Rafael Braga |
Como todos os homens da
Babilônia, fui procônsul; como todos, escravo; também conheci a onipotência, o
opróbrio, os cárceres. Olhem: falta o indicador de minha mão direita. Olhem: por
este rasgão da capa se vê em minha barriga uma tatuagem vermelha: é o segundo
símbolo, Beth.
(Jorge
Luis Borges, a loteria na babilônia. Ficções (1944), p. 53)
Dentre as mentiras da vida
Duas nos revelam mais:
- É um prazer conhecê-lo
- Era muito bom rapaz
(Aldir
Blanc e João Bosco, Nada a desculpar, 1973)
A formação malandro cocô
Se na França, onde os políticos
tanto da esquerda quanto da direita, cometem erros primários, e a maioria dos
que ocupam altos cargos, inclusive o atual presidente, estudaram na Sciences Po, imaginem no
Brasil, em que carreira política se faz, geralmente, por ser ex-jogador de
futebol, ex-policial torturador ou não, líder religioso neopentecostal,
contraventor, ex-celebridade?
É claro, esse é um exemplo tosco,
simplista como o são as frases desconexas de um mau ventríloquo aprendendo a
arte. Não precisa jogar a cerveja na minha cara, virar a mesa e me dar nas
costas com a cadeira de ferro. Calma, cagalhão e cagalhona! Analogias são
perigosas nos últimos tempos, tanto quanto a ironia, eu sei.
O que quero dizer é que a política
no Brasil nunca foi algo tão sério, a ponto de ser historicamente institucionalizado
como estudo. Aliás, Ciência Política é um campo que tem um pouco mais de 50 anos, ou seja, extremamente jovem. Isso me leva a ousar dizer
que, por não ter sido e não ser algo devidamente sério no país que mereça
atenção, a política sempre foi feita na base do exibicionismo, do “tipo ideal”
midiático – quando ela passou a ter importância fulcral –, quando não, na base
da oligarquia hereditária. Esta última, o modo mais corriqueiro de se fazer e
manter a política, enquanto poder, nas mãos dos mesmos senhores e senhoras de
terras e de gente no Brasil.
No país da onça de cativeiro assassinada
– são duas mortes em questão, vale frisar –, se aprende os meandros da Política
no ciclo vicioso da histórica maneira de se fazer política no jeitinho.
É como a vida numa cela de
presídio, numa Polinter da vida ou num morro qualquer: se você está ali, chegou
ali, por roubar um frango, um bombom numa loja de grande porte, mofará e perderá
toda a melanina da pele, será esquecido pelo Sistema e quando, enfim, deixar de
ser uma ficha numa pilha gigantesca, quando for lembrado, se for, sairá de lá
assaltante de banco.
Ou se está ali por um baseado queimado,
ou dois, até três, que seja. Por plantar em casa para consumo próprio. Enfim,
por ser usuário. Foda-se: saíra de lá traficante e revoltado.
Mas é claro, o menino do morro,
não planta e, pasmem, pouco fuma. Ele vende e ele é preto e negro é preso.
Presídio, Polinter e Morro: tudo uma coisa só.
Assim é a política brasileira,
assim é a prática universitária, é o futebol na rua, o namoro no portão ou a
arte na galeria: Jogue o jogo para sobreviver.
A práxis do erro: Jogue o jogo
Jogue o jogo. Frase típica nos salões de sinuca, principalmente,
entre os malandros cariocas da Lapa e os paulistas da Boca do Lixo. Jogue o
jogo: Joga vida roubada/ Joga vinte e
um.../ Sinuca, bilhar,/ Joga pra espetar/ Pra matar/ Pra defesa... (Jogador, de João Bosco e Aldir Blanc. Do disco Tiro de Misericórdia, 1977).
O mais temeroso, e essa é a pedra
que quero acertar nas vidraças insensíveis do Shopping Center Building com meu estilingue,
é tanto a esquerda, o centro, a direita e os lugar-comum, não se darem conta
disso.
A esquerda, a que mais me
interessa no momento, por exemplo, se apegou ao discurso de “só caçam o PT” e
caem no sumidouro narrativo de ignorar que a evidente corrupção petista é idêntica
ao jogo jogado pelo PSDB há anos e ao muro de poder que é o PMDB, para citar
aqui apenas os peixes grandes. Por outro lado, a direita, cada vez mais burra e
dominada por cagalhões, tem conseguido, aos trancos e barrancos golpistas,
manipular a massa como o sempre fez e manter o projeto evidente de só
evidenciar os males e falcatruas do Partido dos Trabalhadores e jogar para o
tapete que quem aparelhou o sistema foram eles mesmos e, de fato inegável, não
o PT.
Daí, a esquerda e a militância
petista – há uma grande diferença entre os dois ideologicamente na atualidade e
já alguns anos, por sinal – batem de frente dizendo “não!”, contudo, num tipo
de combate ainda mais tacanho e ingênuo do que mobilizar massas camponesas no
sertão que padecem sem água e pão.
Vejam bem: Primeiramente, o
interino ainda está inteiro. O salvador da pátria, a estrela branca e imaculada
no centro do vermelho sangue, já assinala para as eleições municipais a mesma
vinculação de alianças que lhe custaram mais que um dedo no torno.
Quem vemos no horizonte de
esperança? Ciro presidente? Lomba da massa, lomba da massa que não me
deixa sair de casa!
Veja mal: Em nenhum momento do
debate, se é que existe algum debate atualmente, a não ser agressões mútuas e
infantis, pudemos observar algum tipo de avaliação, um mea culpa sequer, dos erros políticos do governo derrubado. Não,
não estou falando da militância. Do eleitorado, de você e de mim. Falo das
lideranças. Claro, ingenuidade a minha, afinal, reconhecer os erros, é sair do
jogo sacramentado da nossa política, seria abandonar as trincheiras já cheias
de ratos e larvas de moscas varejeiras nas nossas feridas putrefatas e com vivo
pus. Apodreçamos, mas apodreçamos com honra, mesmo que ela, na verdade, seja
pura arrogância hagiográfica construída na Lapa, na Cinelândia ou na Avenida
Paulista sobre um carro de som e rouquidão e evidente cansaço.
Vejo o contrário. Observa-se uma
militância de esquerda reinventando, tão ingenuamente quanto você ouvir minha
voz solicitando autoavaliação das roucas lideranças, pautas de luta contra o
governo golpista, ignorando, por exemplo, que os índios já eram mortos sob a
bandeira vermelha do PT, tanto quanto são assassinados nesse momento e no
governo anterior e no anterior e no anterior e no anterior.
Mariana e Ouro Preto padecem na
lama podre e contaminada dessa Política feita, não pelo preparo político, mas
pelas mãos do jeitinho brasileiro. Se quer o que se quer: manter a práxis.
Ora, tínhamos a rainha do
agronegócio à frente da pasta... da agricultura! E agora assumiu o imperador.
Oito e oitenta.
O macho adulto branco sempre no
comando e A fila de soldados, quase
todos pretos dando porrada na nuca de malandros pretos, de ladrões mulatos e
outros quase brancos tratados como pretos: Reconhecer o valor necessário do ato hipócrita
Rafael Braga continua preso e ele,
a meu ver, é o maior símbolo dos buracos de avestruzes que somos cada um de nós
em nossas “lutas inglórias” de 2013 a 2016, em nossa militância ingênua de
joguetes. Cafés com leite, isso é o que nós somos na Política.
Café com leite. Termo, segundo o cronista paulistano João Antônio,
que se referia aos garotos que frequentavam os salões de sinuca não ser
permitido beber álcool e os mais velhos lhes darem café com leite. Ver a
antologia Malagueta, Perus e Bacanaço
e o conto homônimo (João Antônio. Contos
reunidos. São Paulo: Cosac Naify, 2012. p. 42-181).
Ignoramos os atos assinados
durante a última gestão desgovernada pelos desgovernos de favores e alianças:
Lei antiterrorismo contra nós terroristas.
Ignoramos até o mais sensível: os
únicos que pagaram pela ingenuidade, foram uma mulher branca, que lutou
bravamente contra a Ditadura Civil e Militar, sendo presa e torturada e que foi
eleita pelo povo esperançoso e um negro catador de latinhas, lavador de carro
nas ruas, representando bem o que é a massa e que somos nós massa esclarecida:
cafés com leite.
Os dois são similares. Os dois são
epígrafes para a sociedade e para o subtítulo chupado do falo de Caetano. De duas
canções de Caetano: Haiti, de 1993
(com uma pequena participação de Gilberto Gil) e O estrangeiro, de 1989.
Dilma Rousseff foi o joguete que
marca o machismo político e a dominação masculina nas mãos do mais do mesmo. O
moto contínuo. Ela é o exemplo da honestidade que foi derrubada pelos acordos
entre leões disfarçados de cordeiro. E está pagando esse preço. Quem era Dilma,
se não um interregno do projeto de poder de Lula e o liberalismo disfarçado do
PT? Quem é Dilma se não aquela que não compactuou com a práxis do Jogue o Jogo?
Não enxerga quem não quer ver. E por ser mulher, por si só, teve e tem de
enfrentar o antro sujo de homens sórdidos.
Rafael Braga é o negro, pobre e
marginalizado. É, nas poéticas palavras de Francisco Bosco, o malabarista do
sinal vermelho. Ele é a evidência de Como
quem vê por um vidro/ O que escapa da mão/ Uns exilados de um lado/ Da
realidade/ Outros reféns sem resgate/ Da própria tensão (Malabaristas do Sinal Vermelho, de João Bosco e Francisco Bosco. Do disco homônimo de 2003).
Por isso mesmo: Vamos comer Caetano/ Vamos devorá-lo/ Degluti-lo,
mastigá-lo/ Vamos lamber a língua (Vamos comer Caetano, de Adriana
Calcanhotto. Do disco Maritimo, 1998).
Ele é o profeta. O ateu que viu milagres que sabe que, às vezes, é solitário
viver.
O tiro de misericórdia ou o réquiem dos enganados
Do canto dos escravos, no passado
e no presente, ecoa para um ponto do peito uma canção:
Ê ei
Óia puru céu
Óia puru céu
Puru terra
Diabo te enganou Muriquim
Puru terra
Diabo te enganou João Inácio
Óia pro céu
Puru terra
Puru terra
(O Canto dos Escravos – Canto IV. Gravadora Eldorado, 1982)
Assim, a vida segue e
morre mais um garoto de dez anos como ladrão:
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