Talvez, não sei, seja algo como resgatar um tempo de infância. Aquele tempo, você sabe, todos sabem, que escapa por entre os dedos como areia seca de praia.
Numa
canção chamada “No Compasso da Mãe Natureza ou O amor, A pureza e a Verdade”,
da banda pernambucana Cordel do Fogo Encantado, os versos seguintes ilustram um
pouco essa conversa: Na velhice a infância é verdade/ E o compasso é da mãe
natureza.
E
o tempo acaba por ser tudo e muito. O tempo da infância um dia deu uma noção de
eternidade e no futuro observa-se que ele passava mais acelerado do que o hoje
que já chama de volta o amanhã.
Essa
noção de tempo de infância, não sei, pois falo por mim, se concretiza muito nas
brincadeiras, nos apelidos que vão se metamorfoseando, nas histórias que viram
lendas e vão sendo aumentadas de mentiras descabidas e se firmam como verdades
irrefutáveis. Nos apelidos e nas mentiras verdadeiras (ou aumentadas) para
provocar o riso, desconcertar fazendo rir quem for o fruto do acontecimento
aumentado em mentira – e todos nós temos e passamos por esse momento – está o
tempo da infância.
Ouso
ser ingrato, quem sabe, nem amigos somos, o que é bem infantil. É como aquele
colega inseparável do colégio que o tempo da vida levou para outro lugar, rumo,
país, futuro ou morte. Digo isso pois cada um no seu credo, religião ou
ausência dela, problemas, trabalhos, família e amigos, deposita naquele
momento, naquelas travessuras de desce morro, sobe morro, xinga um, xinga
outro, o esquecimento do que está ficando lá atrás por algumas horas. É um
esquecimento sadio. Nesse momento somos amigos de infância, inseparáveis, que
passam por cima da discordância política, de educação, de fé. Não interpretem
errado, não que ninguém se fale depois que a imersão em nós mesmos se acaba. Ou
que em nenhum momento, mulheres, filhos, o cronograma da semana que já chama o
relógio, seja tudo apagado, um por um, uma por uma das nossas mentes. Acho que
apenas adormecem.
Mesmo
que em alguns momentos a angústia da semana que passou ou a ansiedade da semana
que virá venham à tona, a coisa passa rápido. Divide-se o que se quer dividir, se
desabafa os dramas pessoais que se quer. Pois sendo crianças há uma inocência na
traquinagem, uma ginga de rabo de arraia. O peido fedido. A risada. Se a Bolsa
de Valores subir, que importa? Se a conta de luz veio alta, quem se importa?
Naquele momento nada importa, pois voltará a importar quando tudo se encerrar.
O morro ir ficando para trás na descida ou o suor escorrendo da testa
testemunhando que tudo passa numa subida de ladeira alta. Se a Bolsa de Valores
subir, importará na segunda para um ou outro. Se o Presidente da República
falar mais alguma merda e alguém não achar que é uma merda o que ele defecou em
palavras pela boca, importará na segunda... Mas no momento que se vive o
tempo da infância, entre a noite de preparação do capacete, da bicicleta, da
sapatilha, o café da manhã na madrugada e sair sem fazer barulhos... nesse
momento de vivência somos a infância e
seu tempo. Somos o cotidiano quebrado de adultos que um dia pensaram que o
tempo demorava a passar quando criança para se tornarem adultos sonhando em
resgatar por algumas horas o tempo da infância.
Talvez,
nem sejamos amigos. Pouco nos identifiquemos uns com os outros quando tiramos o
capacete, os óculos, as luvas ou guardemos as bicicletas nos suportes dos
carros. Talvez, nem nos reconheçamos se nos esbarramos na fila do pão, no caixa
eletrônico. Porém, no fundo, no fundo, no tempo da infância, nunca houve amigos
mais fiéis. E quem olha de longe pensa: “nunca houve amigos mais fiéis do que
aquelas crianças com barbas brancas e princípios de calvície”. É a vida que a
gente não vê é o “compasso da mãe natureza”.