sexta-feira, 18 de setembro de 2015

A falsa ideia de praia como espaço democrático e igualitário: Apartheid e eugenia social no Rio de Janeiro

Praia de Ipanema - em algum dia quente de verão


Reuniões oficiais escurecendo outras salas
Onde a tortura faz filho
Na pele de um jovem afro-brasileiro
Na pele de um jovem fodido e sem dinheiro
Catequeses do Medo – O Rappa (1994)



As praias são o espaço mais democrático que existe (no Rio de Janeiro). Esta assertiva, em algum momento, esteve ou foi ouvida saindo da boca de algum carioca. E nas últimas semanas, quase há um mês, certamente, esteve mais em voga no estado do Rio de Janeiro. Aliás, se retirarmos o parêntesis da frase, ela pode ter sido ouvida pronunciada por lábios de sotaques diversos em qualquer cidade litorânea do espaçoso, porém espremido, Brasil. Divagarei sobre o velho Estado da Guanabara, pois há muito a dizer, mas seja puxando o x e o s, seja dando bastante tônica ao t e ao d, não importa muito: AS PRAIAS, AQUELA FAIXA DE AREIA COM INFINITO MAR, NUNCA FORAM DEMOCRÁTICAS!
Antes do funk carioca ter sido descoberto pela classe média dos prédios com porteiros, antes mesmo de ter sido descoberto como manifestação legítima de cultura por sociólogos e antropólogos, ele já denunciava o apartheid vivido pelos excluídos e marginalizados de morros e subúrbios de subúrbios do Rio de Janeiro. Aproximadamente, em 1991, quando a fusão do Miami Bass com tambores tipicamente afrobrasileiros tomava de assalto as rádios numa interessante batalha sonora, um disco conduzido pelo Dj Malboro continha uma inteligente, humorística em sua tragédia de típica crônica e certeira música.
Me refiro ao Melô do Farofeiro, faixa dois do Lp Funk Brasil 3. Observe que naquele tempo ainda se utilizava o termo “Melô”, de melodia, antes do tema que seria desenvolvido na canção. Ao mesmo tempo havia o “rap” disso e daquilo outro. De pouco a pouco a coisa mudou. Mas, prossigo.

Na letra, que reproduzo, é possível ler:

Quando vou à praia eu madrugo na estação
Prá esperar o trem que anda sempre lotadão
Embarco na marra, a viagem é uma barra
Por isso na praia sempre faço a maior farra
Chamam “o farofeiro”
Isso não tem nada a ver
Se chamar de novo, já sei o que vou dizer
Eu moro longe prá lá de Nova Iguaçu
Se você não gostou
Sai da Zona Sul
No bairro que moro o calor é muito alto
Sempre tem alguém fritando ovo no asfalto
Falta água, não tem sombra o jeito é ir pro mar
Mas é só pisar na praia e alguém vem me zuar
Chamam “o farofeiro”
Isso não tem nada a ver
Se chamar de novo, já sei o que vou dizer
Eu moro longe prá lá de Nova Iguaçu
Se você não gostou
Sai da Zona Sul
Quando tô na praia deito e rolo na areia
Não tô nem aí se me olham de cara feia
Levo rádio, levo bola, frango assado prá comer
Levo farofinha que mamãe sabe fazer
Chamam “o farofeiro”
Isso não tem nada a ver
Se chamar de novo, já sei o que vou dizer
Eu moro longe prá lá de Nova Iguaçu
Se você não gostou
Sai da Zona Sul
Antes de ir embora eu dou sempre um rolé
Piso na toalha, jogo areia na mulher
Vou do Leme ao Pontal, prá ver fio dental
Depois pego o buzú e dou calote na Central
Chamam “o farofeiro”
Isso não tem nada a ver
Se chamar de novo, já sei o que vou dizer
Eu moro longe prá lá de Nova Iguaçu
Se você não gostou
Sai da Zona Sul

Em finais de agosto deste ano de 2015, a Polícia Militar do Rio de Janeiro apreendeu, com sua típica truculência, um expressivo número de jovens e adolescentes (apenas um branco) que estavam num ônibus a caminho das democráticas praias da Zona Sul carioca (ver matéria vinculada ao Jornal Extra).
Ora, como a letra demonstra em seu humor crítico a “eugenia social” ainda o é como o foi. Exagerado eu? Que sejamos exagerados quando a crítica recaia sobre os excluídos, amigos! Porém, evitarei ser personalista recordando meus tempos infantis saindo de Mesquita (antigo Primeiro Distrito de Nova Iguaçu) com meus pais, com frango e farofa no isopor. Isso fica para um momento mais alcoolizado de minha parte. Mas, não posso deixar de relembrar também da boa mortadela com pedaços de pimenta e pão francês que com a boca salgada de água do mar parecia ter um sabor único quando eu me sentava em alguma sombra de árvore na Praia do Flamengo para comer ou da minha cara cheia de farelo de Biscoito Globo sujando o banco do ônibus que nos levava da praia até a Central do Brasil para pegar o trem. Deixemos o personalismo de lado nessa conversa.
Todo o exagero violento da PM carioca foi prontamente denunciado pelas mídias, movimentos sociais, arautos da liberdade em suas poltronas facebookianas, locus da contemporânea revolução. Prontamente, houve um recuo quase imediato das “forças de segurança” e o TJ-RJ, após ação da Defensoria Pública, proibiu futuras apreensões (Ver matéria vinculada ao Brasil Post).
Fim do impasse? A liberdade, típica da democracia, venceu? Eu estava errado, as praias são sim os únicos espaços que ainda podemos bradar com peitos inflados como local da ação prática da democracia, cujo direito de ir e vir se manifesta diariamente? Não.
Nada mudou. O antes ainda o é.
E veja bem, confrade, você aí que ouve ou tenta ouvir as múltiplas vozes desse velho e ultrapassado Ventríloquo... Você aí, ouça bem: as praias nunca foram e não são democráticas.
Esse discurso de democracia praiana, nada mais é do que uma sutil artimanha que colocaram, sabe lá Yemọja quando, em bom Yoruba, colocaram na nossa cabeça. A questão, Rainha do Mar, é que seus filhos Ogum e Oxóssi vão continuar tomando porrada no quengo de PM, com recuo ou não das apreensões.
Mas, todo exagero de violência emanada pelo Estado leva automaticamente ao recuo, como eu já disse, do próprio Estado e esse recuo obrigatório cria estratégias para os dominantes manterem a boa e velha dominação, uma vez que o Estado, atualmente, funciona evidentemente para um pequeno grupo dominante.
Numa “jogada de mestre” a Secretaria Municipal de Transporte do Rio de Janeiro extinguiu nada mais nada menos do que 22 linhas de itinerários que ligavam, alguns deles diretamente, as Zonas Norte e Oeste à Zona Sul, fora alguns tradicionais bairros suburbanos que emanam de forma profunda a alma, a verdadeira, carioca que também foram subliminarmente podados de seu acesso direto ao mar: Ramos (esse com seu piscinão), Olaria, Maré, Jacaré, etc. (Ver matéria vinculada ao Jornal O Dia).
A polêmica mais uma vez está posta. Se haverá recuo? Não sei. A questão é que há tempos o Rio de Janeiro, enquanto Estado e Cidade, sempre foi geograficamente separado e excludente em todos os sentidos, ora por cercas, ora pela constante desigualdade. Não se trata aqui de considerar a não democratização da praia, à despeito do que afirmam muitos, como um grosso modo, de que todo carioca do Baixo Leblon àquele que se senta à noite na COBAL do Humaitá para beber um chope gelado é empinado e excludente em seu discurso para com uma maioria que vive nos subúrbios e na Baixada, conheço muitos que não o são. Os olhares atentos de porteiros migrantes nordestinos e a educação que seus ouvidos pacientes contra o preconceito da aristocracia falida que ainda se esforça para tomar café no Copacabana Palace, possibilitou uma sólida educação formal para seus filhos, hoje professores em diversos segmentos, inclusive, universitários, médicos, advogados ou mesmo outros porteiros de olhos atentos e ainda ouvidos pacientes para todo o preconceito de uma classe média fodida, mas que, se tudo der certo e há de dar, terão seus filhos nas cadeiras ao lado dos filhos dessa classe média fodida em boas escolas públicas. Ou seja, a coisa não deu muito certo para a minoria preconceituosa da Zona Sul e essa Zona Sul atual, à parte das já tradicionais favelas coladas, é mais mista e bela do que eles queriam!
O próprio caro e contraditório conceito de subúrbio, talvez, não sei, poderia ser repensado. As casas da Rocinha com belas vistas para o mar ou as de outras favelas localizadas na Zona Sul sempre foram um “subúrbio” lá do alto, mesmo com toda a violência provocada pela demanda por cocaína produzida pelos bacanas do asfalto. Sobreúrbio, talvez. 
E sempre foram as mãos e braços firmes de gente que viaja de Japeri até o Leblon ou que desce as ladeiras dos morros que mantiveram a força motriz e pulsante da cultura que se produziu e se exportou advinda da Zona Sul: Alguém lavava aos copos sujos de uísque do Vinícius de Moraes, não? Cartola, esquecido, foi redescoberto lavando carros.
As praias estão aí, cheias de coliformes e garrafas PET, talvez, esse o melhor exemplo de democracia entre pobres e ricos nas areias das praias cariocas. Porém, estes últimos, financiadores dessa “eugenia social” jamais devem se esquecer que assim como somos todos pó (de cocaína até a terra com vermes e ossos), também somos todos merda boiando no glorioso mar de Yemọja. Somos todos nossa firme merda no mar.




Nenhum comentário: