comida tinha que ser boa e era boa pois servia as putas de uma longa jornada, os marujos do cais do porto, os milicos da Marinha, mendigos, continos e jovens atendentes de telemarkting.
Tereza e eu éramos parte da clientela padrão, logo, frequentadores assíduos. Num dia após um serviço de domingo para segunda de feriado, encontrei com ela sentada no cativo banco, o dia era vazio, o centro vazio. A Praça Mauá só tinha pombos e mendigos e uns poucos marujos saindo do Primeiro Distrito Naval.
Nunca perguntei sua idade, ela sabia a minha, sabia que eu era passageiro ali, que logo voltaria para a rotina da universidade e que o desvio de percurso era apenas para eu aprender que a vida era áspera como a barba de um alguém desconhecido em seu pescoço naquela noite anterior de tantas outras noites anteriores. Não havia tanta poesia assim em suas palavras. Aliás, não há poesia na miséria, tirando as fotos feitas pelo Salgado, não?
Foi a derradeira conversa. Ela me perguntou de forma tão doce quanto o cheiro que exalava da sua bolsa, o cheiro misturado com o frescor da menta que saia da sua boca com o cigarro: “Você é estranho, garoto. Nunca vi boyzinho assim não comer puta”. Não disse a ela, mas digo agora: tenho o maior respeito pelas prostitutas. É lugar comum dizer que é a profissão mais antiga do mundo. Maria Madalena, dizem, era prostituta antes de conhecer Jesus, mas, dizem também que, na verdade, continuava puta para sustentar o mesmo Jesus em suas andanças. Há lógica nisso. Houve um tempo no Brasil que vendia-se sangue, legalmente. Boyzinho é o marujo jovem, chamam assim na Marinha, que se saiba, não era minha condição social debatida naquele balcão, mas, meus status quo de marinheiro-recruta. Digressões e mais digressões. Entenda como quiser.
"Me falta curiosidade", respondi. Na verdade, me faltava disposição, dinheiro, tempo, sagacidade, coragem, dinheiro e, talvez, até tesão naquela fase da minha vida. Ela riu. Continuou com o “estranho”. “Estranho, muito estranho. Tu é viado?”. Era uma das frases mais colocadas quando, desde a escola de formação, grande parte dos garotos no auge dos seus dezoito anos pegavam os 200 reais que recebíamos e corriam para pegar o ônibus até a Vila Mimosa, e eu permanecia no alojamento lendo. Na verdade, me faltava disposição, coragem, sagacidade.
Eu ri e disse que não. Ela retrucou que tinha muito amigo desviado e que cortava pro outro lado, para eu não me envergonhar. Eu ri novamente. Sorvi um gole de suco de laranja azedo e perguntei de seguida: “Você mora onde?”. Ela se assustou e perguntou: “Você está apaixonado, é?”, “e se fosse?”. Ela riu sem graça. Não, eu não estava apaixonado, mas Tereza, Tereza era seu nome, eu já te disse, não?, me chamava atenção por ser ser humano como eu, ter uma vida e uma história. E a vida é áspera para alguns.
“Moro no Catumbi num apartamento alugado com mais uma amiga, puta também, bom que você saiba”, “por que é bom que eu saiba?”. “Não sei, se quiser me visitar.”. Pobre Tereza, pobre de mim. Eu não sabia onde era, naquele tempo, o Catumbi. Ir pro centro do Rio já era uma vitória de 29 quilômetros que eu estava festejando há meses sentado feito gente grande naquele balcão revestido com uma chapa de alumínio gasto.
“Você faz muitas perguntas. Pergunto eu agora”, “certo”. “De onde você é?”. “Moro em Mesquita, curso faculdade de História, acho que não tenho muitos planos e estou na Marinha de passagem, me alistei e calhou de eu servir”. “Que merda, hein?”, “nem tanto”. “Quando você vai visitar o inferninho como os teus amigos?”, “acho que nunca, não gosto da música, de lugar escuro, do cheiro de cigarro e bebo pouco”. “Você é uma graça, dá até pra me apaixonar e não te cobrar nada”. Eu lembrei do Belford, um negro forte que serviu comigo e me chamava de irmão branco, além de filho da puta. Eu não entendia essa lógica dele, me chamar de irmão e complementar: filho da puta! Morava na Vila Vintém e quando mataram o Celsinho da Vintém, chorava pelo alojamento de um lado para o outro: “ele me deu meu barraco, ele me deu meu barraco!”. Acho que era mentira, coisa de momento, pra fazer frente a cada um de nós, cada um vindo de um lugar, uns de favelas, comunidades, Baixada, Zona Sul, interior, cada um com sua história e sua estratégia para manter pulso firme frente ao desconhecido. Reencontrei o Belford uma vez na Praça do Canhão, em Realengo. Eu estava namorando e ouvi alguém gritando “filho da puta”. Era o Alexander Belford com seus dentes brancos e sua pele brilhante de ébano. Nunca mais o vi. Digressões. Belford comeu uma puta na Vila Mimosa e só queria foder com ela, somente ela, me contava que a menina estava apaixonada por ele e ele por ela. Nunca mais a viu depois que concluiu a escola de formação. Falamos rápido sobre isso no nosso encontro de sortilégio na Praça do Canhão. Digressões.
Pobre de mim, e Tereza me lendo com seus dentes certos e seu cheiro doce. “Quer um chiclete, boyzinho? Você não fica puto d’eu te chamar assim? Muitos dos que trepam comigo ficam”, “Não.”. “Não, pro chiclete ou pro boyzinho”. Tereza era inteligente, possuía a sagacidade das ruas, da cama rotativa com homens desconhecidos, uns porcos, grossos, violentos e sujos, outros tímidos e broxas, boyzinhos. Tereza, nunca perguntei sua idade. Digressões naquela manhã de segunda, feriado.
“Posso pagar sua conta?”, “Não, quem paga as minhas contas sou eu, por isso me deito com quem eu quero, entendeu?.” e riu, ajeitou a bolsa e repetiu: “Eu até poderia me apaixonar por você...”.

Nunca mais vi Tereza e agora prostrado na frente do bar da minha memória, me pergunto em voz alta que fim há para a aspereza da vida?

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