sábado, 2 de julho de 2016

Seu Gouveia, o cidadão de bem

63 anos. Aposentado aos 50. Bem disposto, joga todo sábado o futebol master no campo do Boró, dois tempos de quinze. Bebe sua cerveja em copo americano e em cadeira de ferro. Já deu uns tapas na mulher. 25 anos casado com a Doralice, aliança 24K gravada no interior pelo ourives: Fui o único. Certa vez, arrancou-lhe dois dentes, pois ela reclamou do batom na camisa e do cheiro de colônia feminina depois das suas andanças após o futebol.
Domingo, sentando no banco, rezou pra São Jorge, o Guerreiro, que desse forças para continuar com a mesma mulher. Ela à noite, no culto evangélico, ajoelhada orando para que Cristo Jesus acerte os caminhos do marido. Divórcio é coisa moderna desses avançados. O que Deus uniu o homem jamais pode separar. Nisso os dois são felizes. Apesar do próprio padre reticente e do pastor revoltado com a situação. Mas a oferta e o dízimo estão em dia. Dá-lhe oração e vigília. Queima-se vela e Ave Maria.
Jailson Salomão Costa Gouveia. Irmão mais novo de seis. Cidadão de bem. Burocrata. Demorava uma hora no cafezinho. Três para o almoço. Entrava nove e saía às dezesseis. Sonha com a volta dos militares. Naquele tempo não havia esse desbunde! Sempre achou grevista vagabundo. Porém, funcionário público, colheu delas os seus benefícios. Dos de São Bernardo do Campo, sempre teve pavor. Não gosta de nordestino, de preto, nem de candomblé. Mas todo dia 23 de abril não sabe se é cavalo ou se relembra que já foi coroinha.
Insulta Nicinho, o cabeleireiro, de “viado” e “dá cu”, mas, entre cascudos e maços de cigarro sem filtro, pede pra molecada comprar, junto ao jornal, fotonovela de travestis. Bandido bom, é bandido morto. Mulher de minissaia está pedindo pra se estuprada e filha sua, se casar, será de branco e cabaço. Seu Gouveia, cidadão de bem.
Machista. Sua mulher ainda coloca sua comida. Não sabe fritar um ovo. Mas, nas festas da família, em meio à birita, queima a carne do churrasco entre piadas sexistas. Lésbica é falta de piroca. Gay foi falta de porrada. Seu Gouveia, cidadão de bem. Aborto é pra mulher da vida. Apesar da rua inteira saber da Lindaura e da gravidez interrompida. O silêncio feminino na mesa de jantar. Lavam-se as louças. Ouve-se um arroto. A TV está ligada e um forte ronco na poltrona. Seu Gouveia, cidadão de bem, encerra mais um domingo comum.

Um comentário:

Andre de Lemos disse...

Belo texto. Essa crônicas são muito boas como metonímias do Brasil que a gente conhece bem. Bom, eu conheço muitos "Seus Gouveias" por aí, mais até (muito mais) do que gostaria.

Abraço!