quarta-feira, 4 de maio de 2016

As trincheiras discursivas, os bunkers de monopensamento e o motocontínuo das batalhas campais




São tantas lutas atualmente que não há como nenhuma pessoa se calar diante do cotidiano brasileiro e mesmo mundial. A Internet se tornou um campo discursivo de batalhas diárias ou mesmo uma pedra de mármore fria e gigante dentro de um necrotério, com corpos enfileirados a espera de identificação. Poderia afirmar que ela é também uma grande enfermaria com índios doentes renegados ao esquecimento ou de soldados feridos que lutaram uma guerra de variadas ideologias ou, finalmente, a Rede é uma grande prisão com detentos tuberculosos, tossindo uns nos outros e contaminando mesmo aqueles que ali foram encarcerados por roubar um naco de pão.
Não importa muito a linha metafórica que seguir, é certo que a Internet nos trouxe de maneira acelerada o contato direto com as muitas campanhas militantes que hoje, para apenas tentarmos organizar um pouco as tropas enfileiradas, diríamos que se dividem em três grandes grupos – porém diversos, muito diversos, em suas composições internas.
Você esperou que eu os definisse. Por um momento me forcei a um silêncio reflexivo na tentativa de elencá-los. Não tive capacidade inventiva de nomear cada um deles. Por isso, chamaremos de A, B e C. Na verdade, defini-los já não me importa muito. A bem da verdade, a Internet nos retirou da inocência do Éden e nos possibilitou o dom de conhecermos o bem e o mal. Dito isto, dado o tom da minha voz, posso prosseguir com ou sem você aqui para me ouvir.
Tenho recebido críticas, há tempos, de ser antirreligioso, arduamente contrário aos evangélicos em suas multifacetadas correntes doutrinárias e avesso ao moralismo hipócrita do catolicismo (aquele que mais salta aos olhos). Talvez, essa imagem tenha sido construída por eu nunca ter negado minhas reticências e temores, por exemplo, ao crescimento das igrejas neopentecostais e o silêncio da maioria dos intelectuais ao ignorarem o discurso de seus líderes e um evidente projeto de poder teocrático. Não preciso me justificar. Mas cabem parênteses e eles sempre são necessários: A sociologia e mesmo um jornalismo mais atento (clique aqui) volta e meia buscam tentar compreender e, consequentemente, explicar este fenômeno que agora tomou mais projeção graças aos discursos – católicos e evangélicos, principalmente – por ocasião da votação da abertura de processo de impeachment no Congresso Nacional, no dia 17 de abril. Mais um adendo: Salta-nos sempre aos olhos os discursos fundamentalistas e de forma rasteira e preguiçosa, colocamos num mesmo balaio todo o grupo de católicos e evangélicos, estes últimos realmente mais difíceis de definir em blocos, como se a fala daqueles deputados e deputadas exprimisse fielmente o pensamento de cada uma das muitas igrejas.
O que não pode ser ignorado, que mesmo para os crentes (católicos e evangélicos) que eu coloco numa lista ímpar de construção de opiniões plausíveis e racionalmente vinculadas ao evangelho e avessos a fundamentalismos e moralismos profundos... Mesmo para essas (poucas) amizades e contatos que tenho, é difícil, muito difícil lidar com questões como legalização do aborto, reconhecimento de famílias fundamentadas em homoafetividade, legalização da maconha, ensino das culturas afro-brasileiras nas escolas, educação de gênero, etc. Sempre haverá a sombra de um deus, cuja retórica do amor se baseia, não nos esqueçamos, em aceitá-lo como único salvador e a tal salvação é condicionada às normativas comportamentais que definem um “bom” cristão.
Encerro a longa digressão e se você ainda estiver me ouvindo... Retomo o pensamento.
Naquele fatídico domingo em que vermelhos e amarelos se opuseram nas ruas das principais capitais da República, estrategicamente localizados em pontos que simbolizam o que posso chamar de bunkers de monopensamento, o grosso dos deputados federais iniciou ou encerrou seu voto, incluindo o declaradamente evangélico presidente da Câmara, evocando o tripé deus (cristão), família (tradicional) e fim da corrupção (de quem?). Houve, é claro, aquele que bradou por Ustra e cito aqui para registro. Nos grupos bicolores é possível identificar claramente cristãos, o que reafirma a diversidade que expus acima.
O processo ainda corre, os impactos são tamanhos, as análises infinitas. Por todos os lados, a artilharia é pesada. A questão é que, a meu ver, e acredito que meus olhos são um tanto caleidoscópios, ali nas casamatas (bunkers, para ficar mais elegante) de monopensamento, foram, uma a uma, abertas as trincheiras discursivas, sacramentadas, ordenadas, nas quais cada um de nós, queira quer não, nos alocaríamos, alguns solitários, com nossas baionetas com pontas esferográficas ou de grafite prontas para o chamado. Eu sei. Certa utopia esta minha. Estamos tão perdidos quanto uma matilha sem referências de onde buscar a caça. Atualmente, os secundaristas demonstram mais organização e coesão política que os doutores.
O último grande impacto sentido nas trincheiras e que como demonstrarei, mais uma vez, é fruto de uma longa e histórica omissão dos tenentes e capitãs diplomados após defesas de tese, é o indicativo do Vice-presidente Michel Temer para convocação de um bispo da Igreja Universal do Reino de Deus para o Ministério da Ciência e Tecnologia – Temer já apronta seu ministério diante da iminente queda, da qual ele contribuiu intimamente, da Presidenta Dilma Rousseff. Essa vinculação política com lideranças religiosas não é nova e exclusividade de Temer.
Ora, Marcos Pereira, advogado, ex-presidente da Record, presidente nacional do PRB e bispo – licenciado – da IURD já aceitou prontamente a função. Está em sua casamata apenas aguardando.
Ouvem-se os primeiros tiros das baionetas, os soldados saem das trincheiras e avançam, mesmo que lentamente, pelo campo de batalha. Estamos todos fadados a uma estanha derrota.
Marc Leopold Benjamim Bloch, medievalista francês que foi morto pelo Regime de Vichy na Segunda Guerra Mundial, escreveu um pertinente livro chamado L’étrange défaite, cujo subtítulo é tão emblemático quanto: Témoignage écrite en 1940. Publicado por esforços ímpares, em 1946, só teve um grande impacto na França em 1990. Paciência, eles também tem suas mazelas. O fato é que das muitas passagens emblemáticas do pequeno grande livro, há uma que eu gostaria de compartilhar com você, felizmente, não por erudição, mas, necessidade, em francês:
Le courage personnel est, chez qui choisit la carière des armes, la plus obligatoire de toutes les vertus professionnelles: si indispensable, en vérité, à la bonne conscience du groupe, qu’il y est de règle de la tenir por allant de soi. Je suis, certain que la grande majorité des officiers de l’active a été fidèle à cette brave tradition. S’il y eut, çà et là, des exceptions – j’en ai connu une ou deux durant la dernière guerre; j’ai cru en retrouver quelques-unes durant celle-ci – elles n’atteignent en rien l’honneur de la collectivité. Elles prouvent simplement que l’habit ne réussit pas toujours à faire le moine, et aussi qu’il est partout des êtres assez dépourvus d’imagination pour adopter un métier sans se représenter à quoi il engage: celui de soldat, par example, sans réaliser qu’um jour, peut-être, la vie de garnison devra ceder le pas à la guerre. Ces faibles sont, au fond, avant tout, de pauvres gens qui se sont trompés. Rest qu’il est, dans le mépris du danger, bien des nuances et des degrés. Mais comment en parler un peu longuement, sans blesser, dans nos mémoires, de secretes pudeurs?
Mas como falar mais longamente do assunto sem ferir pudores secretos em nossas memórias? A omissão jaz justamente nisso. E Bloch apenas é utilizado aqui por mim para ilustrar que o problema conjuntural que enfrentamos é um motocontínuo no campo de batalhas onde abrimos as trincheiras para ou observarmos o combate discursivo ou partirmos delas com baionetas em riste para enfrentar o visível invisível: o modus operandi da governança brasileira. Vale lembrar o caso Daciolo no PSOL.
Há anos atrás, alguns criticaram (movimentos LGBT, principalmente), porém muitos buscaram explicar numa “necessidade de governança e negociação política” para amenizar o fato, a eleição majoritária do Pastor Marco Feliciano para presidir a Comissão de Direitos Humanos da Câmara de Deputados Federais. O problema se dividia em dois parâmetros: O primeiro, lógico, era o Feliciano, que já havia dado demonstrações públicas de sua linha de combate às lutas por direitos travadas pelos e pelas homossexuais, sobretudo. Em segundo, talvez, o mais complexo, por ser ele um pastor de linha neopentecostal. Neste item, não há de se ignorar todo o trabalho de base realizado, historicamente, por católicos e evangélicos em regiões distantes, levando, a seus modos, saúde e educação. Sim, ainda existem padres e pastores comprometidos efetivamente com movimentos de base e causas sociais muito próximas às nossas. De qualquer maneira, entra aqui um aspecto que ignoramos no constante relativismo acadêmico-crítico: esperar de evangélicos e católicos, seja  de qualquer linha, fundamentalista ou não, que aceitem de maneira plena bandeiras como igualdade de gênero, legalização do aborto e da maconha, etc., é no mínimo solicitar que ignorem suas próprias bandeiras doutrinárias e que os mantém no mínimo de coesão.
Claro, conhecemos alguns. Eu conheço. Mesmo assim, são reticentes, se não, silenciosos. Conhecem muito bem a doutrina e sabem que no fundo, no fundo, incorrem em julgo desigual ao defender a legalização da maconha, por exemplo. As palavras matrimônio ou casamento, quando nos referimos às uniões homoafetivas são escutadas por estes em silêncio e certamente, em suas mentes, versículos do Gêneses passam por sua visão. Faça o teste e afirme: ontem fui ao casamento de duas amigas minhas.
De todo modo, nas trincheiras é possível observar: nos alocamos ora na covardia, ora no combate cego e suicida. Ouço conversas sobre risco que a Ciência e a Tecnologia no Brasil passam a correr sendo entregues nas mãos de um, cito, “criacionista” declarado. Como ficarão pesquisas voltadas para o estudo das células tronco, o ativismo dos teóricos de gênero, etc., etc.? Pensar que tal indicação (e aceite) não influenciará na CAPES, no CNPq e em diversos órgãos de fomentos à pesquisa, já tão sucateados, é apenas observar fumando nas trincheiras por nós mesmo abertas.
Ao mesmo tempo, fechar os olhos ao fato que o problema que se coloca aqui é apenas a ponta de mais um iceberg da nossa política é redigir, sem a mesma eloquência e firmeza que demonstrou Marc Bloch, o depoimento adiantado de um vencido. Sem ignorar nesta minha afirmação que o velho francês lutou até o fim na Resistência, vindo a ser assassinado após prisão. Quantos de nós teremos tal disposição combativa?
O que Michel Temer e seu PMDB conduzem desde o domingo, 17 de abril, apenas para ficarmos com uma data fixa, à parte do fato de não ter sido sequer concluído o processo de afastamento, não foge ao histórico de acordos que marcaram a derrota do governo Dilma Rousseff e o seu PT. O jogo de negociatas de Temer não é diferente de anos e anos de um perigoso vício político que resumo abaixo.
Por apoio, vende-se a alma ao diabo e ignora-se que, assim como deus, ele cobra seus favores.
Que me permita o cansaço dos seus olhos-ouvidos, com mais uma longa citação de um livro. Não posso fugir aos medievalistas que indiretamente me influenciaram em suas reflexões. Área que não renegarei jamais. Minha formação específica junto ao diploma História. Reduto de onde teço com minha baioneta minhas críticas, mas que nunca afirmarei ser mais importante que outro a minha volta. E em tempos em que o tacanho acadêmico, como aves de rapina sobrevoam nossas cabeças e apenas assinalam o ego soturno da autoglorificação, é necessário seu esforço na leitura-escuta:
“Ele existe, o Deus das batalhas. As intenções e a vontade dos homens são presididas pela vontade de Deus, que outorga as vitórias e desencadeia as derrotas. Deus não tem o costume de abandonar as causas justas, nem aqueles que de boa-fé o servem. Se, nesse espírito teológico, tentarmos observar as vitórias militares que constituem o estrecho da história do mundo, encontraremos facilmente o sinal dos desígnos da vontade divina. Há muito pouco espaço entre a vitória e a derrota, as circunstâncias do acaso são por demais mutáveis, a batalha mais promissora pode ser perdida pelo feito de ações insuperáveis: ninguém pode estar certo de que a vontade de Deus se inclina para o seu lado”. Foi o que escreveu um general: Francisco Franco. Em 1964. E no dia 25 de julho de 1971, dia da festa de Santiago de Compostela, patrono da Espanha, rodeado de membros de seu gabinete e de duas dezenas de bispos, ajoelhado diante da estátua do santo, ele volta a falar. Para dizer o que? “Durante nossa cruzada de libertação, constatamos que as vitórias mais decisivas foram alcançadas em dias correspondentes às grandes festas da Espanha. Foi o caso da batalha de Brunete, em que, depois de vários dias de combates infrutíferos, a vitória nos coube no dia da festa de nosso santo patrono. Não pode ser diferente quando se combate pela fé, pela Espanha e pela justiça. A guerra se faz mais facilmente quando se tem Deus como aliado.”
Deus. O dos holocaustos e dos desfiles militares o deus da ordem restabelecida. Esse grande cavaleiro lívido que pairava sobre o campo dos mortos, certa noite, em Brunete, pairava em outros tempos sobre Bouvines. Ele paira também sobre Guernica, sobre Auschwitz, sobre Hiroshima, sobre Hanói e sobre todos os hospitais depois de todos os conflitos. Esse deus, tampouco, parece que não morrerá tão cedo. Ele sempre reconhece os seus.
Assim escreveu Georges Duby, no término de seu O Domingo de Bouvines: 27 de julho de 1214, lançado em 1973. Acredito que não preciso ressaltar quem foi Francisco Franco, mas é sempre bom lembrar... foi um ditador espanhol extremante sanguinário.
Não se esqueça: deus e o diabo sempre reconhecem os seus e na política brasileira, que urge por uma consistente reforma que renove de uma vez por todas o parlamento, essas duas figuras andam lado a lado há tempos.



*Para não dizer que citei errado:
BLOCH, Marc. L’étrange défaite (Témoignage écrite en 1940). Paris: Gallimard, 1990. p. 135. Original de 1946.
DUBY, Georges. O Domingo de Bouvines: 27 de julho de 1214. Tradução de Maria Cristina Frias. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993. p. 244. Original de 1973.

Nenhum comentário: