“Não Adelmo, ninguém mais lê seus livros, seus textos... Nada
do que você publica desde seu romance-manifesto Notícias falaciosas, mundo cão e meu colchão é lido! Aliás, você
ainda consegue pagar suas contas, mal e porcamente, com os poucos direitos
autorais que recebe por ele. Sorte sua, ter conseguido em apenas 200 e poucas
páginas vomitar tudo que a sociedade burguesa, os hippies, os loucos de cara,
tudo junto, conseguiam identificar e se identificar. Sorte sua. Mas, hoje não
dá, meu querido, não dá! Está me entendendo? N-Ã-O D-Á! A coisa tem que ser
rápida, vapt-vulpt, assim ó: um estalo de dedos. Conhece Twitter? Facebook?
Instragam? Então, meu filho! Pra você ver, até os textos de blog morreram.
Ninguém lê. Apenas uns jovens de, sei lá, 30 e poucos anos, nostálgicos dos
anos 2000.”.
Eu ouvia tudo calado no meu apartamento pequeno e sufocante,
já quitado, no centro. Realmente, Notícias
falaciosas, mundo cão e meu colchão foi um marco na literatura do país, eu
tinha 32 anos. Relativamente jovem. Hoje tenho 50 e continuo relativamente
jovem, apesar de algumas broxadas. Mas, eu broxei umas três vezes entre os 20 e
30. A última foi com a Néia, justamente minha editora que agora despeja estas
injustas críticas. Isso faz uma semana. Não liguei depois da foda mal dada,
isso deve ter incomodado bastante. O mundo é cão, é machista, é patriarcal. A
broxada nem foi culpa da Néia, não foi culpa de ninguém. Ela é inteligente. Sua
boca grande é devidamente harmoniosa com seus lábios levemente grossos. Sua
maturidade ainda guarda um ar sensual do desconhecido. Seu corpo tem os
caminhos tateantes de pequenas celulites nas nádegas e sua barriga e seios são
convites instintivos ao amor. Eu, pobre de mim, a velha barriga de cerveja, as
pontas dos dedos amareladas de cigarro, um pau já velho e flácido, minhas coxas
são brancas que lembram um frango na granja recém depenado. Néia envelheceu
bem. Eu não. Broxar na frente de um olhar carinhoso e amoroso como o dela foi
um pecado. Mas, o erro maior foi não ter conversado: o mundo é cão.
Ela sai e bate a porta, me mantenho em silêncio sentado na
velha poltrona suja com os pelos velhos do Nestor. Não tenho empregada. Aliás,
coisa bizarra chamar empregada doméstica de secretária. Falei sobre isso no
livro. Minha escrita foi se tornando pesadamente filosófica. Eu queria ser como
o Fonseca, não sei, até mesmo como o Noll, equilibrar narrativa com poesia.
Crônica com reflexão profunda de uma metalinguagem. Que se foda o suplemento do
jornal de domingo e de segunda. Não quero aparecer nos cadernos Y e Z. Mas,
Néia tem razão, a coisa está tensa, o buraco está afundando cada vez mais. Meu
gerente do banco já nem me atende. Reduzi imensamente meus jantares fora de
casa.
“Alô, boa tarde, gostaria de falar com o senhor Adelmo
Duarte”.
“Pois não, é ele. Adelmo Duarte”.
“Senhor Adelmo, aqui é da sucursal norte do Jornal O Pergaminho.
O senhor já deve ter ouvido falar, publicamos artigos de escritores renomados
sobre o cotidiano da capital e mesmo de algumas cidades do país sem tanta
projeção quanto as dos grandes centros”.
“Não, nunca li vocês”.
“Como não, senhor...”
“Por favor, me chame por você... não leio tudo que me chega
pelos Correios”.
“Claro, tudo bem, mas como eu disse, O Pergaminho é um dos
suplementos mais acessados na Internet, temos ditado moda e alçado à fama, por
meio das opiniões respeitadas pelos grandes autores da nossa literatura, jovens
escritores como Agripinho Espínula, Salvador Salendo e tantos outros.
Inclusive, fomos nós que colocamos no mainstream a revelação do ano, primeiro
lugar no Prêmio Nacional de Literatura, Otávio Lucio da Silva, com o romance Águas: Romance”.
“Entendo, eu li o romance, realmente é bom. Mas, não sei se
se tornou tão bom porque ganhou o prêmio ou se ganhou o prêmio porque é bom,
compreende?”.
“Claro [silêncio]. Adelmo, a questão da ligação é para fazer
um pequeno convite. Seu famoso livro Notícias
falaciosas, mundo cão e meu colchão ainda hoje é um marco da literatura
nacional, quiçá em língua portuguesa! E frente ao que se tornou a sociedade
atual, gostaríamos que você assinasse uma coluna semanalmente em nosso jornal.
O que você acha? Além da possibilidade de divulgar seus trabalhos, que [ele
tosse nesse momento e demonstra pelo telefone um certo silêncio de
constrangimento], infelizmente, estão um tanto em baixa, pagaremos uma razoável
quantia por texto entregue”.
“Sou livre para escrever o que eu quiser?”.
“Frente às normas atuais da Rede Mundial de Computadores,
sim. Desde que respeite algumas cláusulas contratuais que te enviaremos por
e-mail. Mas, nesse primeiro texto, como, digamos [novo silêncio pausado de
constrangimento], qual melhor palavra?, um certo teste de recepção por parte
dos nossos leitores, gostaríamos de te sugerir um tema. Pode ser?”
Eu, durante a universidade, trabalhei com propaganda e confesso que não me dei muito bem, meus textos eram muito prolixos e as
mensagens muito longas, tudo que tivesse um tema, aliás, desde a época da
escola, me fodia drasticamente o tesão. Ah, Néia, eu deveria ter te ligado. Eu
te respeito.
“Sim, pode ser. Qual o tema?”
“Relações humanas na contemporaneidade e seus reflexos na
literatura nacional”.
“Tudo bem, aceito”.
Sinto que fiz a maior merda da minha vida, desde que escrevi
e publiquei, por conta própria, meu último livro Raízes de chão arenoso: os desabrigados do amor que minha carreira,
que se resume ao tal livro romance-manifesto, estancou. O livro era um alerta,
romanceado, claro, sobre os modismos da juventude burguesa de comer merda e
postar em fotologs. Hoje, já se sabe que comer merda é uma merda e que os
fotologs foram substituídos pelo Instragam, mas, as pessoas continuam
fotografando suas comidas e postando na Rede. A merda continua. O livro vendeu
50 exemplares de uma tiragem de 3.000. Uso como obstáculos para que o Nestor se
exercite no apartamento. Ele nunca utilizou a brincadeira. Meu gato é meu único
amigo.
Ah, Néia, o mundo cão, patriarcal, machista. Nós homens
confundimos ejaculação com orgasmo. Como temos inveja de vocês mulheres. Eu te
respeito.
“Relações humanas na
contemporaneidade e seus reflexos na literatura nacional”
100.000 caracteres com espaços foi o que deu Relações humanas na contemporaneidade e seus
reflexos na literatura nacional, sem
contar o título, é claro. Foi lido, na verdade acessado, por cinco pessoas. Das
quais, duas eram estudantes de Sociologia e estavam procurando uma resenha para
um livro de Zygmunt Bauman que teriam que ler para um trabalho de universidade,
mas estavam com preguiça [falta de tempo, conforme dizem atualmente o futuro da
intelectualidade da nossa nação] e preferiram buscar o trabalho alheio. Os outros três foram o editor do suplemento, eu
e um viciado em pornografia que estava procurando como palavra chave no
buscador: “relações humanas”.
“Textos longos estão mortos, Adelmo. Assim como você está
fadado a ficar como o autor de um livro romance-manifesto”. Disse Néia pelo
telefone quando lhe liguei para pedir desculpas e dizer que a amava. Ah, Néia,
nós os homens. O mundo é cão, machista, patriarcal. Eu te respeito.
Não disse que amava Néia. Desliguei o telefone e suspirei.
Me afastei do aparador, olhei Nestor por um momento, cocei a bunda. Pobre
Nestor: o mundo é cão. Ah, Néia, nós os homens. Malditos homens.
Me lembrei do velho professor da graduação que dizia que
escrever era ter coragem, era como se jogar de um prédio alto, pela janela,
abrir os braços e esperar o resultado. Do fundo da sala murmurei pro Claudomiro:
suicídio não seria um ato de covardia frente aos problemas da vida?
A máxima é verdadeira: professores tem olhos de lince e
ouvidos de tuberculosos. Ele retrucou com a arrogância do título: “Tente fazer
isso um dia” e citou Kundera:
“que é vertigem? Medo
de cair? Mas por que temos vertigem num mirante cercado por
uma balaustrada
sólida? Vertigem não é medo de cair, é outra coisa. É a voz do vazio
debaixo de nós, que
nos atrai e nos envolve, é o desejo da queda do qual logo nos defendemos aterrorizados.”.
Fiquei sem graça. Evidente que nos dias atuais, como previ em meu livro Túneis e estações, este professor teria
sido processado por algum aluno que se sentiu constrangido. Outros tempos.
Cito
de cabeça, sem lembrar a página, um trecho deste meu segundo livro, a edição
vendeu um pouco mais do Raízes de chão
arenoso, algo totalmente explicável pela lógica mercadológica da literatura
nacional, ele vinha a reboque do meu primeiro romance: “A vida esfumaça enquanto no vagar dos trilhos eu caminho apressado,
minha vida é um túnel sem volta, sem luz, sem nada”.
Esta era a fala final
de Laureano, o protagonista que se vê sozinho, abandonado, após se foder
constantemente em relacionamentos vazios com homens e mulheres. Era um letrado
marginal. Chupei este tipo de personagem de uma literatura a la fins dos 60 do
século XX, um belo passado.
“Alô, Néia? [silêncio sepulcral]” Desligo mais uma vez o
telefone.
Me lembrei mais uma vez do velho professor. Mais uma vez,
olho Nestor. Porra, isso acabou rimando. Que merda. Estou decidido. Que se
danem todos vocês! Eu já disse? Escrevo com letras trêmulas: Não sei até onde vão os grandes textos. A
grande literatura. Os autores atiram pérolas como porcos. Eu te amo. Mas, pobre
de mim, sou homem.
Minhas mãos estão trêmulas, só posso dizer que parecem
pedras de gelo num copo de uísque, aquele mesmo barulho. Coloquei uma boa
quantidade de comida para o Nestor, limpei suas fezes na caixa de areia,
troquei sua água e pus uma outra reserva. Não há de demorar. Ele não ficará só.
Abro a janela, única coisa ampla nesse espaço apertado, abro meus braços e
pulo. Puta que pariu, a mensagem ficou dúbia. Não há tempo para vento nos cabelos. Puta que pariu, não me dei conta que moro no segundo andar desse prédio.
“Adelmo, fantástico! Alguém encontrou seu twitter anárquico
escrito a mão, com exatos 140 caracteres, fotografou e postou no Facebook. Seu
manifesto antes de cair... aliás, como você caiu da porra da janela do segundo
andar? Enfim, seu manifesto rompendo com a lógica de escrever no Twitter os 140
caracteres, mas fazendo isso num papel em branco, sem pautas, foi uma mensagem
fenomenal para a lógica de que não há mais compartimentação entre redes
sociais e sociabilidade física. Inclusive, Twitter e Instragam estão pensando
uma forma de se fundirem. Se é que já não o fizeram neste momento. Todos estão
tentando criar uma plataforma que permita que o que se escreva à mão, automaticamente, desde que tenha a quantidade de caracteres permitidos [140, Néia deveria ressaltar], vá
direto para a Rede.
Mas, realmente não entendo como você me foi tropeçar e cair
da janela. Os jornais derrubaram a tese de tentativa de suicídio, com o auxílio da Editora Moema e do O Pergaminho, uma vez que,
devido ao seu grau de capacidade intelectual e a forma como você estava caído
no chão, jamais se poderia supor que você pulou, ninguém morre de uma queda do
segundo andar, ainda mais de um prédio baixo como o teu! Além disso, os
bombeiros encontraram seu computador e sua máquina digital ligados, próximo ao
papel com a mensagem. Muito inteligente da sua parte, escrever exatos 140
caracteres, fotografar e depois postar nas redes sociais [risos de Néia. Que
riso gostoso. Néia, me coma. Me trague com seus lábios inferiores. Me ponha
entre as suas pernas! Me sugue para o seu mundo úmido]
Estou com uma perna quebrada. Erro de cálculo. Assim nascem
os heróis. Da literatura. Da economia. Da grande mídia.
[Um tanto sem graça, Néia continua após longa pausa pensativa...] “Agora
pude entender. Não deu certo, às vezes não rola mesmo, Adelmo. Mas é bom ver
que você se encontrou, enfim, se encontrou. A homossexualidade, apesar dos
repugnantes fundamentalistas religiosos e da bancada governante que está no
poder, já tem sido encarada com mais tranquilidade, ao menos em outros países,
quem sabe lá vocês podem se casar, o dinheiro agora vai entrar, a Editora Moema está preparando com urgência a reedição de todos os seus livros, contos e crônicas. Sem grilo, não fica mágoa. Nós tentamos. Mas
eu sempre suspeitei que você precisava se aceitar. Aquele dia foi constrangedor
mesmo. Foi a gota d’água, mas passou, podemos voltar a ser bons amigos. Vários
líderes do Movimento Gay estão telefonando para fotografias e solicitando, após
sua alta, declarações sobre sua tentativa de quebra de questões biológicas e
sexuais através desse seu mais novo manifesto literário. Os estudiosos de Gênero, inclusive, estão organizando um I Colóquio
Nacional Literatura Genderificada, tendo o seu livro Túneis e estações como o grande mote de estudos e tema de Simpósios de Debates e Grupos de Trabalhos.
Nossa, me perdoa, Adelmo, como nunca percebi que o Laureano era na verdade seu
alterego gritando por liberdade sexual?” [Ah, Néia, como eu queria cortar tudo
o que você está falando. Te interromper com um beijo, chupar-te todo o corpo e
o sumo de sua excitação. Mas não posso, sou homem, machista, o mundo é cão.]
Erro de cálculo. Assim nascem os heróis. Da literatura. Da
economia. Da grande mídia. O futuro pertence às poucas palavras. Erro de
cálculo. Pobre Nestor: o mundo é cão.