Dedico aos meus pais, Alvaro e Cristina.
Para Henrique de Souza Filho, o Henfil.
Para eles, meus respeitos.
Não é a frase que dói, mas a
constatação de que a vida de fato segue. Correremos muitos, como críticos de fim de churrasco, para buscarmos a explicação para a vida que segue... e não encontraremos. Apenas cacos de vidros
quebrados pelo chão.
Hoje, quinta-feira, manhã seguinte
à votação no Senado Federal: Eu liguei para pedir ajuda ao meu pai, respondi
algumas mensagens, folheei um livro e pouco li das notícias. Tem sido esse o
meu dia.
Fui ao centro e as ruas
permaneciam cheias, os carros iam e viam. Não almocei. Entreguei o lixo e o mesmo
sorriso do funcionário do condomínio: Boa
tarde, Bruno. Ele vai e volta de bicicleta. Casa – Trabalho. Trabalho –
Casa. Foi assim hoje pela manhã. Será assim amanhã. Será assim no final do mês.
Logo mais, me sentarei na minha
sala – as repartições ainda funcionam – ouvirei as argumentações de uma
orientanda de monografia que quer concluir seu curso, assumir algum cargo
público de seleção que não há e não haverá por um bom tempo, na esperança de
iniciar sua vida, talvez, ignorando que ela começou desde o seu nascimento.
A vida que segue e, certamente,
sem a gente saber exatamente os motivos.
Fadados ao desânimo, as contas
continuarão sendo emitidas, os direitos pouco a pouco sendo reprimidos
diretamente àquela geração, a que faço parte, que jamais sentiu na pele tal
situação e me refiro aqui comparando àqueles que viveram durante os anos de
repressão da Ditadura de 1964 e que estariam numa mesma posição que a minha
agora.
A questão a se colocar, sensível,
eu sei, é que se um levantamento sincero for feito com alguém que tenha hoje
sessenta e poucos anos e que viveu num subúrbio qualquer do Brasil e que não
era vinculada a nenhum tipo de movimento político, sem acesso a educação, pouco
recordará daqueles 31 anos de silêncio e torturas. Talvez, justamente pelo
silêncio e manipulação midiática. Talvez, pelo excesso de trabalho, pela
família a sustentar, pela falta de saneamento básico, pela vida que lhes era
imposta.
Ora, hoje o quadro permanece o
mesmo: a mídia manipula, o silêncio sacramenta-se e as bocas e barrigas vazias
pedem pão. Mães e pais continuam suas jornadas duplas em busca do sustento. A
vida melhorou nos últimos 12, 13 anos, e a maioria dessas mulheres e homens
associam ao Partido dos Trabalhadores, vide o considerável número de votos nas
últimas eleições. Mas, afinal, é via Rede Globo que eles veem o futebol, as
novelas, as notícias. Cotidianamente lhes é imposta uma sinuca de bico, pois é essa mesma emissora que manipula de maneira tacanha as informações negativadas sobre o PT.
Eu diria até que para o meu pai e
outros trabalhadores que conheço, a vida de maneira automática se amenizará a
partir de uma breve possível calmaria... Fico feliz por isso. Sempre vi meus
pais batalhando por meu sustento, abrindo mão da própria felicidade. Prefiro
que eles sejam felizes. Fizeram escolhas naquele tempo: Trabalho – Casa/ Casa –
Trabalho. Mesmo quando tudo melhorou e melhorou, não posso ignorar que a luta
diária permanecia a mesma.
Neste momento, seria fácil apontar
culpados frente a alienação que testemunhamos: Igreja, Corrupção, Falta de
Consciência da importância do Voto Democrático, Mídia etc. Mas, se há falta de
mobilização popular, se ela existe como falta, é pelo marasmo que respiramos
todos nós. Pois, o povo foi às ruas, aliás, o povo nunca saiu das ruas, das
ruas tiram seu sustento, o povo conhece melhor do que ninguém os becos, as
saídas das crises, como lidar com a polícia e o ladrão. Lembro-me bem do meu
pai chegando cansado, muitas vezes caminhava quilômetros e quilômetros para
visitar seus clientes nos subúrbios com a sua pasta marrom e amostras de
plastic, não almoçava, vivia uma vida dura para me dar estudo formal, quando a
educação estava ali, todo dia em que eu presenciava ele e minha mãe regressando
do trabalho.
O fracasso histórico no Brasil está
nos pseudointelectuais como eu e meus colegas. Não está em gente como os meus
pais. Está naqueles que frequentam butecos populares, quando existiam, com
olhar analista-antropológico e se acham vanguardistas conhecedores do popular,
pois se mijam após o porre de cerveja ou fumam um cigarro de maconha misturado
com bosta de vaca ou compram uma ampola de cocaína do negrinho da esquina
misturada com pó de mármore. São risíveis em seus carros importados, parcelados
em 60 vezes e em seus apartamentos com decoração artesanal. Pagos com Visa
Platinum. Sim, estou puto comigo mesmo. Mas, vale muito uma autocrítica.
Hoje, o futuro pertence aos
secundaristas, os que na maioria ainda nem votam, meninos e meninas que têm
construído uma consciência política a qual não tive acesso com aulas de
Educação Moral e Cívica nos melhores colégios que o suor que os plantões
noturnos de minha mãe em hospitais já sucateados naquela época puderam me dar.
Essa garotada vem de lugares fodidos, são filhos de um verdadeiro proletariado
que trabalha, na sua maioria, em fábricas e lojas de departamento e temem pelo
dia a dia dos rebentos enfrentando o braço armado do Estado. É certo que sempre
existirão meninas e meninos de famílias abastadas que fogem a regra brasileira
de ignorarem a faxineira, o garçom... A luta deles, seu apoio nas ruas aos alunos
de escolas estaduais é mais que bem vindo tanto quanto necessário. O problema não
está, no fundo, no fundo, em quem é mais rico ou mais pobre, mas na maneira em
como os que mais tem encaram os que lutam pelo pouco não lhes chega. Não há
luta menor se ela é pela igualdade social.
De qualquer maneira, minha geração foi fadada à titulação, mestres e doutores, e uma substancial parcela não oriunda das esferas oligárquicas. Evoé!
Esse aspecto, brado em bom som,
foi obra majoritária do Partido dos Trabalhadores e nele me incluo com um
orgulho que não me envergonha.
Mas, apesar das dificuldades
enfrentadas para chegar até aqui, nós nos afastamos da prática. Da rua. Da
origem. Mesmo as jornadas de junho de 2013, capitaneadas por nós
intelectuais-gestores, tem sua origem em movimentos periféricos. Movimentos de
gente cansada de sofrer, de ir e vir em ônibus lotados, de serem oprimidas sem o
teto para o descanso. Gente que cresceu sendo revistada brutalmente pela
Polícia Militar de seu Estado. Mas, eis que os títulos de nobreza, agora um
pouco melhor distribuídos entre os pobres, desconfiguraram tudo, ou nós tiramos
o seu sentido. Viramos intelectuais de gabinete e quando não, analistas de
buteco e de samba de roda.
No fundo, tenho é vergonha de mim.
Em muitos sentidos tenho uma ardente vergonha que me remete ao silêncio tácito
e que quebro nesse vômito amargo de bílis. E me vem à memória para aumentar meu
descontentamento pessoal, uma certa madrugada de desespero, em que assustado
com a insônia me dei conta que meu maior medo é que jamais serei um ser humano
como foram meus pais. Jamais terei a força deles de me manter de pé com meus
próprios pés. Mas, no dia seguinte, com olhos vermelhos de tanto chorar em
silêncio na janela que dá para a avenida, pensei: é coisa de momento, tristeza
passageira. Usei toda a racionalidade conquistada nos anos de universidade para
ignorar o definitivo: a verdade nua e crua que jamais serei como eles e isso me
dói. Tenho o rompante de abandonar tudo. Jogar-me no mundo, sumir, parar de
escrever. Tornar-me um ermitão num buraco de tanta vergonha. Mas este sou eu.
Na verdade, tudo o que vimos e
veremos é muito reflexo do dia a dia, da vida que segue. Do momento. Das
pessoas que não tomam a frente no fazer, no arado intelectual. Trabalhadores intelectuais
frágeis, em sua maioria, que se escondem nas obrigações de gestão. Como eu. Como
você que me lê. É mais fácil o comodismo das conversas de corredores, no
cafezinho do sindicato. É mais fácil criticar pelas costas, em surdina ou usar
alunos para a velha política egocêntrica de problema psicológico de autorreconhecimento
que, talvez, um livro de autoajuda corrigiria.
Tudo é, de fato, reflexo da vida
que segue. Do medo de dizer não. Da vontade de dizer sim que não se concretiza.
Do medo de discordar de quem está à sua frente. O problema está em nós: está em
nos distanciarmos do “cidadão comum” ignorando que somos como ele e testemunhamos, apenas por outro prisma, tudo se acabar na quarta-feira. Nós, de ressaca e com
fantasias vermelhas de folião cansado, ele varrendo o chão de nossas serpentinas
e de vômito de derrotados. Quem sabe, se pegássemos na vassoura ao seu lado, a
coisa não seria como o é.
Mas, a vida que segue...
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