sábado, 28 de maio de 2016

A Marca de Caim da República



  • Sem introdução: uma pedrada

Em caso de dúvida, basta realizar uma pesquisa séria sobre a condução do Congresso Nacional nos últimos anos, em termos de atraso nas medidas progressistas, e logo se perceberá que, além das muitas falhas no exercício público da política no Brasil, a chamada Bancada Evangélica foi um dos maus ignorados por nós, que pretendemos uma modificação radical no jogo hediondo que marca as negociações partidárias há séculos.
Não sinto nenhum apego ao exagero ou medo de ser taxado assim, ao afirmar que, ao lado da Bancada da Bala (ex-policiais civis e militares e alguns ex-oficiais das Forças Armadas) e a dos Bois (composta pela aristocracia do agronegócio) os senhores da indústria da fé têm feito um mal tão grande à sociedade que aqueles que fingem não perceber beiram o cinismo hipócrita.
A religião e a religiosidade são um direito evidentemente garantido na Constituição. Mas, principalmente, o primeiro aspecto não deveria – jamais – influenciar no cotidiano da laicidade da República. Um republicanismo aos frangalhos, eu sei, mas, ainda assim, é uma República e, claro, Democrática, até mesmo quando golpista!
O testemunho diário do que fazem os “pastores” eleitos, queira quer não, democraticamente como deputados federais e estaduais e senadores, é um crime que vai além do político, vai além de ferir as estruturas da instituição pública: são crimes contra a humanidade. Cabe frisar que já o faziam em seu espaço de culto, em púlpitos manchados pela mácula do suor do trabalho alheio. Suor não só dos crentes fiéis, mas meu e seu, uma vez que as Igrejas evangélicas não são taxadas com impostos e poucas delas possuem um controle sério de quem pode assumir tal função ou não.
Eu poderia listar aqui o linguajar infame, as referências racistas e homofóbicas, seus projetos de lei que ferem o direito feminino de conduzir os ditames de seus corpos. Poderia gritar aqui o mal maior de projetos que tentam barrar avanços como a pílula do dia seguinte e o direito ao aborto em caso de estupro, o ensino de igualdade de gêneros nas escolas... O ensino sobre as culturas e diversidades religiosas.
Houve um momento em que eu até tentei separar o joio do trigo, buscar uma racionalidade que me ajudasse a compreender os motivos dessa bancada ser e agir assim. Mas, como já dito, esses “pastores” foram eleitos democraticamente. E é justamente isso que não pode nos emudecer na lógica que está profundamente latente aos nossos olhos: Suas ovelhas-eleitores são justamente isso: ovelhas. A urna é um claro matadouro.
Então, o joio e o trigo são uma coisa só num mesmo saco eleitoral de ofertas e dízimos entregues de maneira sincera nas mãos desses lobos. E não devem ser separados. Se não há crítica, há conivência. E a convivência com “bons evangélicos”, com “bons cristãos” apenas tem me provado que lhes falta algo simples: crítica racional. Sua fé sincera se sobrepõe a realidade que nos cerca atualmente. Se sobrepõe às migalhas a que se transformou o sério propósito social. E explicarei, pormenores, essa minha intencional generalização.
Certa vez, após assistir um vídeo de um desses estelionatários pela Internet fui repreendido por um colega de universidade – protestante, se não me engano, Presbiteriano – com a seguinte frase: Ele é assim exagerado, mas é ungido, conhece a bíblia como ninguém. Aquilo me deixou extremamente assustado.
Aquele rapaz possuía uma formação acadêmica próxima da minha, me era e é muito querido, mas, mesmo assim, mesmo com tudo ali escancarado à sua frente, preferiu ser mais um evangélico, protestante, cristão conivente com as atrocidades que são ditas dominicalmente e diariamente na TV por esses salafrários.
Dos  muitos evangélicos que conheço, que ao menos nesse sentido crítico contra o uso da fé como mercadoria são inimigos ferozes das, segundo o termo dito dia desses por um deles, Indústrias Neopentecostais, consigo contar nos dedos de uma mão, os que agem como verdadeiros combatentes contra esse quadro acima pintado: três. Mesmo assim, essas e esses amigos são ainda reticentes para assuntos como igualdade de gênero, liberação do aborto, avanço nas leis contra homofobia, etc. Julgo desigual.

  • Outra pedrada sem preâmbulo e vou mais longe

Deus não abençoa ninguém. Não abençoa sua família. Não abençoa esse país.
Por quê? Simples: deus existe para quem quer que ele exista. Isso é um fato latente. Guarde seu deus para você e viva seu deus ao extremo.
Todorov apresenta uma questão que considero fundamental sobre o que eu afirmei, com dureza, acima. O filósofo e historiador radicado na França, se refere ao projeto das Luzes, ou Iluminismo. Segundo ele: (...) o que se rejeita é a submissão da sociedade ou do indivíduo a preceitos cuja única legitimidade advém daquilo que uma tradição atribui aos deuses ou aos ancestrais; não é mais a autoridade do passado que deve orientar a vida dos homens, mas seu projeto para o futuro. Ainda assim, nada se diz da própria experiência religiosa, nem da ideia de transcendência, nem de tal doutrina moral sustentado por uma religião em particular; a crítica visa à estrutura da sociedade, não ao conteúdo das crenças. A religião sai do Estado sem, no entanto, abandonar o indivíduo (TODOROV, Tzvetan. O espírito das Luzes. São Paulo: Barcarolla, 2008. p. 15 e 16).
Não entrarei na complexa esparrela dos problemas que o Iluminismo trouxe e que, ainda hoje, é ignorado pelo grosso dos doutores. Mas, para os mais antenados, basta pensar no Imperialismo do século XIX e todo o processo – bem cristão, por sinal – de civilidade e igualdade defendida, mas que ignorou outras formas de organização social diferentes da européia naqueles cem anos anteriores de gestação do "projeto das Luzes". Observem que o impacto, no XIX, estava afastado temporalmente da gênese inicial do que combateram os filósofos iluministas, por, simplesmente, um século!!!!
Dito isto, aliás, citado isto, só posso exclamar que a Bancada Evangélica é a Marca de Caim da República e só chegou até esse ponto, sem volta, não ignorem esse fato, pela conivência e estupidez das ovelhas-eleitoras e da má política diária dos governos, tanto de Direita quanto de Esquerda. É uma serpente cujo ovo, todo nós, todos, sem exceção, permitimos ser chocado.
Ora, quando uma criança sai de um culto de Candomblé ou Umbanda e é apedrejada por gente de terno e com bíblia em uma das mãos, é apenas uma prova cabal de que a serpente já nasceu há tempos.
Quando se ignora que as religiões de matrizes africanas são tão importantes quanto o cristianismo destruidor e escravizador que trouxe negras e negros, reis em suas terras, senhores e senhoras de terras, é uma evidência incontestável de que a laicidade não deu certo neste continente brasilis abaixo da Linha do Equador. Ignorar que em uma organização cristã-colonial como foi a que aqui testemunhou-se, na qual cristãos utilizavam trechos dos Salmos para justificar a escravidão negra, uma vez que David escravizava etíopes e, no mínimo, ignorar a História. Finalmente, esquecer que os primeiros habitantes do solo a que chamamos Brasil, os índios e índias, foram privados de sua cultura religiosa e de organização graças ao discurso de salvação da Igreja Cristã é o cúmulo da exemplificação da relação constante entre dominantes e dominados. 
Isso explica porque num país em que se ignora as culturas, é mais do que claro que será impossível perceber o cristianismo como mais um entre tantos outros aspectos culturais até enriquecedores ao ser brasileiro, apesar de seus histórico assassino e destruidor. Entretanto, me pergunto, quem de nós não tem defeitos, mas pode em dado momento corrigi-los?  O cristianismo se manteve no Brasil intacto desde que chegou, sem nenhuma correção: patriarcal, religião de uma minoria dominante imposta aos dominados, destrutiva... Foi assim com o predominante catolicismo que, de pouco a pouco, tornou-se apenas nominal, restando poucos que professam seriamente, e agora o é com a religião evangélica.
Por isso mesmo se hierarquizam erroneamente as culturas nesses grupos religiosos evangélicos. O samba é batuque, as afroreligiões, macumba, etc. Na verdade, por esses e outros aspectos, que o cristianismo se considera além da cultura, ele é o ditame do que é certo e errado. Do moral e do imoral. Mas o que ignoramos é algo tão mais simples: o cristianismo em nosso país e a Marca de Caim.

  • A pedrada final: Volto à ilusão da Direita má e a Esquerda boa/ Da Esquerda má e a Direita boa

Não nos iludamos, associar tacanhamente os neopentecostalismos somente aos movimentos neoliberais ou à extrema Direita (aos moldes tupiniquins) é jogar a sujeita para debaixo do tapete. Motocontínuo, manter o discurso de que os evangélicos nas Câmaras – estadual e federal – e no Senado são heterogêneos demais para que possamos identificar exatamente os inimigos, ora, também é, se não, conivência, algo muito pior: covardia.
O discurso é homogêneo. Se há homogeneidade, isso vai além do ser evangélico, é claro, porém, isso está no entrave silencioso, mas ensurdecedor, das pautas progressivas pelos pastores que ainda se mantém firmes em seus púlpitos sem usar a fé como negócio, mas que em suas latrinas cometem o pecado da soberba por um segundo ou dois, batendo palmas feito macacos aprisionados no zoológico para mais  e mais homossexuais ofendidos e agredidos, para meninas estupradas e sem atendimento adequado, sem o direito de abortarem um feto oriundo da violência machista diária que o cristianismo ensina ao pregar que as mulheres devem ser submissas aos maridos, logo, ao homens. Palmas que reafirmam simplesmente: Se fosse crente, se fosse normal, não seria ofendido ou se estivesse na escola, na igreja, com roupa decente, não teria sido estuprada. O que é ser normal? Desejar dentro de um padrão socialmente construído e imposto? O que é decente?
É tempo, mais que urgente, de se rever os conceitos por todos os lados na busca pela laicidade, não aquela formatadora e que emudeça as formas de religiosidade, mas a que percebe os meandros culturais e de diversidade entre os brasileiros e que justifica plenamente o vídeo abaixo.



  • Post scriptum

O projeto de destruição do país é bem coeso e a sua fórmula , politicamente falando, extremamente racional e mesmo se tratando de forças que podem ser consideradas incompatíveis, o projeto de destruição, via tomada de poder por essas bancadas políticas, pode ser, deste modo, esquematizado:
Bancada Evangélica: Atua no psicológico minando a possibilidade de debate, uma vez que o uso de uma entidade invisível como o deus cristão impossibilita a ação da racionalidade crítica. Como desconstruir o que não se vê? Ao mesmo tempo, os membros dessa bancada firmam suas pautas antiprogressistas na covardia de usarem tacanhamente o direito, garantido, de expressar a fé como liberdade de expressão. Contudo, ignorando que esse direito é de todos, inclusive, dos que não tem fé ou religião.
Bancada da Bala: Uma vez minado o psicológico, atua no estado físico, no direito de ir e vir. Em breve corremos o risco, novamente, da institucionalização – ainda atuante, mas ainda não como lei – do direito à tortura, censura, etc. O modus operandi dessa bancada é ignorar totalmente o humano. Ela age na lacuna aberta pelo Estado ainda que em conluio com esse mesmo Estado que caminha para a teocracia. Possui estratagemas perfeitos que nem Agostinho de Hipona suspeitaria ao elaborar o seu conceito de guerra justa para o Império Romano cristianizado. Por isso mesmo, é difícil esperar algum tipo de embate moral entre as Bancadas Evangélica e da Bala. O passado prova que em algum momento o cristianismo precisa de um braço competente para derramar o sangue dos infiéis.
Bancada dos Bois: O agronegócio funciona historicamente vinculado com o discurso cristão (nosso passado de invasão das terras indígenas e sua catequização é um presente constante) e a ação armada (nosso passado de tomada das terras indígenas através de seu massacre é um presente constante). Ela une perfeitamente as duas ideologias acima listadas. Diria eu, em analogia, que a Bancada do Boi funciona como a concretização da cristianização, logo, alienação do eleitorado “de bem” e da “justiça” violenta e aprovada pelos cegos cristianizados pela indústria da fé. Só que o mais curioso é que essa bancada política, antes a longo prazo, hoje de forma bem imediata, está carregando o país para o fundo do posso e contribuindo profundamente para uma evidente crise ambiental que nos alastra.
Pensem bem, se o Brasil está como está, ainda tendo bem ou mal reservas naturais, que dirá quando suas nascentes secarem e todos os índios forem mortos?

Enquanto isso, continuemos ignorando a Marca de Caim.

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