A Internet me ensinou a fazer piña
colada. Consequentemente, os resultados foram imediatos: derrubei quase uma
garrafa inteira de rum, leite de coco, abacaxis e pitadas de leite condensado
para dentro do meu corpo de trinta e dois anos de idade. O drinque
puertoriqueño, além de uma enorme azia, me deixou na rede balançando e
divagando devagar durante todo o feriadão.
O impacto na disciplina História,
de uma revista lançada pelos intentos de Marc Bloch e Lucien Febvre, em 1929, cujo
teor político-acadêmico foi bem assinalado pelo francês François Dosse, no
final dos anos 80, não pode deixar jamais de ser pensado, é claro. Mas,
valei-me deus, praticamente quase 90 anos depois, o ar de “novidade” que muitos
dinossauros, melhor, tiranossauros-rex, tentam dar no país dos tupiniquins a
ela, fora o exagero ingênuo, tornou-se chato e jocoso.
Hoje, tanto tempo depois, entre o
livro de capa amarela do Dosse (1987) e o de capa verde do Burke (1990), ainda
prefiro o primeiro (por ser mais crítico). Ainda guardo com cuidado a cópia que
fiz do exemplar que o Clodoaldo carregava para baixo e para cima, com muita
estima, naqueles anos agradáveis e sonhadores da graduação. Seu irmão era
formado em História na mesma faculdade. Assim como eu, Clodoaldo – que mais
parecia um fisiculturista – puxava disciplinas aqui e acolá para tentar se
formar. Por onde andará Clodoaldo? Da última vez que nos encontramos, ele
estava bem, lecionando em diversos colégios conceituados da Baixada Fluminense.
Fez nome. Gente fina pra caralho!
Toda a proposta da revista não deixou
jamais de ser interessante. Porém, sejamos francos e visigodos, proposta de
fundo político e corporativo na academia. Afinal, à História deveria caber o
postulado de “carro-chefe” (por que não carro-forte?) das Ciências Sociais,
naquele momento, extremamente inventivas e com propostas realmente inovadoras.
Pimba! Puta sacada do jovem Bloch e do, um pouco mais, maduro em idade, Febvre.
O primeiro, já sabemos, medievalista, lutou na Primeira Guerra Mundial, no
futuro tornar-se-á membro da Resistência Francesa, árduo defensor de um
interessante ativismo político contra os totalitarismos e acaba morto, fuzilado
pelo regime nazista de Vichy. O segundo, poderíamos chamar de “verdadeiro
político nas trincheiras acadêmicas”. Colherá os frutos em vida, diferentemente
do franco-judeu Marc Bloch. A universidade precisa, certamente, dos dois tipos:
Eles não deixam de ter suas qualidades para a máquina do tempo burocrático.
Século XXI. Nunca antes o oxigênio
respirado teve em sua composição na Tabela Periódica elementos tão próximos às
Luzes multicolores de uma lógica de pensamento de meados do século XVIII.
Curiosamente, não sei, o teorema das interdisciplinaridades proposto (absorvido)
pelos Annales (a tal revista francesa)
para o campo da História, transformou-nos em jovens especialistas esmigalhados,
fatiados produtores de análises de uma História em Migalhas, tomando de
empréstimo o termo de Dosse.
As mesas de bares e as conversas
longínquas com meus amigos, seja num copo suado pelo choque entre a cerveja
gelada com o mormaço, que mesmo com todos os alertas climáticos, ignoramos, seja
nas viagens balangandãs pelos brasis que teimamos em ignorar com tapinhas nas
costas e elogios ao Salami Science,
me alertaram para o seguinte veredicto: O oxigênio interdisciplinar está, há
muito, perdendo para a poluição acadêmica! Na verdade, num fordismo de artigos
e livros compiladores de artigos, o homo producentis
ignora o principal: o conhecimento e sua interlocução com a sociedade e os
benefícios que isso poderá trazer à todos nós.
Se voltar sua memória chumbada
pros percalços de idos de XVII, XVIII ou mesmo do XIX (aí a coisa até começa a
descambar), a educação, ontem e hoje, privilégio de poucos, queira quer não,
ajudava a formar o individuo para as realidades táteis que lhe eram impostas. A
desigualdade, evidentemente, já estava lá. Aliás, a desigualdade, segundo
Agostinho de Hipona, será encontrada até na Cidade de Deus. De fato, nisto ele
foi profeta, pois o mundo que atualmente é a Cidade de Deus, em Jacarepaguá,
Rio de Janeiro, demonstra bem o que o teólogo de Hipona teorizou. Enfim, tome o
seu galardão, segura na mão de deus e vá!
É muito preocupante, em todos os
sentidos, um jovem ter que se submeter, como me submeti, à norma de modus vivendi que é fatiar,
especializar, projetar cada vez mais suas reflexões para apenas uma área de
conhecimento. Lógico, concordo com o velho Aldir Blanc – mestre maior: Quem sabe de tudo, não sabe de nada.
Entretanto, o gás neon que escurece a vista, nos afasta da Luz, polui por
demais o oxigênio que paira no ar e que não há como ser ignorado.
Prega-se nos exames de seleção
para ingresso na Universidade, o uso combinado dos mais variados discursos –
tecnológicos, de humanidades, etc. – e após essa etapa, mal cumprida por sinal,
nos cerram no hermético calabouço da grade curricular com obrigatórias e
optativas (que são obrigatórias disfarçadas) disponíveis ao vento, sabe-se lá
quando.
Falta-nos tudo.
A interdisciplinaridade, e essa
fala não vem de um bêbado, vem de um especialista dentro de uma especialidade
exótica no país, é como um unicórnio ou um pote de ouro no final do arco-íris.
Os concursos públicos se tornam
cada vez mais escassos e, quando não, corporativistas. Quando se vê um
currículo vitae variado, encara-se mal o profissional em que foi investido tempo
e auto-tempo para que, ele mesmo, chegasse naquele momento de prova(ção) – nada
mais ingênuo e teatral que um concurso de Provas e Títulos. Se bolsista,
impostos foram ali, muito restritamente e quase como doação, investidos. Se não
bolsista, dinheiro de trabalho, de sapos engolidos, para uma boa preparação em
línguas, pós-graduações e afins. Não se percebe o quanto temos poluído nosso
espaço de trabalho e convívio nas Universidades. Locus por si só, de uma áurea pesada e de dar náuseas. Olha-se com
desdém quem pretende em algum momento ir um pouco mais além do que os meandros
das páginas escritas para si mesmo de uma dissertação ou tese.
É claro que as especialidades, o stricto sensu, é um caminho
historicamente reconhecido (e necessário). Não brado aqui que no especialista se deposite toda a culpa intelectual do mundo. Jamais! Seria cuspir num prato
que eu mesmo preparo e degusto diariamente. A questão é outra. Ela se fundamenta no simples fato de percebermos que a interconexão, a interlocução deve ser cada
vez mais temáticas nos Colóquios, Simpósios, Seminários. Há matemáticos,
médicos, físicos que tem muito a dizer para filósofos, medievalistas, brasilianistas,
colonialistas, etc. e sempre o vice-versa.
A técnica, inerente a cada campo
de saber, se conquista pela prática. Jamais serei um bom médico. Mas, posso ser
um bom historiador da medicina (inclusive da Medicina Medieval). Jamais serei
um bom Arquiteto, mas posso ser um bom historiador da arquitetura colonial. E a
roda segue. E segue e segue e segue.
Enunciados como poder, estado, violência, política, cultura, identidade,
etc., iriam se tornar mais abrangentes, suscetíveis de análises teóricas e
críticas práticas, o que providenciaria ao cotidiano social uma coisa muito
simples dentro do postulado das complexidades: respirarmos o ar das
interdisciplinaridades.
Seria interessante preenchermos de
uma vez por todas o fosso, amenizarmos a lacuna, construirmos uma ponte para
ultrapassar o abismo que jaz entre a graduação e a prática cotidiana dos bacharéis
e licenciados que são formados ano a ano. Quem sabe para os concursos a saída
não deveria ser temática? A cadeira de área X pretenderá um docente-pesquisador
que pesquisou sobre X e suas variáveis aproximativas. As grades, com direito às
barras de ferro e tudo, ainda estarão lá, intocáveis por enquanto, mas, como sempre, a
prerrogativa da escolha se manteria em nossas lisas e delicadas mãos sem calos.
Nossas feridas são outras. E foi
na sua fina casca que eu quis mexer. Se é que ensaiei uma coceira na garganta aqui ou acolá. Quem saberá?
Para sair do meu provincianismo
discursivo, os livros a que fiz referência tratam-se de:
*DOSSE, François. A história em migalhas: dos “Annales” à “Nova
História”. São Paulo/ Campinas, SP: Ensaio/ EdUnicamp, 1994. [Original
francês de 1987]
*BURKE,
Peter. A Escola do Annales (1929-1989): A
revolução francesa da historiografia. São Paulo: Editora UNESP, 1997.
[Original inglês de 1990]
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