quarta-feira, 25 de maio de 2016

O louco da bicicleta




I’ve got a bike you can ride it if you like
Syd Barrett, 1967

Eu sei que o momento é cuidadoso. Pautas mais importantes preenchem nossa mente e seus parágrafos microscopicamente são analisados pelos nossos olhos. Porém, me permito um momento de distração nessa noite chuvosa em Aracaju e que está me remetendo à minha velha Mesquita...
Às favas! Na verdade, comentar política se tornou uma variável muito difícil de traçar. E como minha garganta está coçando faz uns dias, querendo imitar alguma voz, emitir algum som, decidi mudar um pouco o tom e cantar uma melodia que conheço bem.
Atualmente, um dos muitos – e descontroláveis – problemas, presentes no cotidiano das grandes às pequenas capitais mundiais, diz respeito à mobilidade urbana. O número de carros, por exemplo, numa pequena capital como Aracaju, praticamente triplicou nos últimos anos. No nosso caso, isso deve ser somado a um transporte público deficitário, sucateado, ruas totalmente incapazes de receber todo o fluxo de motos, ônibus e carros e, claro, uma triste cultura capitalista de bens: Ter um carro bacana, do ano, expressa seu sucesso. O trânsito por aqui, não devia, mas é um caos desordenado entre a falta de educação, típica dos motoristas brasileiros, e ausência de espaço para todos.
Para não ficarmos correndo o risco de nos prender ao local e eu correr um sério risco de ser taxado como preconceituoso, tomem nota: mesmo uma cidade da região metropolitana do Rio de Janeiro, como Mesquita, na Baixada Fluminense, serviria como exemplo categórico do que estou tentando afinar com essa voz um tanto rouca. Ter um carro ou moto por lá expõe a linha tênue entre “necessidade” e “status”. Têm-se sucesso se não precisa pegar um trem, ônibus ou andar de bicicleta!
De fato, a questão é que no Brasil há um grande atraso que, se observado frente aos seus vizinhos mais próximos e grande parte do continente Americano e Europeu, podemos dizer, é até um retrocesso na possibilidade de avanço – vide todas as manifestações contrárias ao movimento de ciclovias, ciclofaixas e ciclorotas na cidade de São Paulo.
Ok, a esse último exemplo devemos juntar a ojeriza pela sigla partidária do atual prefeito da capital paulista que motiva, inclusive, agressões das mais esdrúxulas contra os ciclistas. De todo modo, vale um exercício lógico, sem vestir vermelho ou amarelo: No Brasil, tentou-se resolver o problema da primeira crise econômica, ou a possibilidade de sua chegada ao continente tupiniquim, através do consumo frente produção. Os carros, com seus ridículos IPI’s reduzidos – não quero entrar aqui numa complexa análise do quanto somos lesados pelas multimilionárias fabricantes de automóveis no nosso país e o quanto de impostos pagamos por um carro “popular” – foram o principal bem de consumo adquirido no projeto petista daquele período. A diferença frente os governos anteriores é que a renda, de fato, passou a ser melhor distribuída, principalmente, entre aqueles que estavam à margem mas que, claro, não puderam e ainda não podem comprar um carro.
Um exemplo confiável, que essa relação consumo produção, no nível de automóveis, se limita, sobretudo, à classe média: nos últimos anos, com exceção de dois ou três vizinhos (e eu), todo o meu condomínio trocou de carro. Levando em consideração que são duas torres, com doze andares e cada um deles com quatro apartamentos, tendo algumas famílias mais de um carro e moto, faça suas contas.
A coisa toda, já sabemos, desandou. Hoje, o número de endividados na classe média, seja a mais nova ou a tradicional, é exorbitante. Tanto que numa primeira leva de crise (política) foi ela quem ocupou majoritariamente as ruas e gritou, ignorando sua manipulação via TV e Jornais, Igrejas Neopentecostais e os mesmos partidos de direita de sempre: Fora Dilma! Fora PT! O golpe foi escancarado, as panelas se silenciaram, as camisas da Seleção Canarinho voltaram para as gavetas com naftalina e hoje as dívidas se mantêm. Mais uma vez, a história, que não deveria se repetir, segundo Marx, se repete: a classe média tradicional, e a reboque a nova, entrou pelo cano. O que isso está relacionado com mobilidade urbana e, claro, minha relação pessoal com a bicicleta?

Mas louco é quem me diz que não é feliz
Confesso que do meu escritório posso ver um fio de paisagem que sei que guarda o mar lá no fundo. O bom é que o constante céu azul da minha cidade me ilude que entre nuvens e carcarás, o que eu vejo na verdade é o imenso mar.
Ao mesmo tempo, posso ver também a chuva que vem fina da orla, se misturando às nuvens, acinzentando o azul...
Quando criança em Mesquita, eu fazia tudo de bicicleta: escola, padaria, ir para o campo de futebol, igreja, aula de música, casa dos amigos... Não havia uma rua, ladeira ou encruzilhada em que eu e minha Monark não tivéssemos ido. Dos 11 aos 18 anos era assim que eu me locomovia. Não havia na cidade ciclofaixa, ciclovia, nada disso. Era meio fio e pulando calçada quando dava. Uma vez fui atropelado indo para a escola, numa rua pacata, atrás do antigo Hospital São José. Fui socorrido pelo próprio médico que me atropelou, não sofri um arranhão.
Vim morar em Aracaju por motivos de concurso público, em 2009, e a primeira coisa que me disseram foi: compre um carro, o transporte público aqui é muito ruim. Realmente, era uma loucura terminar as aulas às 22:30 e pegar o ônibus no campus sei lá que horas.
De qualquer maneira, foram as ciclovias – não, eu não comprei um carro, mas ganhei um do meu pai – que mais me chamaram atenção. Vindo da Baixada Fluminense, aquilo era quase um sentimento de me ver criança em Paquetá nas férias de fim de ano. E Aracaju tem isso, tem esse misto de cidade pequena com o caos urbano. Mas, é recheada de ciclovias e ser ciclista aqui, andar de bicicleta aqui – tirando os dias de chuva – não é um exotismo e há até reconhecimento nisso.
Quando vi a chuva de hoje e meus afazeres completos, desci com a bicicleta sem pensar duas vezes. No térreo, só pude ouvir um cochichar de alguém quando saí do condomínio: lá vai o louco da bicicleta. Sorri.
Enquanto o vento e a chuva banhavam meu corpo, minhas pernas se molhavam nas poças e os pneus deslizavam no asfalto, a sensação que eu tinha ao ver as pessoas se escondendo nas marquises, nos pontos de ônibus, era de olhares que diziam: lá vai o louco da bicicleta.
Depois me dei conta que não era preconceito ou reprovação, mas uma reação ao meu sorriso bobo, apesar do corpo encharcado e imundo de lama. Sorri novamente.
O fato é que a cidade parou, não por mim. Mas graças a chuva, as ruas alagaram, carros pararam, se chocaram nas esquinas. Ao meu lado nas ciclovias, trabalhadores voltando da lida com suas capas, certamente, mais sérios do que eu, mais responsáveis que eu, mas não menos compenetrados em seus pensamentos do que eu.
A música soava nos meus fones – talvez, eu nem precisaria dela –, cada piscada era um flash.
Eu disse certa vez e não volto atrás, que ao andar de bicicleta me surge uma crônica por cada cruzamento e sinal fechado, cada cheiro que eu sinto. Para as prostitutas nas esquinas que deságuam a orla, para os travestis da Ivo do Prado, para os maconheiros da pracinha, para as crianças nos brinquedos, para o pessoal do cooper e da caminhada, para mim.
Ao mesmo tempo em que tudo me era alegria e molecagem, pensei muito na mobilidade urbana e no quanto o Brasil perde nas suas idas e vindas consumistas. Não se trata de ser “bicho grilo” ou “novo hippie”. Como eu disse, tenho um carro, uso o carro e entendo bem a necessidade de todos os que veem no veículo conforto e comodidade. Mas é fato consumado que a bicicleta é mais barata e faz muito melhor a saúde que o frenesi do trânsito cotidiano.
O que eu quero dizer, é que não havendo extrema necessidade, deixo o carro de lado, aliás, me coço aguardando essa oportunidade.
Não me lembro quando, mas uma vez assisti uma entrevista de um músico paulistano chamado Curumin. Nela, ele falava sobre uma composição sua intitulada Magrela Fever. Eu já tinha o cd (Japa Pop Show) e, evidentemente, gostava imensamente da música em questão. Porém, quando ele explicou os motivos da canção, confesso que ela se sacramentou como uma oração diária que antecede cada vez que monto na minha bicicleta e saio pelas ruas da cidade, seja para passear, me distrair ou ir para o trabalho. Se você me permite, transcrevo a fala:
Magrela Fever é uma música que eu fiz. É que eu gosto muito de andar de bicicleta, gostava muito de andar de bicicleta na cidade. Assim... Em São Paulo... Num certo ponto, a gente começa a procurar alternativas para escapar da loucura das ruas, né?, do trânsito e tal. E foi uma alternativa que eu achei e que além de me fazer bem, assim, de andar, de poder andar de bicicleta, eu fugia desse trânsito maluco. Então eu estava tão feliz por conta disso, de ter descoberto isso daí, que eu podia fazer percursos longos, ir pra casa, pro trabalho, voltar, ir pro estúdio de bicicleta, que daí eu fiz essa música aqui.
Curumin, em cada verso, cada frase, conseguiu expressar o sentimento tão profundo que é o de se sentir, simplesmente: livre ao pedalar. Pode parecer loucura, mas não é.
E ainda hoje, para muita gente desatualizada, a liberdade é uma loucura... Não para mim e, pelo visto, nem para ele.

Axé, Curumin!

Magrela Fever:

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