quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Ninguém merece ser feliz ao acaso

Enquanto esperam apressadas para mergulharem no sumidouro profundo que são as quatro pistas da Presidente Vargas. Enquanto se acotovelam e não se olham, as pessoas que estão ao seu lado não sabem que você está ali. Você não existe e logo sumirá. São cheiros de fragrâncias misturadas ao suor dos corpos no fim do dia – mas ninguém sabe que você está ali.
Mal sabem que por trás desse olhar pacato, comum, jaz uma vontade imensa de gritar, parar o trânsito sem ser por sinal vermelho, congestionamento, assalto à mão armada ou atropelamento.
Mal sabem que você quer abrir os botões da camisa e pôr para fora a todos pulmões um grito de liberdade, um grito vazio de liberdade, como um mendigo que se hospeda nas marquises dos prédios da Presidente Vargas. Um grito. Apenas um grito. Elas mal sabem que é um grito que você quer dar ali parado, pacato.
Ninguém merece ser feliz ao acaso.

A cada pista que você atravessa, em cada pessoa que você se esbarra, é o esbaforido suspiro dos pés apertados pelos tênis que hoje você resolveu usar. Cada contato humano é tão sub-humano que a voz do teu grito não seria ouvida por ninguém, nem mesmo por você. Pois a sinfonia descadenciada que você ouve das buzinas, dos burburinhos das meninas e do comentário dos rapazes não quer dizer que hoje seja sexta-feira. Querem dizer que a vida segue. É triste, mas ela segue sem você.

E você, quando vê o boneco do último semáforo piscando, piscando, piscando, avisando intermitentemente que é hora de parar, você corre. Você corre e não pára mais.
Ninguém merece ser feliz ao acaso.
Pega a Primeiro de Março como um louco, ignora os obstáculos da calçada. Você quer ser vento muito mais do que visto e ouvido. Seu grito agora é seu corpo e seus pés calejados te dão a direção do nada que você quer alcançar. De repente você pára.
Esbaforido, coloca as mãos nas coxas, levemente ergue os olhos e vê tantos prédios, tão bonitos, tão cheios de gente, tão cheios de vida. E não se cansa de olhar. Roda de braços abertos no meio do Largo da Carioca, não quer ser mais vento, quer ser pássaro. Quer olhar de perto as janelas dos prédios. As janelas acesas dos prédios. Mas você ainda está no primeiro andar.
Desengonçado, como um louco varrido, sobe correndo o prédio mais alto que encontra, à sua cola um guarda gritando, os contínuos olhando assustados, o velho ascensorista com as mãos na cabeça, pessoas sem entenderem nada, executivos, madames, atendentes e boys – ninguém merece ser feliz ao acaso.
E você corre, já não é mais vento, quer ser pássaro e mais nada. Já não há mais grito, nem sede, nem poços d’água. No alto do prédio você apenas abre os braços, estufa os pulmões e resolve que nesse dia você é um pássaro que canta com notas agudas: Ninguém merece ser feliz ao acaso.

2 comentários:

Francisco Mero disse...

Interessante texto...

Maria Quitéria disse...

Um texto muito bom mas, embora ninguém mereça ser feliz ao acaso, ser primeira página nessas circunstâncias é um preço um tanto alto por um vôo breve.
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Não sei se consegui me cadastrar adequadamente, parece que deu um erro, depois me diz se não consto aí. Se bem que consegui uma tag bárbara e coloquei lá no meu bagunçado blog.

Até mais ler.