quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Verdade e Literatura ou O Dente de Leão que somos todos e A melhor publicação que participei em dois mil e quatorze (A volta dos Zines que nunca deixaram de ir e voltar)

A foto tomei de assalto da página do Café com Veneno (corre lá)



Numa dessas estradas de barro vermelho e batido, esburacada pela chuva e pelo vento, estreita como a vida. Numa dessas estradas que nos levam a lugar nenhum ou a todos os lugares. Nessas estradas em que você morre ou que você se encontra. Numa dessas estradas me lembrei de você. O sorriso se esvaiu e o silêncio imperou em todos nós. A vida que escorre e vida é vida. Me lembrei de você e me obriguei a parar. O corpo já sem ar com um dos olhos para fora, pequeno, tão frágil, quase do mesmo tamanho de quando você chegou lá em casa assustado e quebrou um pedaço do São Amarante que fica no móvel de som, naquele instante, nos amamos e nos demos bem, dei-te o nome de Gregório, o nome você já tinha. O Gregório já existia. Por isso lembrei de você quando vi aquele bichano cinza e rajado morto na estrada quieta e escura de um lugar da Bahia, por isso desci e retirei o corpo que poderia ser teu, após saltitar caçando um rato, uma barata ou outro inseto qualquer. Ficamos todos em silêncio. A barriga mole me lembrou a tua para cima pedindo carinho e atenção. As listras dos pelos me lembrando o brilho do amarelo e branco que é só teu – eu sei que existem milhões de vira-latas como você, mas você é só meu e eu sou só teu. Eu no meio do silêncio ouvi você reclamando, miando para eu correr atrás feito um bobo, imbecil e ignorante que sou. Correndo com você pelos cômodos da casa fazendo voz de pateta ou coisa do tipo. Foram alguns minutos parado, vendo a vida que se foi e vida é vida.

...

Um dia queria conversar com você sobre o que eu disse um dia: Talvez a Literatura diga mais verdades que qualquer outra manifestação (como a História com H maiúsculo, por exemplo, ou mesmo aquela com h minúsculo, precisaria aqui de uma nota para a minha divagação, não o tenho). Talvez, num conto, eu diga a verdade mais que tudo. Talvez, a verdade esteja mais manifesta conscientemente numa obra artística escrita, como um romance, uma antologia de contos, poemas, etc. Não sei. Mas, às vezes me sinto mais livre e alcançando mais a verdade vendo um quadro, lendo um livro, que uma tese. Não quero ser chato nesse momento, nesse pileque, não quero discutir com você metahistória, nem criticar Hayden White ou coisa do tipo. Não, na verdade, queria que você ouvisse minha voz nesse momento, um tanto embargada por causa de um bichano qualquer. Por causa de relações tão fraternais. Os amores de dente de leão que a gente convive, vive, desvive, transborda. A verdade pulsa num poema. A verdade vive na Literatura. O conto fala mais. O conto me livra de mim. A crônica é invenção da mentira... divagações, eu sei. Amo vocês igualzinho. Feito um menino. Para sempre.

...

Para o Aquino Neto

Este ano voltei à vida. Mentira, nunca deixei de viver. Mas, estou mais livre do que nunca. Foda-se. Interpretem como quiserem, as vozes que ecoam de mim são muitas. Foda-se. Esse ano publiquei razoavelmente bem um monte de coisas disso e daquilo outro e minha publicação de maior orgulho foi num Zine chamado Linhas Tortas (clica aqui se você tem Facebook e fé na arte que vem via Correios) tocado por um grande amigo meu aqui de Aracaju, chamado Aquino Neto, vegetariano, ciclista, McGyver e que corria descalço um tempo atrás. É meu irmão. Tiramos onda juntos no ano que se vai viajando de pedal apenas com dois isotônicos e uma barra de cereal: vamos de pedal hoje, man? E íamos.
As coisas da vida, as merdas da vida me mergulharam em merda, me afundei em merda e atrasei minhas pedaladas, fiquei estressado, a coisa desandou e mandei os chatos, caretas, covardes, para a mesma merda que a minha e a coisa tende a melhorar... Quem sabe?
A questão é que publiquei no Linhas Tortas do Zé Aquino, filho do Zé Aquino, contador de causos para mim no Augusto Franco e neto do Zé Aquino que trabalhava na Ferrovia quando havia ferrovia e irmão de algumas pessoas e irmão do Yuri (sobre o Yuri escrevo semana que vem, tenho duas artes dele agora e divulgo semana que vem, vocês precisam ver as artes do Yuri e dos amigos do Yuri e dos amigos dos amigos do Yuri. O Yuri também anda de pedal e coloca sua arte nos muros e coloca sua arte na vida ou a vida na arte, coisa assim).
Fazia meses, muitos meses que o Neto me pedia um texto: me dá um texto. Dô. E não dava. Sei lá cargas d’água o motivo. Ele roubou, bandido safado, eu disse a ele: também existe ladrão vegan, seu Puto. Ele roubou uma nota minha no Facebook. Que maravilha! Hoje fui à sua casa e ele me deu o 49 de 100 do volume #3. Quando cheguei em casa (eu já havia visto a publicação pela internet) chorei um bocado como chorei e choro vendo “Três irmãos de sangue”. Na verdade, choro à toa.
De tudo que publiquei este ano, o que mais me orgulhou foi estar no Linhas Tortas com meu “LIBERDADE E BICICLETA” que eu escrevi em homenagem a um monte de gente que eu amo e ao Syd Barrett que esbarrei um dia de bicicleta em Cambridge quando eu ia comprar pão. Mentira. Mas o que é a verdade? Acho que foi um sonho, mas nos esbarramos sim, sei que nos esbarramos em algum momento.

Axé!


domingo, 14 de dezembro de 2014

O sádico do Parque de Diversões

Sou um ser humano agressivo, não sei dizer se naturalmente ou como fruto de um ambiente repressivo. Mas, não sou hipócrita, nada se justifica. Sou um sádico, mas sou demasiadamente humano.
Vivo num apartamento bem próximo ao Centro da cidade, no máximo vinte minutos de ônibus. Fruto de herança, pago apenas o condomínio nem tão caro, nem tão barato. A região se valorizou nos últimos anos. Estou cercado pela pequena burguesia de professores universitários, novos iludidos ricos, gente de todo o tipo. Aqui do alto do décimo primeiro andar, posso ver as mulheres com suas calças de lycra apertadas e coloridas, tops e meias soquetes ridiculamente até os joelhos.
Sou agressivo. A decoração de natal me irrita. A vizinha de baby-doll vermelho escovando os cabelos me irrita. O trânsito me irrita. Tenho vontade de gritar para o rapaz do prédio da frente que toda noite vai à varanda fumar um baseado e tem crises e mais crises de tosse nos intervalos de cada tragada: Sua besta por que você não para?
Meu pai era oficial das Forças Armadas, um sádico torturador que não resistiu a Abertura e se matou. Penso que se matou por eu ter escolhido um curso universitário na área de Humanas, mesmo quando ele me ofereceu o gabarito da prova do Instituto Militar. Desde então, me torturava com fotos de gente no pau de arara, dedos sendo desunhados e coisas do tipo. Meu pai, que o inferno o tenha, se matou no dia da minha formatura na graduação. Não o culpo. Desejo que esteja no seu inferno cristão ardendo com os comunistas que ele matou. Não existe céu: eu sei.
De minha mãe, pouco se tem notícia. Parece que fugiu com um peruano que tocava flauta andina. Ela deve ser feliz. Só a conheço por fotos. Viva a cultura hippie. O sonho acabou. Melhor mesmo é nunca acordar.
Desde meus vinte um anos vivo com Aderbal. Curiosa sua, nossa, história: O encontrei na sarjeta no parque municipal onde eu procurava caminhar para esquecer a vida – às vezes é solitário viver, já disse alguém. Ele sangrava num olho, talvez, arrancado numa briga ou por algum playboy de merda, como eu. Pensei em passar apenas uns dias o ajudando, acabou ficando como todo desabrigado faz. Tive pena. Ou talvez ele tenha tido mais pena de mim?
Desde o fim da graduação que pulo de emprego em emprego. Já fui trocador de ônibus, atendente de farmácia, fiscal de endemias e até barman em puteiro. Foi quando conheci Manuel.
Alto e desengonçado, eu sempre servia uma dose a mais do que ele pagava. "Foda-se o patrão", eu dizia. “Afinal, ele ganha dinheiro com foda, não?”. Manuel sorria. Um dia me viu na porta de trás do prostíbulo espancando um marombadinho de academia escroto que havia agredido uma das meninas: sou agressivo, mas não suporto homem que bata em mulher. Quando tentou me segurar, dei-lhe um murro na cara que lhe varou o canino. Manuel não gemeu. Mas, assim como Aderbal, sabia reconhecer minha sinceridade: “Tenho um emprego pra ti, ô do soco”. Limpando minhas mãos do sangue do salafrário, apenas murmurei ainda ofegante: “Onde?”.
Desde então progredi no ofício e virei leão de chácara. Manuel, na verdade, era o dono do maior puteiro da região, o Better Pleasure. Um dia, antes de pedir demissão, perguntei: “Que porra de nome é esse, Manél?”. Ele na elegância disse: “Melhor Prazer! Não percebe o som que dá better? Eu queria “metter” para parecer “mete” ou “meter”, mas não achei significado no dicionário em inglês português. Ô do soco, você não era granfino? Não transa da língua dos isteites?” Sorri, balancei a cabeça e deixei pra lá. A língua é viva! A língua é uma pátria. Manuel tinha a sua.
Tenho jeito de rico, fui educado nas melhores escolas que o dinheiro público e a tortura descarada poderiam pagar. Não sou mais rico. Foda-se, consigo me virar, me manter. Um bico aqui outro acolá. Mas ter jeito de rico, sorriso de rico, abre as portas. Mas, sou agressivo e minha agressividade não tolera homem que bata em mulher. Foi quando conheci Ariane.
Ela era nova na padaria em que eu, todas e todas as manhãs, tomava meu café com pão na chapa. Tinha um sorriso branco, pele branca, cabelos claros e um olhar distante e faminto. Eu entendo de olhares distantes e famintos. Aderbal, caolho, tinha um olhar assim quando o vi. Um dia ela puxou assunto. Eu não gosto de conversar com ninguém fora do trabalho, a não ser Aderbal. Mas, além de não ter um olho, ele também não fala. Abri uma exceção para Ariane, a merda estava feita e merda rala fede tanto quanto. Merda é merda.
Só me recordo dela gritando, era um “para! para!” ensurdecedor, quando voltei a si, minhas mãos já haviam afundado a cara daquele puto. Lembro a sensação, minha mão direita firme indo e vindo quebrando cada osso de sua face imunda, cada dente se despedaçando e esfarelando. Seu sangue misturado aos cortes que se faziam no meu punho. Sou corpo molenga pesando sem firmeza na minha mão esquerda e Ariane gritando histérica. O que me deixou mais ensandecido foi ela chorando dizendo que ele não queria fazer aquilo! Ela que tome no cu. Um olho roxo e dois dentes quebrados na primeira vez. Deixei passar, falou que foi assalto. Mas, costela quebrada e corte no braço? Duas semanas depois? Sou agressivo: mas não tolero homem que bate em mulher.
Um sorriso abre portas, cabelos penteados e uma boa retórica também. A Abertura se deu, mas os ratos permanecem nos bueiros. Um velho amigo do meu pai, que o inferno o tenha, aliviou a situação. Afinal, o morto “era bandido”, disse ele. E completou: “Bandido bom é bandido morto”. Não entendo porque tanto eu quanto ele ainda estamos vivos. Que os vermes nos esperem. Sorri e voltei para casa.
Perdi a conversa fiada com a Ariane, ela os dois dentes. Perdi o café de merda e o pão tosco.
Já estava sem emprego um mês, o condomínio ia vencer. Nunca atrasei uma conta. Não vou lecionar. Sou agressivo e as crianças e jovens de hoje me dão nojo. Comeria todo mundo na porrada. Ia dar merda. Aderbal olha para minha cara, não fala nada. Filho da puta. Come, dorme, caga. Come, dorme e caga. Mas, acho que é o único ser vivo que eu amo e respeito.
Contratei uma prostituta. Não sou misógino. Pedia que ela gritasse seu nome: Aderbal, Aderbal. Pedia que enchesse a boca enquanto estivesse em cima de mim: Aderbal, Aderbal. Ele nem aí. Ela não entendia. Mas isso me deu prazer. Foi a única vez depois de Antonia. Um dia falo sobre Antonia, meu verdadeiro amor. Meu derradeiro amor de faculdade.
Contratei outras moças, finas, na maioria das vezes. Queria uma companhia diferente do Aderbal. Ele lá, caladão, na dele. E eu com cada uma delas, uma diferente a cada dia, apenas conversando amenidades como o tempo, o Cruzeiro do Sul e o suplemento de arte do jornal. Encontrava essas simpáticas acompanhantes em anúncios especializados nos classificados:
“Julieta, morena, peitos firme, bundinha de neném. Falo duas línguas, não sou apenas um corpo bonito: tenho classe.”
Simples e certeira. Só não liguei porque não gosto de caracterizações que utilizam metáforas com aspectos infantis. Quem ia querer comer uma bunda de neném? Que animal faria isso? Sou agressivo: mas não tolero pedófilo.
“Tamara, lindos lábios, olhos verdes naturais. Seios como de pitombas, marquinha de biquíni. Fã do Chico Buarque.”
Tamara era realmente o que dizia ser, quase ensaiei em levá-la para cama, mas feriria meus princípios. Desde o caso do Aderbal, fiquei encabulado com o que fiz e um tanto retraído.
“Você tirou a metáfora dos seios de pitomba de uma música do Chico, não?”, era o teste final. “Sim, a canção se chama “Carioca”, você gosta?”. Confesso que meu pau endureceu. Nada mais charmoso no mundo que mulher pilotando uma moto num trânsito como o da Avenida Paulista e uma puta com classe.
Sou agressivo. Vivo com Aderbal, um abandonado que encontrei na sarjeta. Cuidei, penteei e ele me é fiel e eu a ele. Ele ouve meus lamentos.  Sabe de cor minhas histórias. Hoje encontrei um emprego ideal. Sexta, sábado, domingo e feriados. Ganharei pelos dias cem notas. Cada tarde/noite de trabalho cem notas. Meu condomínio custa quatrocentos por mês. Ainda tenho tempo para caminhar pelo Centro, pagar Tamara, comprar comida para o Aderbal e para mim. Conta de luz e os créditos no celular.
Trabalho num parque de diversões. Desde que vim para cá, desde Tamara entrar e sair do meu apartamento, nunca mais tive rompantes de violência. Eu acho. Comecei no tiro ao alvo. Me dava gosto ver as pessoas atirando nos biscoitos baratos, nos doces gordurosos. Com o tempo, com o sumiço do operador dos carros que batem, tive minha primeira epifania: eu me sentia leve ao ver as pessoas batendo, se perseguindo umas às outras enquanto eu era o dono do controle. Quando eu via que as pessoas só queriam rodar de um lado para o outro, num clima de paz e harmonia, eu reduzia o tempo no brinquedo e acabava com essa merda toda.
Um dia, um pai mais exaltado, veio tirar satisfação, mandei-o tomar no olho do cu. Na verdade, em respeito à criança e à mulher que o acompanhavam, o convidei para um canto e quando só nós dois nos olhávamos, disse eu com a boca cheia de palavras: “Vai tomar no olho do seu cu. Quem controla o brinquedo sou eu. Estamos entendidos, amizade? Agora, toma esse ticket aqui e vai levar teu menino para passear.”. Sou agressivo, mas não tolero falta de educação.
Constrangido e raivoso ele partiu. A mulher, perguntou o que era, ele balançou a cabeça e nada mais. Sou agressivo.
Minha ascensão começou após um ano inteiro de fins de semana alegres, nos quais eu me penteava, me vestia, me perfumava, até a barba fazia, só para ligar e desligar o Barco Viking e conduzir a fila. Não há maior poder do que estar no controle daquele apetrecho que como um pêndulo vai de um lado para o outro ao meu comando, ora mais lento, ora mais rápido. Pessoas gritando. Os mais parrudos, os esmilinguidos, as meninas... Eu nem me importava em limpar vômito – o auge do poder – e algumas vezes até merda nos bancos. Acho até que isso me excitava mais.
Mas a vida é como uma roda gigante, tão clichê, eu sei, mas é verdade. Minha queda veio junto de minha ascensão. Não se mantém vivo um humilhado. Para todos nós está reservado o inferno. Mais um domingo, um domingo qualquer, desses sem importância ou razão de ser. Tenho boa memória e vi que o pai do carro que bate e bate estava na fila com seu garoto, um pouco maior. Todo operador de parque de diversões tem um pouco de sadismo e maldade na alegria de atordoar uma criança, seja pelo medo ou pelo fim do tempo no brinquedo. Eu sou agressivo.
Nunca aumentei tanto a velocidade. O cara não gritava, não esboçava gesto, medo, angústia. Nada. Eu aumentava mais. Três já haviam vomitado. Mães gritando abaixo de mim, ao pé da escada de acesso. Os parafusos faziam barulhos. O homem não se movia. Era uma estátua entre o vento, os pedaços de comida. Seu filho chorava e nem por isso ele se mexia. Desligaram a força. Aos poucos o barco foi parando. Sensação estranha. Eu sou agressivo. Não conseguia me mover. O homem calmamente desceu do brinquedo, pegou o filho pelas mãos, sua mulher chorava. Chegou perto de mim, seu hálito era fresco, menta e hortelã. Chegou perto de mim, eu só ouvia gritos. Vozes misturadas, sotaques muitos. Chegou perto de mim. As luzes se misturando... “Tamara. Com quem ficará Aderbal?”.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

“Relações humanas na contemporaneidade e seus reflexos na literatura nacional”

“Não Adelmo, ninguém mais lê seus livros, seus textos... Nada do que você publica desde seu romance-manifesto Notícias falaciosas, mundo cão e meu colchão é lido! Aliás, você ainda consegue pagar suas contas, mal e porcamente, com os poucos direitos autorais que recebe por ele. Sorte sua, ter conseguido em apenas 200 e poucas páginas vomitar tudo que a sociedade burguesa, os hippies, os loucos de cara, tudo junto, conseguiam identificar e se identificar. Sorte sua. Mas, hoje não dá, meu querido, não dá! Está me entendendo? N-Ã-O D-Á! A coisa tem que ser rápida, vapt-vulpt, assim ó: um estalo de dedos. Conhece Twitter? Facebook? Instragam? Então, meu filho! Pra você ver, até os textos de blog morreram. Ninguém lê. Apenas uns jovens de, sei lá, 30 e poucos anos, nostálgicos dos anos 2000.”.

Eu ouvia tudo calado no meu apartamento pequeno e sufocante, já quitado, no centro. Realmente, Notícias falaciosas, mundo cão e meu colchão foi um marco na literatura do país, eu tinha 32 anos. Relativamente jovem. Hoje tenho 50 e continuo relativamente jovem, apesar de algumas broxadas. Mas, eu broxei umas três vezes entre os 20 e 30. A última foi com a Néia, justamente minha editora que agora despeja estas injustas críticas. Isso faz uma semana. Não liguei depois da foda mal dada, isso deve ter incomodado bastante. O mundo é cão, é machista, é patriarcal. A broxada nem foi culpa da Néia, não foi culpa de ninguém. Ela é inteligente. Sua boca grande é devidamente harmoniosa com seus lábios levemente grossos. Sua maturidade ainda guarda um ar sensual do desconhecido. Seu corpo tem os caminhos tateantes de pequenas celulites nas nádegas e sua barriga e seios são convites instintivos ao amor. Eu, pobre de mim, a velha barriga de cerveja, as pontas dos dedos amareladas de cigarro, um pau já velho e flácido, minhas coxas são brancas que lembram um frango na granja recém depenado. Néia envelheceu bem. Eu não. Broxar na frente de um olhar carinhoso e amoroso como o dela foi um pecado. Mas, o erro maior foi não ter conversado: o mundo é cão.
Ela sai e bate a porta, me mantenho em silêncio sentado na velha poltrona suja com os pelos velhos do Nestor. Não tenho empregada. Aliás, coisa bizarra chamar empregada doméstica de secretária. Falei sobre isso no livro. Minha escrita foi se tornando pesadamente filosófica. Eu queria ser como o Fonseca, não sei, até mesmo como o Noll, equilibrar narrativa com poesia. Crônica com reflexão profunda de uma metalinguagem. Que se foda o suplemento do jornal de domingo e de segunda. Não quero aparecer nos cadernos Y e Z. Mas, Néia tem razão, a coisa está tensa, o buraco está afundando cada vez mais. Meu gerente do banco já nem me atende. Reduzi imensamente meus jantares fora de casa.

“Alô, boa tarde, gostaria de falar com o senhor Adelmo Duarte”.
“Pois não, é ele. Adelmo Duarte”.
“Senhor Adelmo, aqui é da sucursal norte do Jornal O Pergaminho. O senhor já deve ter ouvido falar, publicamos artigos de escritores renomados sobre o cotidiano da capital e mesmo de algumas cidades do país sem tanta projeção quanto as dos grandes centros”.
“Não, nunca li vocês”.
“Como não, senhor...”
“Por favor, me chame por você... não leio tudo que me chega pelos Correios”.
“Claro, tudo bem, mas como eu disse, O Pergaminho é um dos suplementos mais acessados na Internet, temos ditado moda e alçado à fama, por meio das opiniões respeitadas pelos grandes autores da nossa literatura, jovens escritores como Agripinho Espínula, Salvador Salendo e tantos outros. Inclusive, fomos nós que colocamos no mainstream a revelação do ano, primeiro lugar no Prêmio Nacional de Literatura, Otávio Lucio da Silva, com o romance Águas: Romance”.
“Entendo, eu li o romance, realmente é bom. Mas, não sei se se tornou tão bom porque ganhou o prêmio ou se ganhou o prêmio porque é bom, compreende?”.
“Claro [silêncio]. Adelmo, a questão da ligação é para fazer um pequeno convite. Seu famoso livro Notícias falaciosas, mundo cão e meu colchão ainda hoje é um marco da literatura nacional, quiçá em língua portuguesa! E frente ao que se tornou a sociedade atual, gostaríamos que você assinasse uma coluna semanalmente em nosso jornal. O que você acha? Além da possibilidade de divulgar seus trabalhos, que [ele tosse nesse momento e demonstra pelo telefone um certo silêncio de constrangimento], infelizmente, estão um tanto em baixa, pagaremos uma razoável quantia por texto entregue”.
“Sou livre para escrever o que eu quiser?”.
“Frente às normas atuais da Rede Mundial de Computadores, sim. Desde que respeite algumas cláusulas contratuais que te enviaremos por e-mail. Mas, nesse primeiro texto, como, digamos [novo silêncio pausado de constrangimento], qual melhor palavra?, um certo teste de recepção por parte dos nossos leitores, gostaríamos de te sugerir um tema. Pode ser?”

Eu, durante a universidade, trabalhei com propaganda e confesso que não me dei muito bem, meus textos eram muito prolixos e as mensagens muito longas, tudo que tivesse um tema, aliás, desde a época da escola, me fodia drasticamente o tesão. Ah, Néia, eu deveria ter te ligado. Eu te respeito.

“Sim, pode ser. Qual o tema?”
“Relações humanas na contemporaneidade e seus reflexos na literatura nacional”.
“Tudo bem, aceito”.

Sinto que fiz a maior merda da minha vida, desde que escrevi e publiquei, por conta própria, meu último livro Raízes de chão arenoso: os desabrigados do amor que minha carreira, que se resume ao tal livro romance-manifesto, estancou. O livro era um alerta, romanceado, claro, sobre os modismos da juventude burguesa de comer merda e postar em fotologs. Hoje, já se sabe que comer merda é uma merda e que os fotologs foram substituídos pelo Instragam, mas, as pessoas continuam fotografando suas comidas e postando na Rede. A merda continua. O livro vendeu 50 exemplares de uma tiragem de 3.000. Uso como obstáculos para que o Nestor se exercite no apartamento. Ele nunca utilizou a brincadeira. Meu gato é meu único amigo.
Ah, Néia, o mundo cão, patriarcal, machista. Nós homens confundimos ejaculação com orgasmo. Como temos inveja de vocês mulheres. Eu te respeito.


“Relações humanas na contemporaneidade e seus reflexos na literatura nacional”

100.000 caracteres com espaços foi o que deu Relações humanas na contemporaneidade e seus reflexos na literatura nacional, sem contar o título, é claro. Foi lido, na verdade acessado, por cinco pessoas. Das quais, duas eram estudantes de Sociologia e estavam procurando uma resenha para um livro de Zygmunt Bauman que teriam que ler para um trabalho de universidade, mas estavam com preguiça [falta de tempo, conforme dizem atualmente o futuro da intelectualidade da nossa nação] e preferiram buscar o trabalho alheio. Os outros três foram o editor do suplemento, eu e um viciado em pornografia que estava procurando como palavra chave no buscador: “relações humanas”.

“Textos longos estão mortos, Adelmo. Assim como você está fadado a ficar como o autor de um livro romance-manifesto”. Disse Néia pelo telefone quando lhe liguei para pedir desculpas e dizer que a amava. Ah, Néia, nós os homens. O mundo é cão, machista, patriarcal. Eu te respeito.

Não disse que amava Néia. Desliguei o telefone e suspirei. Me afastei do aparador, olhei Nestor por um momento, cocei a bunda. Pobre Nestor: o mundo é cão. Ah, Néia, nós os homens. Malditos homens.
Me lembrei do velho professor da graduação que dizia que escrever era ter coragem, era como se jogar de um prédio alto, pela janela, abrir os braços e esperar o resultado. Do fundo da sala murmurei pro Claudomiro: suicídio não seria um ato de covardia frente aos problemas da vida?
A máxima é verdadeira: professores tem olhos de lince e ouvidos de tuberculosos. Ele retrucou com a arrogância do título: “Tente fazer isso um dia” e citou Kundera:
“que é vertigem? Medo de cair? Mas por que temos vertigem num mirante cercado por
uma balaustrada sólida? Vertigem não é medo de cair, é outra coisa. É a voz do vazio
debaixo de nós, que nos atrai e nos envolve, é o desejo da queda do qual logo nos defendemos aterrorizados.”
Fiquei sem graça. Evidente que nos dias atuais, como previ em meu livro Túneis e estações, este professor teria sido processado por algum aluno que se sentiu constrangido. Outros tempos. 
Cito de cabeça, sem lembrar a página, um trecho deste meu segundo livro, a edição vendeu um pouco mais do Raízes de chão arenoso, algo totalmente explicável pela lógica mercadológica da literatura nacional, ele vinha a reboque do meu primeiro romance: “A vida esfumaça enquanto no vagar dos trilhos eu caminho apressado, minha vida é um túnel sem volta, sem luz, sem nada”
Esta era a fala final de Laureano, o protagonista que se vê sozinho, abandonado, após se foder constantemente em relacionamentos vazios com homens e mulheres. Era um letrado marginal. Chupei este tipo de personagem de uma literatura a la fins dos 60 do século XX, um belo passado.

“Alô, Néia? [silêncio sepulcral]” Desligo mais uma vez o telefone.

Me lembrei mais uma vez do velho professor. Mais uma vez, olho Nestor. Porra, isso acabou rimando. Que merda. Estou decidido. Que se danem todos vocês! Eu já disse? Escrevo com letras trêmulas: Não sei até onde vão os grandes textos. A grande literatura. Os autores atiram pérolas como porcos. Eu te amo. Mas, pobre de mim, sou homem.

Minhas mãos estão trêmulas, só posso dizer que parecem pedras de gelo num copo de uísque, aquele mesmo barulho. Coloquei uma boa quantidade de comida para o Nestor, limpei suas fezes na caixa de areia, troquei sua água e pus uma outra reserva. Não há de demorar. Ele não ficará só. Abro a janela, única coisa ampla nesse espaço apertado, abro meus braços e pulo. Puta que pariu, a mensagem ficou dúbia. Não há tempo para vento nos cabelos. Puta que pariu, não me dei conta que moro no segundo andar desse prédio.

“Adelmo, fantástico! Alguém encontrou seu twitter anárquico escrito a mão, com exatos 140 caracteres, fotografou e postou no Facebook. Seu manifesto antes de cair... aliás, como você caiu da porra da janela do segundo andar? Enfim, seu manifesto rompendo com a lógica de escrever no Twitter os 140 caracteres, mas fazendo isso num papel em branco, sem pautas, foi uma mensagem fenomenal para a lógica de que não há mais compartimentação entre redes sociais e sociabilidade física. Inclusive, Twitter e Instragam estão pensando uma forma de se fundirem. Se é que já não o fizeram neste momento. Todos estão tentando criar uma plataforma que permita que o que se escreva à mão, automaticamente, desde que tenha a quantidade de caracteres permitidos [140, Néia deveria ressaltar], vá direto para a Rede.
Mas, realmente não entendo como você me foi tropeçar e cair da janela. Os jornais derrubaram a tese de tentativa de suicídio, com o auxílio da Editora Moema e do O Pergaminho, uma vez que, devido ao seu grau de capacidade intelectual e a forma como você estava caído no chão, jamais se poderia supor que você pulou, ninguém morre de uma queda do segundo andar, ainda mais de um prédio baixo como o teu! Além disso, os bombeiros encontraram seu computador e sua máquina digital ligados, próximo ao papel com a mensagem. Muito inteligente da sua parte, escrever exatos 140 caracteres, fotografar e depois postar nas redes sociais [risos de Néia. Que riso gostoso. Néia, me coma. Me trague com seus lábios inferiores. Me ponha entre as suas pernas! Me sugue para o seu mundo úmido]

Estou com uma perna quebrada. Erro de cálculo. Assim nascem os heróis. Da literatura. Da economia. Da grande mídia.

[Um tanto sem graça, Néia continua após longa pausa pensativa...] “Agora pude entender. Não deu certo, às vezes não rola mesmo, Adelmo. Mas é bom ver que você se encontrou, enfim, se encontrou. A homossexualidade, apesar dos repugnantes fundamentalistas religiosos e da bancada governante que está no poder, já tem sido encarada com mais tranquilidade, ao menos em outros países, quem sabe lá vocês podem se casar, o dinheiro agora vai entrar, a Editora Moema está preparando com urgência a reedição de todos os seus livros, contos e crônicas. Sem grilo, não fica mágoa. Nós tentamos. Mas eu sempre suspeitei que você precisava se aceitar. Aquele dia foi constrangedor mesmo. Foi a gota d’água, mas passou, podemos voltar a ser bons amigos. Vários líderes do Movimento Gay estão telefonando para fotografias e solicitando, após sua alta, declarações sobre sua tentativa de quebra de questões biológicas e sexuais através desse seu mais novo manifesto literário. Os estudiosos de Gênero, inclusive, estão organizando um I Colóquio Nacional Literatura Genderificada, tendo o seu livro Túneis e estações como o grande mote de estudos e tema de Simpósios de Debates e Grupos de Trabalhos. Nossa, me perdoa, Adelmo, como nunca percebi que o Laureano era na verdade seu alterego gritando por liberdade sexual?” [Ah, Néia, como eu queria cortar tudo o que você está falando. Te interromper com um beijo, chupar-te todo o corpo e o sumo de sua excitação. Mas não posso, sou homem, machista, o mundo é cão.]

Erro de cálculo. Assim nascem os heróis. Da literatura. Da economia. Da grande mídia. O futuro pertence às poucas palavras. Erro de cálculo. Pobre Nestor: o mundo é cão.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

A aspereza da vida

O silêncio ainda rodeia a casa, os cachorros caminham, se deitam, caminham. Não há muito que fazer. Não posso me atrasar, nunca tive o hábito de tomar café, curioso, posso sentir a colher de sopa entrando e se chocando com meus dentes com um Nescal morno e um leite com nata, enquanto sentado na mureta da varanda minha mãe me obrigava a me alimentar antes de ir para a escola. Não sei o que gostava menos.
Não posso me atrasar. O 005 Mesquita X Praça Mauá passa religiosamente no mesmo horário. São os mesmos rostos, do trocador, do motorista, da moça da poltrona alta. Todos com olhares cansados, vidas cansadas. Não entendo bem as coisas, mas meu pai disse que seria interessante para mim, apesar da universidade, apesar do terceiro período, ele tinha razão, difícil ele não ter razão. Apesar de eu já não ir às aulas regularmente.
Hoje o terminal é um museu, não sei que fim deu o bar bem em frente ao ponto do Caxias X Praça Mauá. Dali escoava de quando em quando, também, até uns ônibus para Itaipuaçu e cercanias. Não me recordo a empresa. Era engraçado como as roupas se modificavam, os empregos também, pouco, mas, também. O pessoal do Evanil que fazia Nova Iguaçu X Praça Mauá era meio esnobe, penso eu.
Eu cheirava a querosene, minhas mãos estavam sempre sujas de tinta branca, maldita tinta branca, ou zarcão. Não, eu não tomava banho ao final do expediente, queria sair dali o mais rápido o possível. Digressões.
O que importa para você agora são as manhãs e a conversa com Tereza, não? Como descrevê-la sem sentir um cheiro demasiadamente doce que exalava de sua bolsa quando a abria para pegar um cigarro? Como te falar como ela era sem sentir na minha boca aquele gosto de pão francês com bife à milanesa que eu tomava no café da manhã naquele bar que agora me foge o nome da memória? Como? Não sei nem se posso impostar a voz e tentar imitar os emigrantes que trabalhavam ali ou os chineses que saíram do cais, dos enormes navios e passaram a noite inteira fodendo e bebendo.
Nunca perguntei sua idade, mas, assim como ela eu sempre tomava café no mesmo banco redondo de haste de ferro e assento de madeira envernizada. Nos primeiros dias, sequer nos olhávamos. Na verdade, eu a espiava de canto de olho quando acendia com uma delicadeza seu cigarro de filtro amarelo ou sei lá o que.
Eu procurava variar minha rotina, meu pai, figura forte em minha formação, sempre me aconselhou jamais fazer os mesmos caminhos, ter os mesmos hábitos: “Podem estar te vigiado”, ele dizia. Logo, dia sim, dia não, tomava café numa birosca diferente da Praça Mauá, as biroscas estão acabando, assim como a Praça Mauá. O único lugar mais atrativo e com comida decente era aquele boteco ao lado do puteiro que também não me lembro o nome. Puteiro muda muito de nome no centro do Rio. Não acabaram com o bar e nem com o puteiro.
Ali se servia um tal “Copacabana”, pão com ovo estrelado e queijo prato e, sim, o impecável pão com bife à milanesa. O lugar era decente, dentro do que você possa entender ou como queira entender por decente. Minha tese é que a comida tinha que ser boa e era boa pois servia as putas de uma longa jornada, os marujos do cais do porto, os milicos da Marinha, mendigos, continos e jovens atendentes de telemarkting.
Tereza e eu éramos parte da clientela padrão, logo, frequentadores assíduos. Num dia após um serviço de domingo para segunda de feriado, encontrei com ela sentada no cativo banco, o dia era vazio, o centro vazio. A Praça Mauá só tinha pombos e mendigos e uns poucos marujos saindo do Primeiro Distrito Naval.
Nunca perguntei sua idade, ela sabia a minha, sabia que eu era passageiro ali, que logo voltaria para a rotina da universidade e que o desvio de percurso era apenas para eu aprender que a vida era áspera como a barba de um alguém desconhecido em seu pescoço naquela noite anterior de tantas outras noites anteriores. Não havia tanta poesia assim em suas palavras. Aliás, não há poesia na miséria, tirando as fotos feitas pelo Salgado, não?
Foi a derradeira conversa. Ela me perguntou de forma tão doce quanto o cheiro que exalava da sua bolsa, o cheiro misturado com o frescor da menta que saia da sua boca com o cigarro: “Você é estranho, garoto. Nunca vi boyzinho assim não comer puta”. Não disse a ela, mas digo agora: tenho o maior respeito pelas prostitutas. É lugar comum dizer que é a profissão mais antiga do mundo. Maria Madalena, dizem, era prostituta antes de conhecer Jesus, mas, dizem também que, na verdade, continuava puta para sustentar o mesmo Jesus em suas andanças. Há lógica nisso. Houve um tempo no Brasil que vendia-se sangue, legalmente. Boyzinho é o marujo jovem, chamam assim na Marinha, que se saiba, não era minha condição social debatida naquele balcão, mas, meus status quo de marinheiro-recruta. Digressões e mais digressões. Entenda como quiser.
"Me falta curiosidade", respondi. Na verdade, me faltava disposição, dinheiro, tempo, sagacidade, coragem, dinheiro e, talvez, até tesão naquela fase da minha vida. Ela riu. Continuou com o “estranho”. “Estranho, muito estranho. Tu é viado?”. Era uma das frases mais colocadas quando, desde a escola de formação, grande parte dos garotos no auge dos seus dezoito anos pegavam os 200 reais que recebíamos e corriam para pegar o ônibus até a Vila Mimosa, e eu permanecia no alojamento lendo. Na verdade, me faltava disposição, coragem, sagacidade.
Eu ri e disse que não. Ela retrucou que tinha muito amigo desviado e que cortava pro outro lado, para eu não me envergonhar. Eu ri novamente. Sorvi um gole de suco de laranja azedo e perguntei de seguida: “Você mora onde?”. Ela se assustou e perguntou: “Você está apaixonado, é?”, “e se fosse?”. Ela riu sem graça. Não, eu não estava apaixonado, mas Tereza, Tereza era seu nome, eu já te disse, não?, me chamava atenção por ser ser humano como eu, ter uma vida e uma história. E a vida é áspera para alguns.
“Moro no Catumbi num apartamento alugado com mais uma amiga, puta também, bom que você saiba”, “por que é bom que eu saiba?”. “Não sei, se quiser me visitar.”. Pobre Tereza, pobre de mim. Eu não sabia onde era, naquele tempo, o Catumbi. Ir pro centro do Rio já era uma vitória de 29 quilômetros que eu estava festejando há meses sentado feito gente grande naquele balcão revestido com uma chapa de alumínio gasto.
“Você faz muitas perguntas. Pergunto eu agora”, “certo”. “De onde você é?”. “Moro em Mesquita, curso faculdade de História, acho que não tenho muitos planos e estou na Marinha de passagem, me alistei e calhou de eu servir”. “Que merda, hein?”, “nem tanto”. “Quando você vai visitar o inferninho como os teus amigos?”, “acho que nunca, não gosto da música, de lugar escuro, do cheiro de cigarro e bebo pouco”. “Você é uma graça, dá até pra me apaixonar e não te cobrar nada”. Eu lembrei do Belford, um negro forte que serviu comigo e me chamava de irmão branco, além de filho da puta. Eu não entendia essa lógica dele, me chamar de irmão e complementar: filho da puta! Morava na Vila Vintém e quando mataram o Celsinho da Vintém, chorava pelo alojamento de um lado para o outro: “ele me deu meu barraco, ele me deu meu barraco!”. Acho que era mentira, coisa de momento, pra fazer frente a cada um de nós, cada um vindo de um lugar, uns de favelas, comunidades, Baixada, Zona Sul, interior, cada um com sua história e sua estratégia para manter pulso firme frente ao desconhecido. Reencontrei o Belford uma vez na Praça do Canhão, em Realengo. Eu estava namorando e ouvi alguém gritando “filho da puta”. Era o Alexander Belford com seus dentes brancos e sua pele brilhante de ébano. Nunca mais o vi. Digressões. Belford comeu uma puta na Vila Mimosa e só queria foder com ela, somente ela, me contava que a menina estava apaixonada por ele e ele por ela. Nunca mais a viu depois que concluiu a escola de formação. Falamos rápido sobre isso no nosso encontro de sortilégio na Praça do Canhão. Digressões.
Pobre de mim, e Tereza me lendo com seus dentes certos e seu cheiro doce. “Quer um chiclete, boyzinho? Você não fica puto d’eu te chamar assim? Muitos dos que trepam comigo ficam”, “Não.”. “Não, pro chiclete ou pro boyzinho”. Tereza era inteligente, possuía a sagacidade das ruas, da cama rotativa com homens desconhecidos, uns porcos, grossos, violentos e sujos, outros tímidos e broxas, boyzinhos. Tereza, nunca perguntei sua idade. Digressões naquela manhã de segunda, feriado.
“Posso pagar sua conta?”, “Não, quem paga as minhas contas sou eu, por isso me deito com quem eu quero, entendeu?.” e riu, ajeitou a bolsa e repetiu: “Eu até poderia me apaixonar por você...”.

Nunca mais vi Tereza e agora prostrado na frente do bar da minha memória, me pergunto em voz alta que fim há para a aspereza da vida?

domingo, 7 de dezembro de 2014

Camila ou o primeiro passo da memória

A memória sempre me dói. Memória e dor, no meu caso, mesmo que seja em terceira pessoa, sempre doerá. Enfim, acho o passado uma merda.
Não sei por que me lembrei de Camila. Mas, antes de Camila, houve a Sabrina e após elas duas, Tereza e depois de tantas outras: vocês.
Chego a ouvir o barulho da água correndo e se chocando nas pedras do Rio Dona Eugênia, hoje uma vala negra que sangra assoreada cortando os bairros da Coreia e do Centro, talvez, se eu não estiver errado, corte ainda o Cosmorama até, quem sabe, ser mais um fio escuro, sujo e lodoso a desaguar na Guanabara... Chego a ouvir o barulho das músicas que cantávamos.
Era uma escola de bairro, numa casa grande e com salas com poucas divisórias, uniformes quadriculados e com nossos nomes. Ali passávamos nossas manhãs e os lanches que trazíamos eram divididos entre todos da classe numa mesa retangular de madeira. Eu corria e me sentava na frente de Sabrina, um dourado na pele morena dos nossos cinco anos, cabelos negros e longos, pesados e com leves cachos nas pontas. Seu nariz perfeito e lábios levemente carnudos. Sabrina um dia pálida e sem o brilho de sempre vomitou por toda mesa restos de macarronada e salsicha, bem na minha frente. Dancei quadrilha com ela naquele ano e nunca mais nos vimos.
Mas foi Camila, tão morena quanto, tão cabelos negros quanto, que me atiçou ao amor. Duas bolas profundamente negras entre o nariz fino que me olhavam com desdém, eu magricelas e desengonçado, Segunda Série Primária, meias brancas, calça tergal vinho e recusado pela Dona Leonor por ser lerdo demais para estudar ali na tradicional escola mesquitense de famílias que, por sorte, seriam comerciantes em algum bairro daquele Primeiro Distrito de Nova Iguaçu. Bons tempos de sinceridade.
Foi Camila que com seus cabelos pouco acima dos ombros, moradora da Chatuba e que ia de ônibus para a escola, que me atiçou ao amor e aos lábios femininos e aos olhos femininos mais do que às bundas e às coxas. Os lábios me beijariam – coisa que Camila nunca o fez – e os olhos me veriam... ou não.
Um dia apanhei na escola, um dia comum de escola. Camila teve dó dos meus lábios sangrando, meu olhar de peixe morto e o silêncio das palavras. Pobre de mim, fechei meus olhinhos miúdos e nem beijo, nem carícia. Apenas me levantou do chão. Morar na Chatuba no fim dos anos 80 requeria força e conduta, braveza frente ao mundo cão. Coisa da qual meus pais me protegiam constantemente entre os muros do grande quintal da casa verde de pés de cajá, jaca, abacate, abil, pitomba e mangas coração de boi. O morro me era uma incógnita esclarecida apenas nos dias de domingo, quando pelas mãos meu pai me levava à feira, aos campos de futebol do Parque Central, de Jacutinga e na Chatuba. A miséria humana e a tristeza infantil – na minha opinião, a mais dura tristeza que possa existir: a de uma criança – eu conheci num hospital infantil que minha mãe dava plantão, onde atendia crianças de um orfanato localizado na Praça Santos Dumont, em Nova Iguaçu. Crianças queimadas por óleo quente, com olhar fundo e que sorriam quando minha mãe entrava. Meus cabelos penteados para o lado, a pele viva e corada contrastando com a dureza da realidade. Como animais ferozes, em finais de semana, aqueles meninos e meninas eram liberados para zanzarem pela Praça que ficava – não vejo maldade maior no mundo – ao lado de um Parque de Diversões, acredito que o mais antigo da região. Não houve, ainda hoje, coisa mais impactante para mim, como ser humano, do que meu contato com aqueles órfãos. Hoje percebo o quanto aquilo moldou meu caráter e o sentimento de humanismo que meus pais tinham ao me instruírem brincar com aquelas crianças me deu um desapego curioso às coisas materiais. Sou filho único. Tive vários irmãos e irmãs.
Camila me ignorou até a Quarta Série Primária – as mulheres me ignorariam até o curso universitário. Quando num dia de ousadia – eis o passado – roubei do álbum de família uma foto minha feita por fotógrafo profissional, fotógrafa, na verdade, contratada pela minha mãe, no qual, burguês de família em ascensão, eu posava com uma das mãos no queixo e exibia um sorriso branco e cabelos negros finos e ondulados. Olhos de um profundo cor de terra esboçando a alegria de uma criança que não previa os males da recessão e de um governo Collor que pausaria a economia da casa.
Entreguei a foto meio trêmulo, com umas letras redondas, simplesmente: “Para Camila, Bruno Alvaro”. Havia uma imponência, eu sei, em ter um nome de sobrenome. E se não havia grandiosidade nisso, pelo menos, era diferente dos Silva, Maia, Cardoso, Matias, etc., tão comuns na nossa sala de aula.
Ela sorriu com a sagacidade de quem anos depois frequentaria os bailes funk do Mesquita e do Tênis Clube, protegendo-se do que ainda hoje protegem-se as mulheres: nós homens.
Olhou a foto com atenção e disse de forma pausada e com um profundo afeto: “Quando eu tiver um filho quero que se pareça com você...”. Fiquei puto. Evidentemente, fiquei puto. Mas, hoje, agora, falo alto, com orgulho, que elogio maior não receberia até deixar de ser ignorado pelo sexo feminino, na universidade. Quanto a deixar de ser ignorado na universidade há suas controvérsias.
Camila me voltou à mente e aos olhos quando meu pai num empreendedorismo dos anos 2000 abriu uma minúscula loja de tintas na Chatuba e eu, às 8:00 da manhã, seguia para ajudá-lo no mesmo e velho Nova Iguaçu X Fábrica de Pólvora da São Francisco que Camila pegava para ir estudar no início dos anos 90. Dormi e passei do ponto – isso aconteceria mais vezes na minha vida, passar do ponto – e desci numa curva medonha, já no trecho final da rua. Ironia da memória, mais uma vez, ela, a memória, me doeria e eu encontraria Camila, cabelos ainda negros, mas com algumas mexas blondeadas, três furos nas orelhas, meio magra, meio cheia, olhos fundos, não sei, mas ainda profundamente escuros, Camila ainda era linda para mim em todo o exotismo da simetria entre seus lábios e os seus olhos. Me percebendo meio perdido e fodido na Chatuba com um saco de pão e um pedaço de queijo minas frescal, ela sorriu e apenas disse: “Ainda tenho a sua foto...”. Fiquei puto, de novo. Mas hoje, falo alto, com orgulho, foi um baita elogio.
Ficção ou realidade? Não sei, sempre me dói a memória e o passado, seja o meu ou o dos outros. Talvez, por isso mesmo, minha memória sempre falhe. Vamos à Tereza.


quarta-feira, 19 de novembro de 2014

A vida que se esvai em estatísticas

Viaduto Manoel Celestino Chagas (Viaduto do DETRAN)
Foto retirada do blog: SERGIPE EM FOTOS

Falo no calor do momento, apesar do vento fresco que entra pela janela do escritório de casa e o cinza da chuva fina que deságua pela capital sergipana. Num dos cômodos da casa, uma jovem senhora passa as roupas da semana, uma trabalhadora, tem filhos, marido, ganha seu sustento pelo seu trabalho. Acordei às seis da manhã, ela também deve ter acordado às seis da manhã. Eu acordei às seis da manhã para fazer ginástica funcional com um grupo de pessoas no parque municipal. Arquitetos, historiadores, Assistentes Sociais. A jovem senhora acordou às seis para colocar o café do esposo na mesa, arrumar suas crianças e depois pegar um ônibus cheio e vir para minha casa. Imagino isso. Deve ser isso.
A casa vai ficando em silêncio, só ouço minha voz transposta no tom que emana o toque dos meus dedos no teclado. Minha voz é essa escrita. Minha voz se converte em escrita.
Minha companheira, que também acordou às seis para ir fazer comigo e os outros a tal ginástica funcional, adianta seus projetos de arquitetura. Eu continuo a dar voz a mim mesmo. Digressões. Sou um ser humano naturalmente só.
Mas escrevo no calor do momento e enquanto eu acordava, um jovem, mais jovem do que eu, era atropelado numa avenida de grande movimento. Era atropelado na mesma via que atravesso com a bicicleta em mãos, empurrando para tentar acessar a ciclovia. O rapaz era gari. Eu sou professor universitário. Mas, nós dois, ele agora e, quem sabe, eu um dia, somos estatísticas.
Escrevo no calor da ira. Da raiva que não se contenta em ler na matéria de jornal on-line, nos dois sites de mais circulação na cidade, apenas uma breve nota do ocorrido, uma breve nota e, mesmo assim, por ser a avenida de grande circulação – apesar do adendo simplório que tenta justificar: naquele momento é pouco o fluxo de carros.
Há uma passarela uns cem metros à frente. Mas, pergunto eu: por que não duas passarelas? As pessoas que moram naquele entorno também se perguntam. Os ciclistas se questionam: como sair dos bairros Luzia, do Conjunto Médici, do Inácio Barbosa, do Distrito Industrial e acessar a ciclovia que segue entra as faixas da famosa Tancredo Neves?
Aliás, eu me questiono: como os ciclistas que moram no entorno da Avenida Adélia Franco, onde deságuam os moradores dos bairros citados, acessarão com segurança a ciclofaixa da Tancredo?

Minha solução foi curiosa: Ando uns metros a mais e atravesso com a bicicleta no sinal quase em frente ao Macro. Corto a rua das Autos-escolas – que ironia – passo por uma área que me lembra a região dos estivadores na Praça Mauá e, um tanto quanto esperançoso, fico aguardando o sinal fechar. Mas, isso não significa que o sinal fechado – apesar de ser um cruzamento para quem está saindo (de carro) do Jabotiana – obrigará os motoristas a pararem. Pego a ciclovia, um tanto quanto ainda esperançoso,  e acho que conseguirei chegar vivo e com a bicicleta na Universidade Federal de Sergipe. Um tanto feliz, observo o trânsito parado e penso: que bom que estou sobre as duas rodas e faço força no pedal. Mas, de repente, e tudo na vida é tão de repente, SVU’s, Vans de empresas rumo ao interior e motos de todos os tipos, passam por cima da ciclovia, rodas largas e grandes – no caso dos carros – jogam-se sobre a tinta vermelha que demarca o lugar do ciclista. A mesma cor vermelha do sangue que molhou hoje pela manhã o asfalto da Tancredo Neves. O mesmo rubro vivo do sangue de mais um trabalhador que se converteu, antes de ser pó, a mais um número de estatística. Ele tinha 28 anos, se chamava Ítalo Tavares Oliveira e deu seu último suspiro aos pés do viaduto Manoel Celestino Chagas antes de se converter em mais um número de estatística. Meus dedos diminuem o ritmo. Representam a voz que embarga: o calor do momento. Paz.

As matérias estão em:
  1. Gari é atropelado e morto na avenida Tancredo Neves
  2. Jovem morre atropelado ao tentar atravessar a Av. Tancredo Neves



terça-feira, 18 de novembro de 2014

A nostalgia contemporânea, os cabelos cacheados, o velho novo mundo

Acho que começou como eu queria, me parece que a voz ecoou consideravelmente na conversa de abertura do velho Ventríloquo. Acho que hoje posso fechar a parte dois da saga “A nostalgia contemporânea” que se iniciou naquela mesa de bar virtual do texto passado. Assim como aquele, este já estava pronto, como pronto estão sempre meus tons de voz, seja pedalando, dirigindo ou caminhando, não necessariamente nesta ordem vulgar de coisas. Converso sozinho. Mas, sozinho não me construo.
Ficou claro o impacto marcante da minha última ida ao Rio de Janeiro e lembrei de algumas coisas fundamentais percorrendo a cidade acordando: Os mendigos se recolhendo, os trabalhadores vindo do subúrbio, o boteco, a lanchonete de sucos. A vida pulsante na grande cidade. Se é que a vida pulsa ali ou se é que não pulsa já da mesma maneira nas pequenas capitais.
Começo pelo “velho mundo”. É fato, meu velho mundo morreu, talvez, ainda restem resquícios fortes e necessários de reavivamentos de memória. Mas, isso, não lembro se comentei, aos poucos, apesar de estrangeiro em terra minha, com cada pedalada, cada passo trocado e esbarrão de ombro na pressa das calçadas cheias, fui readquirindo o velho traquejo, a ginga citadina. Ao menos, do menos de tudo, o sotaque não perdi. O mundo que é novo, não deixa de se inserir no mundo que é velho, mas as coisas mudaram. A questão é: os valores não podem mudar e essa luta é diária, é constante. Que seja. Me recordei dos cabelos cacheados da menina. A história é curta e vale um chope. Nada demais. Talvez, eu até seja tacanhamente poético. Ou não.
A coisa toda perde acento, pois não lembro seu nome e vagamente consigo desenhar com palavras como caminhava, meio desengonçada, meio menina magra. Mas de uns olhos de um profundo verde e cabelos castanhos cacheados. A pele branca porcelana. Ela acreditava na revolução. Eu não. Talvez, a única amiga que me sobreviveu verdadeiramente de amizade na época de graduação em História se lembre. Mas eu não. Eu não lembro e não acreditava na revolução. Aliás, eu não acreditava em muita coisa além daquilo que eu necessitava questionar.
Eu me recordo bem que ela me pedia suplicante que tocasse Lua de São Jorge no violão e eu não sabia que raio de música era aquela – hoje eu entendo – mas na época eu não entendia e continuava sem entender. Ao passo que o tempo foi passando, fui ficando cada vez mais relapso com o que havia de sonho na realidade daquela menina. Só sei que ela começou a namorar um cara do subúrbio como eu, de um subúrbio melhor subúrbio que o meu, perto de uma linha de trem, mais perto do que a linha de trem que passava no meu subúrbio. Ela e ele acreditavam na revolução, talvez, ele menos que ela, ou mesmo ele não. Eu era certo que não.
Eu tinha lá minhas predileções. Na verdade, queria descer a ladeira da minha casa e voltar em paz e sem ser assaltado. Conseguir de alguma forma me sustentar com aquilo que eu gostava e havia escolhido fazer. Para os meus pais aquilo tinha uma importância tamanha: Eu ser feliz. Meu pai e minha mãe eram revolucionários. Foram revolucionários. Eu estava sendo revolucionário não sendo revolucionário? Afinal, se eu fosse revolucionário como os meus pais, não estaria sendo conservador demais? Coisas de menino.
A questão é que meu pai saiu criança dos rincões do Paraná direto com a família para ser colono em Cordeiro no Rio de Janeiro – ele me re-contou essa história recentemente enquanto me visitava, aliás, quando voltei de minha rápida viagem ao Rio. Lá, ele ordenava vacas, cuidava de bois no pasto, tinha oito anos. Seu irmão mais velho, aos doze rumou para a capital e foi trabalhar abrindo valas, aquelas valas largas em Manguinhos para passar a tubulação. Comprou um sítio em Mesquita, no alto do morro e voltou para Cordeiro aos dezesseis anos, pois aos dezesseis anos dele Mesquita era um buraco perdido qualquer. Meu pai conta que lembra bem: “Vamos embora, vamos para o Rio”. Papai se escondeu no pasto, gritava que não queria abandonar as suas vacas e que viver na cidade grande ia ser ruim. Meu tio também já me contou a história, mas em tom gozador da frouxidão do meu pai garoto.
Minha mãe sonhava em ser enfermeira. Ela tinha que ser enfermeira. Mas parou de estudar para sustentar junto com a irmã mais velha uma casa com mais cinco irmãos. Como nômades de um pai ótimo sapateiro e uma mãe ótima cozinheira viviam de casa em casa de favor. Quando eu tinha oito anos de idade minha mãe se formou num curso de auxiliar de enfermagem e passou a dar plantão. Quando eu tinha vinte, minha mãe orgulhosa terminou o curso técnico de enfermagem, só pelo prazer de dizer que era técnica em enfermagem. Para os meus pais, o Segundo Grau técnico era um título grandioso. Não era mentira. Eles acreditavam na revolução. Eu não. Coisas de menino.
Mas, as pessoas mudam. A revolução que eles falavam era baseada no estudo. E para meus pais tudo de mais importante na minha vida deveria perpassar pela leitura e pela escrita. Logo, pela escola. No fundo, meus pais não sabiam ou sabiam. A revolução pela qual eles lutavam se concretizaria em mim e o instrumento era a educação familiar e a aquela que eu receberia em boas escolas, nas melhores escolas que eles poderiam me dar.
Meu pai, quando defendi minha tese, não chorou, esboçou alívio. No dia dos pais, de surpresa, enviei por Sedex um exemplar encadernado com dedicatória em sua homenagem. Aliás, na dedicatória de minha tese se lê:
“Dedico esta tese à minha mãe, Isabel Cristina Gonçalves Alvaro, por me ensinar o amor ao trabalho que extrapola as lógicas da vida; ao meu pai, Apparecido Alvaro Filho, por me ensinar a responsabilidade que traz a dedicação ao ofício que escolhemos para sobreviver. Vocês dois são meu maior trunfo e orgulho! Meus melhores professores!”
Dias depois, mamãe me contou por telefone que meu pai, ao atender seus clientes na rua, em dias de trabalho, estava carregando o exemplar nas mãos e antes de oferecer os produtos – meu pai é representante de vendas de uma empresa Química, o melhor, diga-se de passagem – mostrava orgulhoso as poucas páginas que redigi para obter o tão sonhado título de doutor em História. E meu pai tem um orgulho que talvez eu não tenha: meu filho é verdadeiramente um doutor. Meu pai acredita na revolução. Eu também. As pessoas mudam. Gostaria de me encontrar, talvez, cruzar meus olhos com a menina da graduação, apenas perguntar: Fulana, como vai você? Eu agora acredito.
E foi essa crença maluca que me levou a pegar um metrô até Botafogo quando o Diego Viana me enviou uma mensagem, avisando que estaria por lá com mais uns amigos. O Viana deve ser um dos últimos jovens bastiões que tentam heroicamente manter uma certa regularidade de boa reflexão em bloges quando o sumidouro das redes sociais tragou o velho e bom debate. A nostalgia.
A média de idade naquela mesa de bar pairava nos doce trinta e poucos anos, mas a nostalgia que imperava ali parecia que cada um de nós havia vivido vários verões. O Ventríloquo data de 2007, antes disso viajei por blogs comunitários de literatura, vendi poesia para gringos na Lapa, recitei no Castelinho do Flamengo. Mas nada foi mais visceral do que o blog. Não sei de quando data o Pra Ler Sem Olhar, aliás, não sei como fomos nos descobrindo. Acreditamos na revolução pela escrita.
O curioso ali naquela mesa eram as ideias se construindo entorno da nostalgia. Piadas nostálgicas, velhos jovens que haviam sido tragados pelos likes do Facebook e que se queixavam da ausência dos debates nas caixas de comentários. Falava-se em feeds, googleranks, palavras chave... E a nostalgia, a cada tulipa de chope suada, naquele dia suado, naquela noite que se rasgava em São Sebastião do Rio de Janeiro, tudo se crivava. Não pude ficar. Mas enquanto, meio bêbado de sono ou de cevada, eu observava a escuridão da baía de Guanabara com um vento fresco e pesado que entrava pela janela do táxi, só pude recordar: eu acreditava na revolução e vivia agora a nostalgia da contemporaneidade!

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

O suor dos outros entre meus dedos

Mesquita - Rio de Janeiro

            Talvez você não saiba, mas conversamos agora. Você ouve neste exato momento minha voz entre as cidades de Laranjeiras e Nossa Senhora do Socorro. Você ouve minha voz enquanto o surrado disco Fa-tal da Gal toca no dial. E minha voz é dissonante. Talvez, você não saiba. Mas, eu sou você. E você há de ser contraditório.
            Você que me ouve agora é o eu de algumas semanas atrás. É o eu com vontade de conversar e que vem falando baixinho junto com cada nota do violão setentista da Gal. Tão nostálgico quanto o nós e o eu de algumas semanas atrás.
            Quando desci e vi o sol gigante ao lado esquerdo da janela, percebi que estava fadado a sempre regressar como estrangeiro na terra em que nasci. Um estrangeirismo que já me perseguia anos antes quando cruzava a Avenida Brasil ou os trilhos que cortam a Baixada Fluminense rumo à Central. Um estrangeirismo blasé que me deslocava dentro das salas ifcianas ou que me fazia olhar a cidade abaixo, suas casas com telhas marrons e as ruas de partes de paralelepípedos e voar com o pensamento para algum lugar longe dali.
            Ainda nostálgico e meio perdido, fui pedalando e cortando as ruas, vendo a cidade acordando, o cheiro do café coando ainda em maquinas de alumínio antigas que não foram tragadas pelos expressos nescafé. O anúncio dos Supermercados Guanabara no rádio de pilha do primeiro camelô a chegar e cada qual no seu lugar. As putas se recolhendo, o Capanema em reforma, os mendigos pelo chão e ciclovias que até então eu não conhecia. Officeboys já se acotovelavam nos balcões das lanchonetes e na Uruguaiana eu já me habituava ao hábito que eu tinha e que era meu ou que não devia ser. Mas, num estalo tamanho, olhando meus pés, abrindo minha carteira, vendo meu reflexo no sumidouro do espelho surrado do sujo banheiro do bar, constatei: não sou mais eu aqui.
            Mesmo o velho joelho, aquele tradicional enroladinho com queijo e presunto, já não possuía o gosto normal dos seis anos atrás: havia agora um quê de exótico. Não era mais eu ali. Eu parecia não comungar da seita da atendente que com intimidade com o cliente do lado, vendedor das Casas Bahia, brincava: “Moro no Jacarezinho, isso você sabe, mas não sabe onde é minha casa”. E eu ali, excluído de uma realidade que conheci, mas que não era mais a minha. Eu: contradição.
            Um sentimento estranho de olhares reprovativos. O trem não é mais seu. O ônibus apertado também não. Mesmo seus olhos fundos e cansados, já não são como os nossos. O futebol na várzea não é mais teu, do nosso copo de requeijão com cerveja gelada e samba na esquina não beberás. Você não é daqui.
            E mesmo agora, nesse carro comprado zero em suaves quarenta e oito prestações e que me prendem no que não era preciso prender, testemunham que realmente não é mais isso aquilo que era, enquanto ouço minha própria voz no presente tentando me explicar o passado. Apenas penso que o suor dos outros escorrem entre meus dedos, nas minhas mãos agora finas, sem calos ou ásperas. Pois, quanto mais calejada e mais áspera a mão de um Ser, mas testemunha-se a aspereza da vida e o quanto aspirar o pó da rua ou o cinza do cimento das capitais torna o pulmão da gente fraco, mas a pele forte e dura.
            Talvez, você não ouça aí do passado ou não entenda seu próprio gesto com as mãos. Ou mesmo o chope gelado em frente a estação apenas certifique, não sua falha, mas toda sua profunda contradição. Vê? Agora você me ouve.

O Ventríloquo voltou...