Quanto tempo faz eu não sei. Falar sozinho – para todo mundo é coisa de louco. Mas quanto tempo faz, eu não sei.
Sei
pouco do que vem antes.
Filho
de uma branca com um negro. Seu pai certamente foi filho de ex-escravos, tenho quase
certeza, hei de pesquisar.
Altamiro
Gonçalves nasceu na região de Vassouras, meu avô Timimo. Meu vovô Tamiro.
Não sei bem quando migraram à Nova Iguaçu, também não me importa muito. Só sei que
ontem sonhei com o velho Timimo, sapateiro que em sua pequena oficina no fundo
de uma casa de vila, na Estrada da Água Branca, em Realengo, eu crescia nos
recessos escolares para o carnaval carioca vendo-o produzir com as mãos, botas,
sapatos dos mais diversos para passistas que desfilariam pela Mocidade
Independente de Padre Miguel. No decorrer do ano, sobretudo, julho, “descia” de
trem com meus pais para visitá-lo e passar bons finais de semana tendo sua mão na
minha, correndo feiras de passarinho aos domingos e sendo apresentado como seu
neto nos mais diversos botequins da região, mas principalmente no Vila, onde
comi pela primeira vez ovo rosa e bebi malzibier. Ainda hoje, se sorvo um copo
de malzibier, sinto meu avô, sinto o cheiro da cola de sapateiro, o vejo envergado
com seus cabelos lisos e negros, seus óculos com uma corda preta, seu martelinho
e tachinhas batendo em formas de sapatos. Pés de madeira que eu olhava com um
olhar curioso. Mas nunca cheguei muito perto da oficina: “o menino tem a saúde
frágil, o cheiro de cola faz mal”. Como se o cheiro de cola não impregnasse
toda a casa numa mistura do cheiro de feijão preto bem feito de minha avó.
Vi
meu avô com curiós, conversando com outros donos de curiós nas feiras. Vi meu
avô jogando sinuca, magro, ossudo, olhar sofrido, mas com um riso que ontem me
visitou em sonho. Um riso meia boca de quem até quer ser feliz quando via que
tinha feito uma jogada bonita na mesa, mas que sabia que a vida lhe foi sofrida
e continuava a ser.
Contava
histórias. Visitava bastante a casa da minha mãe e do meu pai no morro da Chalet.
Morro, dos muitos lugares onde viveu, em que ele mesmo morou com minha mãe,
tias, tios, minha avó, muito tempo antes da minha memória. Quando mamãe
conheceu papai. Muito antes de todos vocês e de mim.
Visitava
muito. Sentava-se no sofá, tinha o hábito de colocar uma das mãos na testa como
um pensador em sofrimento, cruzar as pernas num requinte das antigas. Quando
morreu, minha mãe o via em mim, no cruzar de pernas ao almoçar no braço do sofá
da sala – nunca gostei de comer em mesa: Ou era sentado no chão com um lençol
forrado ou no braço do sofá.
Quando
minha avó morreu, morreu por dentro meu avô. Minha mãe enfermeira acompanhou as
mortes e de outros parentes. Minha mãe entende de morte e sabe sofrer as
mortes. Sabe sentir o morrer. À minha mãe eu depositei sem pesar ou remorso o
desejo que se eu me for antes – pois alguém sempre vai – que não haja enterro,
que meu corpo seja cremado. Igual a ela, meu fim é organizado, passo por passo,
documento por documento, seguros por seguros, conta por conta a pagar aos meus
credores. Mas que me cremem a pele, os cabelos, os ossos. Quero ser pó o mais
rápido, sem vermes me comendo. Sem velório desgastando o tempo. À minha mãe
confiei, pois meu pai é medroso e não gosta do assunto. Não que eu e mamãe
gostemos, mas sabemos e vivemos. Por isso nos desentendemos nos entendimentos
mais do que eu e meu pai. O amor entre uma mãe e um filho não é igual a de um
pai e um filho. Minha mãe sabe do diário com a foto do Aldir Blanc e o João Bosco
nos anos 70, em sépia, na capa, o diário que não é diário, que escrevo a mão e onde
ele estará quando da hora da minha partida. E nele há o que se fazer. O que
quero e desquero. E minha mãe respeitará e se ela se for antes, deixará claro
que o que eu quero, deve ser respeitado, pois minha mãe entende de morte.
Mas
quanto tempo faz eu não sei. Sei que quando minha avó morreu, meu avô morreu
junto por dentro. O câncer que já existia e vivia dentro dele quis sua parte.
As histórias continuavam debaixo de um pé de mangueira no quintal agradável da
minha tia Síndia e meu tio Expedito, irmã de minha mãe e irmão de meu pai. Eu e
o Gustavo nos sentávamos para ouvir: seus roubos de pães no período em que
serviu o Exército, seu medo de armas, suas histórias com a sinuca. Meu tio
comprou uma mesa para seu tempo passar mais tranquilo. A morte vinha. Meu tio é
como meu pai, teme a morte mesmo sabendo que ela é uma cobrança que não se adia,
não se parcela.
Eu
e meu primo Gustavo não sabíamos bem, mas o vovô Tamiro, o vô Timimo estava
cada vez mais magro, não tinha muita vontade de falar dos passarinhos, ensinar
sobre as tacadas na sinuca que meu tio comprou para ele. O câncer ia lhe
tomando mais, tirando o que achava por direito tomar. Pois o câncer é assim,
ele é seu, mas no fundo você é dele. Vencer o que é seu é complicado. Quando se
vence passamos a não ter medo de não ter medo. Ou o pior: passamos a ter medo
de não ter medo de nada. Quanto tempo faz, eu não sei. Um dia converso sobre
isso, mesmo que falando sozinho.
Meu
avô está deitado, o visito no leito do antigo Hospital Iguaçu. O prédio ainda
existe, fechado. Um prédio histórico. Ao menos um braço e uma perna engessei
ali na adolescência de traquinagem. Um dia eu converso sobre isso, mesmo que
falando sozinho. Já não fala, meu vô. Nem conta histórias de tempos passados.
Meu
avô, eu sinto, e hoje sei, sabia e tinha medo da morte, não o medo de não ter
medo, como eu tenho, como eu sinto.
Naquele
dia do leito, do Hospital Iguaçu, de entrar e sair do fusca que meu pai tinha, eu não
sabia, mas foi a última vez que o vi. Ele se despediu com os olhos. Faz tempo.
Não fui ao enterro. Fiquei na casa da minha tia e do meu tio com o meu primo. Eu
tomando conta dele, ele tomando conta de mim. Não havia muitos amigos. Como
hoje também não há. Somos os dois o que somos. Distantes e reflexivos. Ontem
sonhei com o velho Timimo. Queria que ele tivesse me visto formado em História.
Ele gostava de história e de ler. E tinha muita história por trás dos aros dos
seus óculos e muita coisa por baixo das mãos marcadas com cola de sapateiro. Ele
me levou ao SASE de Realengo para engessar meu braço esquerdo quebrado,
traquinagem boba de menino que brincava só e inventava amigos. Levou-me pela
mão, fomos andando da casa de vila até o SASE, ele contando histórias, eu
sentindo uma puta dor. Mas ele sorria um sorriso de canto de boa, um sorriso
que queria ser feliz, mas sabia que a vida era sofrida.
Hoje
beberei um copo de malzibier e brindarei sozinho ao velho Timimo, meu vovô
Tamiro, quem sabe até sorrio de canto de boca. Pois eu sei, a vida. A vida...
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