I’ve got a bike you can
ride it if you like
Syd Barrett, 1967
Eu sei que o momento é cuidadoso.
Pautas mais importantes preenchem nossa mente e seus parágrafos
microscopicamente são analisados pelos nossos olhos. Porém, me permito um
momento de distração nessa noite chuvosa em Aracaju e que está me remetendo à
minha velha Mesquita...
Às favas! Na verdade, comentar
política se tornou uma variável muito difícil de traçar. E como minha garganta
está coçando faz uns dias, querendo imitar alguma voz, emitir algum som, decidi
mudar um pouco o tom e cantar uma melodia que conheço bem.
Atualmente, um dos muitos – e descontroláveis
– problemas, presentes no cotidiano das grandes às pequenas capitais mundiais,
diz respeito à mobilidade urbana. O número de carros, por exemplo, numa pequena
capital como Aracaju, praticamente triplicou nos últimos anos. No nosso caso, isso
deve ser somado a um transporte público deficitário, sucateado, ruas totalmente incapazes
de receber todo o fluxo de motos, ônibus e carros e, claro, uma triste cultura
capitalista de bens: Ter um carro bacana,
do ano, expressa seu sucesso. O trânsito por aqui, não devia, mas é um caos
desordenado entre a falta de educação, típica dos motoristas brasileiros, e
ausência de espaço para todos.
Para não ficarmos correndo o risco
de nos prender ao local e eu correr um sério risco de ser taxado como
preconceituoso, tomem nota: mesmo uma cidade da região metropolitana do Rio de
Janeiro, como Mesquita, na Baixada Fluminense, serviria como exemplo categórico
do que estou tentando afinar com essa voz um tanto rouca. Ter um carro ou moto
por lá expõe a linha tênue entre “necessidade” e “status”. Têm-se sucesso se
não precisa pegar um trem, ônibus ou andar de bicicleta!
De fato, a questão é que no Brasil
há um grande atraso que, se observado frente aos seus vizinhos mais próximos e
grande parte do continente Americano e Europeu, podemos dizer, é até um
retrocesso na possibilidade de avanço – vide todas as manifestações contrárias
ao movimento de ciclovias, ciclofaixas e ciclorotas na cidade de São Paulo.
Ok, a esse último exemplo devemos
juntar a ojeriza pela sigla partidária do atual prefeito da capital paulista
que motiva, inclusive, agressões das mais esdrúxulas contra os ciclistas. De
todo modo, vale um exercício lógico, sem vestir vermelho ou amarelo: No Brasil,
tentou-se resolver o problema da primeira crise econômica, ou a possibilidade
de sua chegada ao continente tupiniquim, através do consumo frente produção. Os
carros, com seus ridículos IPI’s reduzidos – não quero entrar aqui numa complexa
análise do quanto somos lesados pelas multimilionárias fabricantes de
automóveis no nosso país e o quanto de impostos pagamos por um carro “popular” –
foram o principal bem de consumo adquirido no projeto petista daquele período.
A diferença frente os governos anteriores é que a renda, de fato, passou a ser
melhor distribuída, principalmente, entre aqueles que estavam à margem mas que,
claro, não puderam e ainda não podem comprar um carro.
Um exemplo confiável, que essa
relação consumo produção, no nível de automóveis, se limita, sobretudo, à
classe média: nos últimos anos, com exceção de dois ou três vizinhos (e eu), todo
o meu condomínio trocou de carro. Levando em consideração que são duas torres,
com doze andares e cada um deles com quatro apartamentos, tendo algumas
famílias mais de um carro e moto, faça suas contas.
A coisa toda, já sabemos,
desandou. Hoje, o número de endividados na classe média, seja a mais nova ou a
tradicional, é exorbitante. Tanto que numa primeira leva de crise (política)
foi ela quem ocupou majoritariamente as ruas e gritou, ignorando sua
manipulação via TV e Jornais, Igrejas Neopentecostais e os mesmos partidos de
direita de sempre: Fora Dilma! Fora PT! O
golpe foi escancarado, as panelas se silenciaram, as camisas da Seleção
Canarinho voltaram para as gavetas com naftalina e hoje as dívidas se mantêm.
Mais uma vez, a história, que não deveria se repetir, segundo Marx, se repete: a
classe média tradicional, e a reboque a nova, entrou pelo cano. O que isso está
relacionado com mobilidade urbana e, claro, minha relação pessoal com a bicicleta?
Mas louco é quem me diz que não é
feliz
Confesso que do meu escritório
posso ver um fio de paisagem que sei que guarda o mar lá no fundo. O bom é que
o constante céu azul da minha cidade me ilude que entre nuvens e carcarás, o
que eu vejo na verdade é o imenso mar.
Ao mesmo tempo, posso ver também a
chuva que vem fina da orla, se misturando às nuvens, acinzentando o azul...
Quando criança em Mesquita, eu
fazia tudo de bicicleta: escola, padaria, ir para o campo de futebol, igreja,
aula de música, casa dos amigos... Não havia uma rua, ladeira ou encruzilhada
em que eu e minha Monark não tivéssemos ido. Dos 11 aos 18 anos era assim que
eu me locomovia. Não havia na cidade ciclofaixa, ciclovia, nada disso. Era meio
fio e pulando calçada quando dava. Uma vez fui atropelado indo para a escola,
numa rua pacata, atrás do antigo Hospital São José. Fui socorrido pelo próprio
médico que me atropelou, não sofri um arranhão.
Vim morar em Aracaju por motivos
de concurso público, em 2009, e a primeira coisa que me disseram foi: compre um carro, o transporte público aqui é muito ruim. Realmente, era uma loucura
terminar as aulas às 22:30 e pegar o ônibus no campus sei lá que horas.
De qualquer maneira, foram as
ciclovias – não, eu não comprei um carro, mas ganhei um do meu pai – que mais
me chamaram atenção. Vindo da Baixada Fluminense, aquilo era quase um
sentimento de me ver criança em Paquetá nas férias de fim de ano. E Aracaju tem
isso, tem esse misto de cidade pequena com o caos urbano. Mas, é recheada de
ciclovias e ser ciclista aqui, andar de bicicleta aqui – tirando os dias de
chuva – não é um exotismo e há até reconhecimento nisso.
Quando vi a chuva de hoje e meus
afazeres completos, desci com a bicicleta sem pensar duas vezes. No térreo, só
pude ouvir um cochichar de alguém quando saí do condomínio: lá vai o louco da bicicleta. Sorri.
Enquanto o vento e a chuva
banhavam meu corpo, minhas pernas se molhavam nas poças e os pneus deslizavam
no asfalto, a sensação que eu tinha ao ver as pessoas se escondendo nas
marquises, nos pontos de ônibus, era de olhares que diziam: lá vai o louco da bicicleta.
Depois me dei conta que não era
preconceito ou reprovação, mas uma reação ao meu sorriso bobo, apesar do corpo
encharcado e imundo de lama. Sorri novamente.
O fato é que a cidade parou, não
por mim. Mas graças a chuva, as ruas alagaram, carros pararam, se chocaram nas
esquinas. Ao meu lado nas ciclovias, trabalhadores voltando da lida com suas
capas, certamente, mais sérios do que eu, mais responsáveis que eu, mas não
menos compenetrados em seus pensamentos do que eu.
A música soava nos meus fones –
talvez, eu nem precisaria dela –, cada piscada era um flash.
Eu disse certa vez e não volto
atrás, que ao andar de bicicleta me surge uma crônica por cada cruzamento e
sinal fechado, cada cheiro que eu sinto. Para as prostitutas nas esquinas que deságuam
a orla, para os travestis da Ivo do Prado, para os maconheiros da pracinha,
para as crianças nos brinquedos, para o pessoal do cooper e da caminhada, para
mim.
Ao mesmo tempo em que tudo me era
alegria e molecagem, pensei muito na mobilidade urbana e no quanto o Brasil
perde nas suas idas e vindas consumistas. Não se trata de ser “bicho grilo” ou “novo
hippie”. Como eu disse, tenho um carro, uso o carro e entendo bem a necessidade
de todos os que veem no veículo conforto e comodidade. Mas é fato consumado que
a bicicleta é mais barata e faz muito melhor a saúde que o frenesi do trânsito
cotidiano.
O que eu quero dizer, é que não
havendo extrema necessidade, deixo o carro de lado, aliás, me coço aguardando
essa oportunidade.
Não me lembro quando, mas uma vez
assisti uma entrevista de um músico paulistano chamado Curumin. Nela, ele
falava sobre uma composição sua intitulada Magrela
Fever. Eu já tinha o cd (Japa Pop
Show) e, evidentemente, gostava imensamente da música em questão. Porém,
quando ele explicou os motivos da canção, confesso que ela se sacramentou como
uma oração diária que antecede cada vez que monto na minha bicicleta e saio
pelas ruas da cidade, seja para passear, me distrair ou ir para o trabalho. Se
você me permite, transcrevo a fala:
Magrela Fever é uma música que eu fiz. É que eu gosto muito de andar de
bicicleta, gostava muito de andar de bicicleta na cidade. Assim... Em São
Paulo... Num certo ponto, a gente começa a procurar alternativas para escapar
da loucura das ruas, né?, do trânsito e tal. E foi uma alternativa que eu achei
e que além de me fazer bem, assim, de andar, de poder andar de bicicleta, eu
fugia desse trânsito maluco. Então eu estava tão feliz por conta disso, de ter
descoberto isso daí, que eu podia fazer percursos longos, ir pra casa, pro
trabalho, voltar, ir pro estúdio de bicicleta, que daí eu fiz essa música aqui.
Curumin, em cada verso, cada
frase, conseguiu expressar o sentimento tão profundo que é o de se sentir,
simplesmente: livre ao pedalar. Pode parecer loucura, mas não é.
E ainda hoje, para muita gente
desatualizada, a liberdade é uma loucura... Não para mim e, pelo visto, nem
para ele.
Axé, Curumin!
Magrela Fever:
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