És minha
O poente na espinha
Das tuas montanhas
Quase arromba a retina
De quem vê
Trecho de Carioca (Chico Buarque As Cidades – 1998)
Pensando bem, pensando fundo, ainda não esbocei minhas impressões sobre minha nova terra: Sergipe. Claro que minha voz não terá um alcance tamanho, a ponto de esboçar quais seriam realmente os mistérios sergipanos. Melhor, na verdade, encurtar a canção e narrar com os olhos da voz a cidade de Aracaju.
Pois aqui é assim, há um descompasso grande entre as regiões do estado, isso eu observo pela fala dos meus alunos que, aliás, têm se tornado impressionantemente agradáveis comigo. Levando em consideração minha especialidade, meu foco de pesquisa, ser bem recebido aqui por quem mais me interessa – eles – foi algo muito especial. Então, de certa forma, a melodia de hoje, a voz de hoje, vai para eles: minha primeira turma na Universidade Federal de Sergipe.
Sei que ainda é cedo para marcar impressões definitivas e palpáveis sobre a turma em questão, mas, no mínimo, e se é esforço ou não, confesso que não parece nem um pouco, eles estão me aceitando muito bem.
Quando pisei aqui pela primeira vez, ainda para fazer o concurso de provas e títulos, juro que pensei: preciso morar aqui. A cidade tem um aspecto que me lembra muito a Região dos Lagos no Rio de Janeiro, Rio das Ostras, por exemplo. Claro, lembrando que mal ou bem, a cidade de Aracaju mantém uma regularidade de bares funcionando, meio, digamos, capengamente, para um carioca acostumado com a noite virando dia, enquanto que na Região dos Lagos, no Rio de Janeiro, a alta temporada se dá no verão e é o que possibilita os bares abertos.
O engraçado, e pelo que me disseram os doutos daqui, é a identidade sergipana, ou a falta dela, eles dizem e eu, até agora, acabo concordando, meio sem graça. A gente que vem de fora vê tanta coisa boa, mesmo sem ignorar as coisas ruins, e o pessoal daqui não percebe o quanto aqui é bom. Os próprios alunos, na grande maioria, e já conheço algumas exceções, não perceberam o passo tão grande dado de estarem numa instituição federal, ainda mais, por ser ela a única universidade pública do estado.
E o mar? Ah, o mar realmente não é lá Copacabana, mas é limpo, o que não é na maioria das praias do Rio de Janeiro, está certo que para chegar até ele, propriamente dito, a gente percorre uma enorme, enorme, enorme faixa de areia que incomoda até os sergipanos! Mas veja bem, as praias, mesmo em Atalaia, têm um ar virgem mesmo quando estão lotadas. É lindo de se ver o povo todo ouvindo seus axés, forrós e por aí vai. Não há barquinho, não há garota de Ipanema, meu camarada, é forró, trio pé de serra, ou então, muito, mas muito mesmo, forró elétrico – perdão pela conceitualização errada, sou um leigo.
Coisa ruim de Aracaju? Transporte público. Ônibus aqui é uma complicação só. Caindo aos pedaços, sucateados, lotados, demorados, sem horário certo, pior que Japeri X Central no Rio de Janeiro em horário de pico! Acredite, eu sei do que estou falando. E as filas? Que saudade das filas! O pessoal não faz fila não cumpadi! Dar lugar para mulher? Vagãozinho rosa, é coisa de metrô do Rio, aqui é papo de macheza! Se você, der uma de cavalheiro, permitindo alguma dama passar a sua frente, um bando de gente te deixa para trás (sim, até aprender já perdi muito ônibus por falta de espaço). No início era engraçado, agora faço parte daqueles que odeiam o Terminal DIA (Distrito Industrial de Aracaju).
Dirigir aqui é aventura. A maioria parece que comprou a carteira, mas, sem participar das aulas de direção. Pois carteira de motorista todo mundo compra, mas uns participam das aulas, pelo visto, a maioria aqui não. O engraçado é que até mesmo quem dirige aqui reconhece a barbeiragem. Camarada, Deus não dá asas a cobra, o trânsito é uma maravilha comparado a Rio e São Paulo e eles aqui reclamam. Mesmo assim, até isso é gostoso e divertido em Aracaju.
O povo daqui? É brasileiro e vai bem obrigado. É engraçado, é bonito, tem o charme deles, cor, sotaque... Gente feliz. De um pronto... gostoso de se ouvir, quase infantil até na voz dos mais velhos. Um ié? que só quem é daqui sabe dizer. De vez em quando um êta caralho...! sai dos mais revoltados e, claro, o filho do cabrunco, xingamento mais forte, ainda não ouvi contra mim, espero manter longe! Pelo menos até eles verem as notas!
Eles não brindam o copo gelado e suado de cerveja. Curioso isso, não há esse hábito. O copo se enche, cada um toma o seu e vamos que vamos com a vida e a prosa. Senti falta disso. Dia desses, reclamei com um aluno. Recitei o famoso ditado “um dia sem brindar, dez anos sem trepar”. Coisas de carioca. Coisas de carioca. Me lembro que na época de mestrado dava até briga se alguém bebesse antes de brindar no Araponga ou no Bar das Putas! Kimon então era um dos revoltados. Grande tijucano...
Me sinto um Quixote aqui, um tanto inocente à realidade desse povo que me recebeu tão bem. Que quero aprender sobre, ajudar e, principalmente, ser ajudado. No condomínio, para os porteiros e faxineiros, sou o “Carioca”, para os mais recatados “Seu Carioca”. Me perguntam sobre a PM do Rio, a violência, as praias, as mulheres, o samba, ah, o samba!
Tai o curioso da vida, Gustavo quando me telefona ou me escreve, sempre me trata por “Sergipe”, vai ver que é isso, meu primo irmão, para vocês aí no Rio de Janeiro serei de agora em diante o “Sergipe”, mas aqui, aqui meu camarada, eu sou o “Carioca” e que me perdoe você, bem mais carioca que vocês aí!
O Quixote continua guerreando contra os moinhos de vento e eu, eu só deixo o vento invadir meu apartamento, me deito em minha rede, tomo minha cerveja gelada, leio um bom livro, ouço o bom e velho Chico Buarque e me lembro, logo, logo estarei no Rio de Janeiro, mas meu lar, meu lugar, minha terra, agora, mais que nunca, é Sergipe... Aliás, “pense numa coisa boa” e você vai acabar parando aqui!