Acordei suado. Não tanto pelo calor, mas pela lembrança que
ativou meu instinto de querer conversar com alguém. Aquela vontade insana de
desabafar e falar desenfreadamente como bêbado. Molhar a mesa, deixar derramar
o chope, abraçar o garçom. Quase uma epifania de fim de carnaval ou o gol de
barriga do Renato Gaúcho no final do Estadual. Salve o futebol.
Não sei ao certo o ano ou a data. Mas, posso dizer com
certeza que era sábado, final de inverno. Certeza, sem dó!
Sábado, o pai me levava religiosamente para a Vila Emil para
eu jogar futebol no Barraquinho, time
de moleques oriundo do Barracão. Camisas listradas, vermelho e branco vertical,
shorts e meiões brancos ou vermelhos. Praticamente o uniforme do Bangu F.C. O Barracão era um tradicional time do
morro que rivalizava com o Verona,
time do meu pai, camisas com listras pretas e amarelas verticais, calção preto
e meiões amarelos ou pretos. O couro comia.
Era o cheiro forte de couro que marcava minha bolsa de
carregar chuteira, cheiro de sebo de carne de boi e couro. E sei que era final
de inverno, pois as manhãs em Mesquita ainda eram um pouco frias e aos poucos o
sol ia esquentando, formando nos matos do quintal um suadouro bonito, o orvalho
da noite anterior se dissipando, assim também era na grama que coçava as pernas
onde a gente jogava e sujava a bunda no chão escorregando ao tentar correr.
Daquele sábado, eu pouco me lembro da partida. Se o Barraquinho ganhou, se o Cizinho, o
treinador do time, me deixou jogar os dois tempos. Mas sei que atuei na lateral
direita, pois era difícil competir com o Tato (um dia falo sobre ele), se
marquei bem, dominei bola, fui um atleta mirim elegante, só o tempo dirá. Acho
pouco provável.
Só sei dizer que logo de manhã o que me fez hoje acordar um
tanto mais suado que de costume e ofegante, por sinal. Me sentar na beira da
cama e me olhar no espelho, vinte anos depois daquele sábado, daquele jogo,
daquele final de inverno, foram uns cabelos negros e suavemente cacheados, um
short jeans com dois três botões sendo o último da cintura aberto – moda entre
algumas meninas dos anos 90 –, um tope escuro e uma leve brisa que subia do seu
corpo estendido no chão. Uma faixa de sangue escorria por algum lugar que eu
não tive muita coragem de observar. Mas ouço bem a voz firme do meu pai dizendo
que tinha pouco tempo que estava morta, pois o sangue ainda exalava calor e a
manhãzinha fria que aos poucos ia recebendo o calor do sol criava aquele fenômeno
que ele não sabia o nome e eu ainda hoje não sei e se sei esqueci, pois pouco
importa para nós.
O corpo estava lá estendido, poucos metros entre a lateral e
a linha de fundo das traves do gol. Quase no escanteio. Ficou lá, em escanteio.
Meu pai finalizou o tento, quase como um legista da Civil: Deve ter morrido por volta das seis, seis e meia... Eram sete e
pouca da manhã.
O dia corria, eu me vesti, calcei os meiões e as chuteiras.
Lateral direita. Tenho certeza. Numa disputa de bola com um menino maior e mais
forte do que eu – não era difícil existirem meninos maiores e mais fortes que
eu – tomei um tronco no ombro a ombro e caí na linha de fundo. Lateral esquerda
do meu oponente. Eu canhoto, isso desequilibrava o time adversário sempre, hoje
eu entendo o velho Cizinho com o cigarro nos dedos e o copo de cerveja na outra
mão. Até meu pai sabia da coisa. Porém, naquele dia quem se desarmou fui eu. Eu
no chão, olhos fechados da queda e vinte anos depois, volta e meia quando abro
os mesmos olhos de menino revejo aquela garota deitada de barriga para cima,
cabeça para o lado olhando para mim já sem vida, já sem sonhos. E era só mais
um corpo estendido no chão que só foi retirado pelo rabecão na metade do
primeiro tempo.
No intervalo da partida, o Bicho da goiaba, que conhecia
todas as informações sobre os mortos em Mesquita e região, contou que ela havia
sido morta por ter passado informações para os traficantes da boca de fumo
rival da região. O Bicho da goiaba era praticamente o Jornal O Povo ambulante, se se vestisse de rosa e tivesse tatuagens
com letras pretas de fato pareceria as páginas com os corpos furados de bala
das capas do conhecido jornal. Não havia nome, identidade e jamais haverá: foi
apenas mais um corpo estendido no chão, o primeiro que eu vi tão de perto e que
carregarei comigo para sempre.
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