domingo, 25 de outubro de 2015

O fim da falsa culpa: um ensaio pela liberdade

Foto que tirei, em 19 de outubro de 2015, de intervenção feita numa parede na subida da escadaria da Igreja do Santíssimo Sacramento da Rua do Passo, Centro Histórico de Salvador - Bahia. Seus 55 degraus serviram de cenário para o famoso filme "O pagador de promessas", de 1962, baseado em peça de Dias Gomes.


Queria dizer, e já dizendo, que a cada dia que passa, mais me surpreendo com a complexidade dos valores moralistas que se constroem constantemente à minha volta e que, volta e meia, me atingem diretamente o fígado, que é a alma. Por isso, me posiciono: Sou a favor da legalização do aborto e da maconha.
Consequentemente, o modelo tradicional/ocidental de “religião” me assombra. Grito aqui, sem medo de cuspir em algum prato ou ter meu teto de vidro despedaçado: sempre me assombrou.
O mais curioso é que nunca tive uma educação familiar que me obrigasse a professar uma fé, um posicionamento político ou coisa do tipo. O discurso até os meus dez anos era muito simples: havia valores educacionais e de trabalho igualitário na minha casa que, por sorte, construíram diariamente meu caráter, e todo e qualquer tipo de posicionamento que eu tomasse era e é respeitado pelos meus pais. Assim, pude frequentar uma vez uma missa, ir a terreiro de candomblé, ubanda, igreja evangélica, pentecostal, comer doce de São Cosme e Damião, tomar sopa dia de sábado em Centro Espírita e até mesmo visitar orfanato com professores da escola em que estudei entregando donativos para crianças como eu.
Um dia a coisa mudou e não sei por que cargas d’água houve um enfraquecimento em mim no quesito “ética laica”. E isso, de quebra, levou meus pobres pais-liberais para o mesmo abismo da culpabilidade, principalmente mamãe que sempre foi de uma clareza fantástica de ideias, amiga do mais variado tipo de pessoas, consideradas pelo moralismo fundamentalista cristão, que a cada dia cresce mais no país, como “desviadas”.
Participar de um corpo religioso sempre me foi uma dúvida pelas muitas dores que, mesmo inserido e absorvido no corpo religioso, eu sentia, fosse após um dia de festa no terreiro da Dona Iraci ou numa reunião no Salão do Reino dos Testemunhas de Jeová. O discurso não atendia profundamente minha necessidade de viver e conviver com o externo: meus amigos de pais divorciados, o amigo de escola cuja família era ele, filho único, sua mãe biológica e sua companheira (um casal maravilhoso e lésbico que me tratava com um carinho enorme), etc, etc. Mas nenhuma instituição religiosa me causou mais dor e sofrimento do que a igreja em que fui batizado e frequentei constantemente na minha pré e adolescência.
A instituição religiosa e cristã e protestante (que paradoxo este último termo) reproduzia e se fundamentava nos mesmos moralismos excludentes que eu via na escola, na rua e nas esquinas por onde eu passava no meu dia a dia. Aquelas pessoas, que convivi até então nos meus dez anos de idade, tornaram-se “desviadas”, “criaturas de deus”. Passaram a necessitar da “salvação em Cristo”, eram “do mundo”. Eram “diferentes de mim”. Essa foi a primeira grande dor que senti: eu deveria orar por aqueles “perdidos” que “viviam fora do núcleo verdadeiro da felicidade e do correto”, logo, “estavam fadados à perdição”, precisavam da “conversão” para “tornarem-se verdadeiros filhos de deus e não mais criaturas”.
Clamava-se pelo caminho da “santidade” entre tropeços sôfregos, justificativas fundamentadas na esperança, crença no invisível-visível, na vida eterna em Cristo Jesus, nosso senhor. No fundo, o controle social interno da corporação de candidatos a homens e mulheres de bem a caminho da perfeição-salvação se dava por meio da construção do simplório sentimento de “culpa”. Isso mesmo: culpa. Não se engane, a roda gira graças à culpa. Depois (um depois de passado, antes de mim), surgiu o fantástico discurso neo-pentecostal da prosperidade-riqueza, quase um deus vult do capitalismo. A fórmula medieval de “doe e você receberá em dobro” se adequou perfeitamente às pessoas de baixa renda e que depositam e depositaram toda sua fé no milagre divino-financeiro. A roda do capitalismo nesses moldes, nem Weber esperaria com tanta perfeição. Pois é, entre 1904 e 1905, quando do lançamento de seu famoso livro, não havia vocês sabem quem para ele analisar! Voltemos à culpabilidade. E que volte algum Max Weber para colocar de maneira mais erudita que a minha, o dedo nas chagas da cruz!
Era culpa porque “o filho de deus”, “o próprio deus” morreu num madeiro por um pecado que você nem tinha cometido, mas ele sabia que você um dia ia ter o azar de professar, afinal ele sabe de tudo antes mesmo de você saber que vai fazer. Era culpa pelo cine prive que só mostrava bunda e peitinho nas madrugadas da TV Bandeirantes e a punheta da noite anterior à “escola bíblica dominical”. Era a culpa pela vontade de comer a menina do banco da frente que tinha culpa porque queria ela também comer você. Era até a culpa de saber que você não comia ninguém, mas havia uns tantos cantores de coral que fodiam e você não! Enfim, não vamos culpar ninguém, já há culpa demais. Afinal, o importante era pedir perdão e essa lógica alguns pegavam rapidamente: então, piroca na vida e depois você pede perdão!
Em dado momento, uma importante guinada, ao menos para mim, aconteceu: Cada vez mais, tudo à minha volta fazia menos sentido: os tapinhas nas costas por uma bela poesia cristã, um “abençoado” por uma letra de música ou uma peça adolescente de teatro. Um “aleluia” por uma reflexão retórica à um trecho bíblico, etc., etc. Fui acometido no melhor da vida de uma depressão que diziam ser de fundo espiritual, “a chama da fé já não estava ardendo”, eles diziam. No fundo, o que eu via era a culpa depositada onde não há culpa. Logo, todas as minhas namoradinhas eram “jugo desigual”. Graças a deus!
Os remédios surgiram e que não deixam de ser drogas. Precisava deles para dormir, acordar, sorrir, andar de bicicleta, jogar bola, estudar. Uma vida tosca. Onde eu estava errando? Eu nem olhava e olho com maus olhos as pessoas que evidentemente estavam contentes, felizes na fé. Eu só passei a perceber, simplesmente, que aquilo não servia para mim o tanto que servia para cada uma delas. Aquele “corpo religioso” não conseguiria comportar a minha alma e meus anseios como cidadão, ser humano, pessoa, individuo. Eu queria ter amigos, amigas. Ter perto de mim gays, lésbicas, maconheiros ateus, agnósticos tucanos, petistas do candomblé... católicos viados, putas evangélicas, enfim, eu queria era ser livre de culpa religiosa. Veja, deve ser bom e deve mesmo ser bom para um monte de gente: mas não é para mim. A lógica é racional e bem simples.
Conversei com meus pais naquele período sombrio e a ideia foi maravilhosamente aceita por eles, sempre tivemos amigos que frequentavam a nossa casa e trabalhos e que se enquadravam em algum momento nessa sintética e livre definição acima.
Passei a pensar que era bem mais leve e alegre conduzir minha vida novamente a partir de uma ética que procurasse acima de tudo não ferir a minha individualidade e a alheia. Não era uma filosofia de vida ou coisa do tipo, era a única saída que eu tinha para viver. As drogas receitadas diminuíram.
Aos poucos, a atitude também foi tomada pelos meus pais, a família se uniu ainda mais, as conversas, que sempre foram abertas, sobre sexo, drogas ilegais, álcool, rock and roll, ficaram ainda mais abertas. Até hoje não matei ninguém, estuprei, roubei, furtei ou qualquer outro tipo de atividade que fira os preceitos de direito universal, incluindo, a liberdade religiosa que cada individuo, por lei, tem. Apenas não tenho mais uma religião e não me insiro na institucionalidade de nenhuma delas, mesmo entendendo que, para elas, a necessidade de se institucionalizar é latente. Eis o problema para eles e para mim.
Recordo com certa náusea, confesso, de que quando entreguei formalmente minha solicitação de “exclusão do rol de membros da Igreja” – formal isso, não? Quanta institucionalidade para a fé! – o pastor, um senhor agradável que ainda guardo com um enorme respeito e carinho, soltou a máxima: “As muitas letras te deixaram louco”. Citação paulina, ele era muito bom nessas coisas. Eu estava cursando graduação em História.
Acho que anos depois, seu filho, que também tornou-se um ministro e não deixava de ser um bom amigo, numa conversa informal quando eu disse que havia terminado um relacionamento (que era jugo desigual, até então) de uns quatro anos, para ficar com uma paixão que me surgiu de repente, disse: “Mas, ora, sem igreja, religião... quais serão seus fundamentos morais e éticos para conduzir sua família, sua vida?”. Curiosamente o discurso do desigual sumiu na nova realidade.
Acredito que essa voz-desabafo de hoje e cada luta diária que travo pela laicidade no Estado e no Ensino, uma laicidade que permita o conhecimento pleno de toda e qualquer manifestação de religiosidades, explica bem quais os fundamentos morais e éticos que eu, brasileiro, servidor público federal, filho, companheiro e amante e, acima de tudo, livre e sem culpa, sigo na condução da minha família não tradicional. Uma família que se propõe de forma veemente a não se enquadrar nas normas institucionalizadas por um governo que tem se vendido cada vez mais à Bancada da Bíblia no Congresso Nacional.
Sou a favor do direito da mulher abortar e ser amparada pela lei em sua vontade individual de praticar a interrupção de uma gestação dentro dos prazos regidos pela Medicina e conforme dados da Organização Mundial da Saúde. Sou a favor do uso livre da pílula do dia seguinte em conformidade com o direito individual da mulher de ter o controle de seu corpo, enquanto individua e cidadã, principalmente, se for ela vítima de violência sexual e não só. Sou a favor da legalização da maconha, sua produção de qualidade, venda em locais específicos e o uso individual e coletivo de forma recreativa como fazemos com o álcool e o tabaco. Sou a favor do matrimônio de casais de mesmo sexo e dos os direitos legais que disso decorram. Sou a favor da adoção legal por casais de mesmo sexo. Sou a favor da liberdade religiosa e de toda e qualquer manifestação cultural de religiosidades. Sou a favor do individuo inserido na coletividade do que deveríamos chamar de nação brasileira. Sou até mesmo a favor da presença de religiosos no Congresso, desde que eles não firam a nossa individualidade.
Axé, amém e viva o azul.


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