domingo, 29 de agosto de 2021

A vida que a gente não vê




Talvez, não sei, seja algo como resgatar um tempo de infância. Aquele tempo, você sabe, todos sabem, que escapa por entre os dedos como areia seca de praia.

Numa canção chamada “No Compasso da Mãe Natureza ou O amor, A pureza e a Verdade”, da banda pernambucana Cordel do Fogo Encantado, os versos seguintes ilustram um pouco essa conversa: Na velhice a infância é verdade/ E o compasso é da mãe natureza.




E o tempo acaba por ser tudo e muito. O tempo da infância um dia deu uma noção de eternidade e no futuro observa-se que ele passava mais acelerado do que o hoje que já chama de volta o amanhã.

Essa noção de tempo de infância, não sei, pois falo por mim, se concretiza muito nas brincadeiras, nos apelidos que vão se metamorfoseando, nas histórias que viram lendas e vão sendo aumentadas de mentiras descabidas e se firmam como verdades irrefutáveis. Nos apelidos e nas mentiras verdadeiras (ou aumentadas) para provocar o riso, desconcertar fazendo rir quem for o fruto do acontecimento aumentado em mentira – e todos nós temos e passamos por esse momento – está o tempo da infância.

Ouso ser ingrato, quem sabe, nem amigos somos, o que é bem infantil. É como aquele colega inseparável do colégio que o tempo da vida levou para outro lugar, rumo, país, futuro ou morte. Digo isso pois cada um no seu credo, religião ou ausência dela, problemas, trabalhos, família e amigos, deposita naquele momento, naquelas travessuras de desce morro, sobe morro, xinga um, xinga outro, o esquecimento do que está ficando lá atrás por algumas horas. É um esquecimento sadio. Nesse momento somos amigos de infância, inseparáveis, que passam por cima da discordância política, de educação, de fé. Não interpretem errado, não que ninguém se fale depois que a imersão em nós mesmos se acaba. Ou que em nenhum momento, mulheres, filhos, o cronograma da semana que já chama o relógio, seja tudo apagado, um por um, uma por uma das nossas mentes. Acho que apenas adormecem.

Mesmo que em alguns momentos a angústia da semana que passou ou a ansiedade da semana que virá venham à tona, a coisa passa rápido. Divide-se o que se quer dividir, se desabafa os dramas pessoais que se quer. Pois sendo crianças há uma inocência na traquinagem, uma ginga de rabo de arraia. O peido fedido. A risada. Se a Bolsa de Valores subir, que importa? Se a conta de luz veio alta, quem se importa? Naquele momento nada importa, pois voltará a importar quando tudo se encerrar. O morro ir ficando para trás na descida ou o suor escorrendo da testa testemunhando que tudo passa numa subida de ladeira alta. Se a Bolsa de Valores subir, importará na segunda para um ou outro. Se o Presidente da República falar mais alguma merda e alguém não achar que é uma merda o que ele defecou em palavras pela boca, importará na segunda... Mas no momento que se vive o tempo da infância, entre a noite de preparação do capacete, da bicicleta, da sapatilha, o café da manhã na madrugada e sair sem fazer barulhos... nesse momento de vivência  somos a infância e seu tempo. Somos o cotidiano quebrado de adultos que um dia pensaram que o tempo demorava a passar quando criança para se tornarem adultos sonhando em resgatar por algumas horas o tempo da infância.

Talvez, nem sejamos amigos. Pouco nos identifiquemos uns com os outros quando tiramos o capacete, os óculos, as luvas ou guardemos as bicicletas nos suportes dos carros. Talvez, nem nos reconheçamos se nos esbarramos na fila do pão, no caixa eletrônico. Porém, no fundo, no fundo, no tempo da infância, nunca houve amigos mais fiéis. E quem olha de longe pensa: “nunca houve amigos mais fiéis do que aquelas crianças com barbas brancas e princípios de calvície”. É a vida que a gente não vê é o “compasso da mãe natureza”.

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