ventríloquo
[Do lat. tard. ventriloquu.]
Adjetivo.
Substantivo masculino.
1.Diz-se de, ou aquele que sabe falar sem abrir a boca e mudando de tal modo a voz que esta parece sair de outra fonte que não ele.
E assim são os textos. Ao menos os que escrevo.
Eles têm várias vozes. Minhas várias vozes. Em tempo. Tempos nublados ou com sóis. Não há muito o que dizer sobre mim. O resto está aí. Várias vozes sem mover meus lábios. O ventríloquo.
Acordei suado. Não tanto pelo calor, mas pela lembrança que
ativou meu instinto de querer conversar com alguém. Aquela vontade insana de
desabafar e falar desenfreadamente como bêbado. Molhar a mesa, deixar derramar
o chope, abraçar o garçom. Quase uma epifania de fim de carnaval ou o gol de
barriga do Renato Gaúcho no final do Estadual. Salve o futebol.
Não sei ao certo o ano ou a data. Mas, posso dizer com
certeza que era sábado, final de inverno. Certeza, sem dó!
Sábado, o pai me levava religiosamente para a Vila Emil para
eu jogar futebol no Barraquinho, time
de moleques oriundo do Barracão. Camisas listradas, vermelho e branco vertical,
shorts e meiões brancos ou vermelhos. Praticamente o uniforme do Bangu F.C. O Barracão era um tradicional time do
morro que rivalizava com o Verona,
time do meu pai, camisas com listras pretas e amarelas verticais, calção preto
e meiões amarelos ou pretos. O couro comia.
Era o cheiro forte de couro que marcava minha bolsa de
carregar chuteira, cheiro de sebo de carne de boi e couro. E sei que era final
de inverno, pois as manhãs em Mesquita ainda eram um pouco frias e aos poucos o
sol ia esquentando, formando nos matos do quintal um suadouro bonito, o orvalho
da noite anterior se dissipando, assim também era na grama que coçava as pernas
onde a gente jogava e sujava a bunda no chão escorregando ao tentar correr.
Daquele sábado, eu pouco me lembro da partida. Se o Barraquinho ganhou, se o Cizinho, o
treinador do time, me deixou jogar os dois tempos. Mas sei que atuei na lateral
direita, pois era difícil competir com o Tato (um dia falo sobre ele), se
marquei bem, dominei bola, fui um atleta mirim elegante, só o tempo dirá. Acho
pouco provável.
Só sei dizer que logo de manhã o que me fez hoje acordar um
tanto mais suado que de costume e ofegante, por sinal. Me sentar na beira da
cama e me olhar no espelho, vinte anos depois daquele sábado, daquele jogo,
daquele final de inverno, foram uns cabelos negros e suavemente cacheados, um
short jeans com dois três botões sendo o último da cintura aberto – moda entre
algumas meninas dos anos 90 –, um tope escuro e uma leve brisa que subia do seu
corpo estendido no chão. Uma faixa de sangue escorria por algum lugar que eu
não tive muita coragem de observar. Mas ouço bem a voz firme do meu pai dizendo
que tinha pouco tempo que estava morta, pois o sangue ainda exalava calor e a
manhãzinha fria que aos poucos ia recebendo o calor do sol criava aquele fenômeno
que ele não sabia o nome e eu ainda hoje não sei e se sei esqueci, pois pouco
importa para nós.
O corpo estava lá estendido, poucos metros entre a lateral e
a linha de fundo das traves do gol. Quase no escanteio. Ficou lá, em escanteio.
Meu pai finalizou o tento, quase como um legista da Civil: Deve ter morrido por volta das seis, seis e meia... Eram sete e
pouca da manhã.
O dia corria, eu me vesti, calcei os meiões e as chuteiras.
Lateral direita. Tenho certeza. Numa disputa de bola com um menino maior e mais
forte do que eu – não era difícil existirem meninos maiores e mais fortes que
eu – tomei um tronco no ombro a ombro e caí na linha de fundo. Lateral esquerda
do meu oponente. Eu canhoto, isso desequilibrava o time adversário sempre, hoje
eu entendo o velho Cizinho com o cigarro nos dedos e o copo de cerveja na outra
mão. Até meu pai sabia da coisa. Porém, naquele dia quem se desarmou fui eu. Eu
no chão, olhos fechados da queda e vinte anos depois, volta e meia quando abro
os mesmos olhos de menino revejo aquela garota deitada de barriga para cima,
cabeça para o lado olhando para mim já sem vida, já sem sonhos. E era só mais
um corpo estendido no chão que só foi retirado pelo rabecão na metade do
primeiro tempo.
No intervalo da partida, o Bicho da goiaba, que conhecia
todas as informações sobre os mortos em Mesquita e região, contou que ela havia
sido morta por ter passado informações para os traficantes da boca de fumo
rival da região. O Bicho da goiaba era praticamente o Jornal O Povo ambulante, se se vestisse de rosa e tivesse tatuagens
com letras pretas de fato pareceria as páginas com os corpos furados de bala
das capas do conhecido jornal. Não havia nome, identidade e jamais haverá: foi
apenas mais um corpo estendido no chão, o primeiro que eu vi tão de perto e que
carregarei comigo para sempre.
Tenho por costume me levantar um
pouco mais tarde nos finais de semana, algo entre às 7:30 e 8:30, por aí. Pego
o carro e religiosamente vou aos Mercados Centrais de Aracaju. Não sei, mas o
vozerio, a agitação, o vento que vem do rio, o céu azul... tudo isso, e alguma
coisa a mais, me faz ter uma sensação boa de vida. Acredito
piamente que nós brasileiros nascemos com uma desigualdade nas pernas muito
grande e que se reflete de forma muito evidente no trânsito: um pé muito pesado
para o acelerador e o outro muito lento para o freio.
É meio provinciano ou local isso,
um exemplo muito específico, eu sei, porém, todos sabem que para sair andando
do estacionamento próximo ao Terminal Mercado (o dos ônibus) e atravessar a
estreita rua que dá para o espaço de pescados ou o das carnes do Mercado Governador Albano Franco é necessário um
balé acrobático. Um equilíbrio extremo, quase passos certeiros de valsa para
nos desviarmos dos carros e motos que parecem ter um prazer extremo em ver os
pedestres suados sob sol quente de Sergipe, afoitos na tentativa de chegar até
o primeiro Mercado.
Não sou um bom bailarino. Dois pra
lá, dois prá cá.
E hoje, não diferente dos outros
finais de semana, quase fui pego por um Siena fire prata, quatro portas, placa
de Aracaju e tendo um senhor um pouco calvo, cabelos brancos e camiseta como
condutor. Acho que ele estava com uma sede tremenda, um ódio tamanho para
acertar as contas com alguém – ou ele é assim mesmo – pois quando tentei
atravessar à frente do seu objeto de poder, aquilo que o torna um individuo
diferente dos caminhantes, ele acelerou mais e quase me pegou. Curiosamente,
fui salvo pela fidalguia de um motociclista que parou o trânsito da “segunda
faixa” – não sei bem se existem faixas ali.
Em meio ao caos cotidiano, ainda
pude ouvir um “filho da puta!” em brados retumbantes do motorista! Pensei
comigo, poxa nem um “filho do cabrunco... foi filho da puta mesmo!”. Vida que
segue e a minha seguiu.
Fiz o que sempre faço, passei na
mesma banca, com o mesmo moço e pedi uma água de coco, trocamos uma ideia e ele
fez a mesma piada dos outros tantos finais de semana: “Já se protegendo pra
cerveja da tarde!”. Eu sempre sorrio e balanço a cabeça.
Fui no mesmo vendedor de queijo
coalho dos sete anos em que vivo em Sergipe. Conversamos sobre a mesma coisa
dos últimos cinco e depois enfrentei as calçadas justas e abarrotadas para
comprar um filtro d’água. Na volta, de fato, tomei uma cerveja e comi um caldo
de mocotó no segundo Mercado, enquanto os chorões afinavam os instrumentos.
Fiquei pouco ali.
No vendedor ervas, bati um papo e
comprei um capim santo pro bichano e, de costume, atravessei o que eu chamo de
Paço, onde fazem os tradicionais forrós de junho. Tudo muito cansativo para que
você me ouça, eu sei. Mas a alguns metros de entrar no primeiro Mercado, o das
frutas, o dos pescados... aquele em que tempos atrás quase virei parte de
asfalto. Ouço uma voz firme, grosseira, me questionando de forma intimidadora: “Você
é maluco é?”.
Nesse momento minha educação tipicamente
da Baixada Fluminense surgiu como um sentido
de Aranha prevendo o perigo. Continuei em passos normais. “VOCÊ É MALUCO,
PORRA? ESTOU FALANDO COM VOCÊ!”. A coisa ficou séria.
Parei. Tiro nas costas se não
matar aleija.
Olhei firme, porém tranquilo. “VOCÊ
É MALUCO, QUER MORRER?”. Ah, a didática do trânsito. A didática do motorista
cheio de razão que não leu a cartilha do DETRAN.
Frações de segundo serão
transpostas em palavras para você, afinal, a mente humana funciona de maneira
muito curiosa e um segundo realmente pode parecer uma eternidade quando
tentamos relembrar e concretizar a memória em palavras. Então me dê sua mão e
vamos juntos para dentro da minha cabeça naquele instante que agora se eterniza
entre nós dois:
Se eu responder que não sou maluco darei razão a ele para converter a
violência verbal em violência física, violência evidente para mim, mas
evidentemente natural e correta para ele. Eu continuava olhando, se
houvesse um espelho de palavras aqui diria que eu estava mesmo com uma
expressão amórfica de louco. Não esboçava reação a não ser a de uma paz
interior como instrumento de defesa. Se
eu continuar calado, no máximo ficarei ouvindo mais alguns impropérios desse
idoso, mau motorista, mau cidadão, arrogante e que deve ter uma vida fodida,
tratar mal seus filhos, mulher. Posso mandá-lo tomar no olho do cu, se danar.
Mas isso lhe dará razão para partir para cima de mim. Bater em velho é uma puta
sacanagem. Porém também posso apanhar. Puta sacanagem. Ele pode estar armado,
pode me matar e ele já quase me matou. Eu continuava olhando para ele, se
eu tivesse um espelho de palavras aqui diria que eu estava mesmo com uma
expressão amórfica de louco. Não esboçava reação a não ser a de uma paz
interior como instrumento de defesa, isso só alguns loucos passivos têm. Preciso ser racional. Ficarei parado olhando
para ele, sem rir, sem me mexer, a não ser que ele avance. Posso me desviar. Pensei
também, confesso, se ele partisse para cima de mim: Posso dar na cabeça dele com a parte de terra da muda de capim santo, o
filtro não serve. Não! Vou destruir a muda, destruir o filtro. Fiquei
parado, olhando para ele.
“VOCÊ NÃO VAI FALAR NADA NÃO É?
ÔXE! É MALUCO MESMO ESSA PRAGA. NÃO DEVIA TÁ SOLTO POR AÍ NÃO, PODIA TÁ
AGRADINDO ALGUÉM. AÍ ATRAVESSA ASSIM DESEMBESTADO. E ESSAS MARCA AÍ NO BRAÇO? É
COLEIRA? É MACUMBA?”. Eu parado, olhando. Nós dois, talvez, os únicos no mundo.
O tempo parado. Entre o centro e a periferia do Paço. Ele, sei lá de onde. Eu
de um morro da Baixada Fluminense. Me equilibrando entre o bem e o mal. Meu silêncio,
minha segurança. A voz dos meus pais dizendo na infância que quem anda com porco farelo come. Você tem
que estudar. Estudar te fará uma pessoa melhor. Minha mãe na última semana
aconselhando: você anda irritadiço.
Precisa ser mais calmo. Pode surtar a qualquer momento. Eu chorando ao
telefone. Minha mãe me aconselhando. E eu parado ouvindo aquele senhor bradando
com dedo em riste que eu era maluco. Louco de pedra. Irracional. Eu. Ele. Nós. Eu
pensando isso tudo. Um minuto, talvez. Esse foi o tempo. Talvez. A voz dele amansou.
Me chamou de filho. Perguntou onde estavam meus pais. Afinal, eu era um louco,
um maluco. Aconselhou que eu não devia ficar perambulando pelo Centro de
Aracaju. Aconselhou o caralho, me deu foi bronca. “O Centro é perigoso” ele
disse. “Vai, vai. Vai tomar seu ônibus. Vai pra casa!”. Não esbocei palavras
durante aquele um minuto, um minuto e meio, realmente não sei medir o tempo.
Continuei caminhando, o cheiro bom do capim santo. O vozerio novamente, as
mesmas piadas, os abanos de cabeça. O moço dos ovos capoeira. A tia das
lambretas. Os cheiros. Sorri. Não olhei para trás. Sorri. Estou ficando mais calmo. Menos irritado como minha mãe aconselhou. Não
vou surtar, precisar de remédios, falar com profissionais. Eu terei sempre
os Mercados Centrais.
Imagem publicada originalmente na conta de Twitter do jornalista Bruno Torturra
Três máximas que não devem ser ignoradas: 1) Eu fui
um dos tolos que disse ruim com o PT, pior sem ele. Está comprovado,
isso é uma besteira de ontem; 2) O PT ajudou, no dia 13 de julho de 2016, na concretização
do golpe institucional. Está comprovado que hoje o PT é longínquo do que se
sonhou um dia longe de ontem. Uma submáxima: o PT é indefensável e, finalmente,
3) Sinto angústia por uma mulher como a Dilma Rousseff, cuja valorosa história
revolucionária a torna um exemplo para todos nós, continuar filiada a uma sigla
como o PT. Partido que contribuiu imensamente para que, agora, ela fosse
definitivamente afastada. A sigla PT não significa mais Partido dos Trabalhadores, mas Poder
Totalizante e, para isso, é necessário vender a alma a deus e ao diabo.
O cobrador de ônibus assassinado hoje e tantos
outros trabalhadores que morrerão daqui a pouco e que continuarão a morrer na
roda da fortuna são mais importantes que meu tempo gasto e o sono perdido às
portas de dia que passarei inteiro entre papeis e burocracia universitária
pensando em como o PT se tornou o que é e em como ainda ouvirei e leirei
pessoas, ditas esclarecidas se curvando ou na esperança de explicações
retóricas para a atitude política dessa sigla morta. Isso tudo dito aqui, numa
única frase, num único fôlego.
Dói pensar que, querendo ou não, a política também
é e se faz por laços de afetividade e se, de fato, assim o é, o PT está tão
vivo nas mesas de negociação, tão vivo, mas, tão vivo que fede. Pois o único
banho que tem tomado é com o sangue de índios, negros, homossexuais, toda uma minoria
solapada e violentada diariamente pelo poder dominante que esse mesmo tão vivo PT alimenta. Na verdade, o
poder não corrompe, ele vicia o usuário a se lambuzar na corrupção.
Não há muito mais que dizer. Ainda penso na família
que enterrará um pai hoje, um filho, um irmão. O silêncio é o símbolo do fim.
Como lutar contra o golpe se o golpe é chancelado intencionalmente pelo golpeado? Talvez seja a
hora de ignorar o som do silêncio e nos atentarmos mais na busca pela
claridade. A frase feita para as redes sociais e para o dia a dia se modifica: primeiramente
fora quem?
Nesses tempos tenebrosos: Continuo lutando contra o golpe que devasta a democracia e a partir de agora, também luto contra o PT.
63 anos. Aposentado aos 50. Bem disposto,
joga todo sábado o futebol master no campo do Boró, dois tempos de quinze. Bebe
sua cerveja em copo americano e em cadeira de ferro. Já deu uns tapas na
mulher. 25 anos casado com a Doralice, aliança 24K gravada no interior pelo
ourives: Fui o único. Certa vez,
arrancou-lhe dois dentes, pois ela reclamou do batom na camisa e do cheiro de colônia
feminina depois das suas andanças após o futebol.
Domingo, sentando no banco, rezou
pra São Jorge, o Guerreiro, que desse forças para continuar com a mesma mulher.
Ela à noite, no culto evangélico, ajoelhada orando para que Cristo Jesus acerte
os caminhos do marido. Divórcio é coisa moderna desses avançados. O que Deus
uniu o homem jamais pode separar. Nisso os dois são felizes. Apesar do próprio
padre reticente e do pastor revoltado com a situação. Mas a oferta e o dízimo
estão em dia. Dá-lhe oração e vigília. Queima-se vela e Ave Maria.
Jailson Salomão Costa Gouveia.
Irmão mais novo de seis. Cidadão de bem. Burocrata. Demorava uma hora no
cafezinho. Três para o almoço. Entrava nove e saía às dezesseis. Sonha com a
volta dos militares. Naquele tempo não
havia esse desbunde! Sempre achou grevista vagabundo. Porém, funcionário
público, colheu delas os seus benefícios. Dos de São Bernardo do Campo, sempre
teve pavor. Não gosta de nordestino, de preto, nem de candomblé. Mas todo dia 23
de abril não sabe se é cavalo ou se relembra que já foi coroinha.
Insulta Nicinho, o cabeleireiro, de
“viado” e “dá cu”, mas, entre cascudos e maços de cigarro sem filtro, pede pra
molecada comprar, junto ao jornal, fotonovela de travestis. Bandido bom, é bandido
morto. Mulher de minissaia está pedindo pra se estuprada e filha sua, se casar,
será de branco e cabaço. Seu Gouveia, cidadão de bem.
Machista. Sua mulher ainda coloca
sua comida. Não sabe fritar um ovo. Mas, nas festas da família, em meio à birita,
queima a carne do churrasco entre piadas sexistas. Lésbica é falta de piroca.
Gay foi falta de porrada. Seu Gouveia, cidadão de bem. Aborto é pra mulher da
vida. Apesar da rua inteira saber da Lindaura e da gravidez interrompida. O
silêncio feminino na mesa de jantar. Lavam-se as louças. Ouve-se um arroto. A
TV está ligada e um forte ronco na poltrona. Seu Gouveia, cidadão de bem,
encerra mais um domingo comum.
Como todos os homens da
Babilônia, fui procônsul; como todos, escravo; também conheci a onipotência, o
opróbrio, os cárceres. Olhem: falta o indicador de minha mão direita. Olhem: por
este rasgão da capa se vê em minha barriga uma tatuagem vermelha: é o segundo
símbolo, Beth.
(Jorge
Luis Borges, a loteria na babilônia. Ficções (1944), p. 53)
Dentre as mentiras da vida
Duas nos revelam mais:
- É um prazer conhecê-lo
- Era muito bom rapaz
(Aldir
Blanc e João Bosco, Nada a desculpar, 1973)
A formação malandro cocô
Se na França, onde os políticos
tanto da esquerda quanto da direita, cometem erros primários, e a maioria dos
que ocupam altos cargos, inclusive o atual presidente, estudaram na Sciences Po, imaginem no
Brasil, em que carreira política se faz, geralmente, por ser ex-jogador de
futebol, ex-policial torturador ou não, líder religioso neopentecostal,
contraventor, ex-celebridade?
É claro, esse é um exemplo tosco,
simplista como o são as frases desconexas de um mau ventríloquo aprendendo a
arte. Não precisa jogar a cerveja na minha cara, virar a mesa e me dar nas
costas com a cadeira de ferro. Calma, cagalhão e cagalhona! Analogias são
perigosas nos últimos tempos, tanto quanto a ironia, eu sei.
O que quero dizer é que a política
no Brasil nunca foi algo tão sério, a ponto de ser historicamente institucionalizado
como estudo. Aliás, Ciência Política é um campo que tem um pouco mais de 50 anos, ou seja, extremamente jovem. Isso me leva a ousar dizer
que, por não ter sido e não ser algo devidamente sério no país que mereça
atenção, a política sempre foi feita na base do exibicionismo, do “tipo ideal”
midiático – quando ela passou a ter importância fulcral –, quando não, na base
da oligarquia hereditária. Esta última, o modo mais corriqueiro de se fazer e
manter a política, enquanto poder, nas mãos dos mesmos senhores e senhoras de
terras e de gente no Brasil.
No país da onça de cativeiro assassinada
– são duas mortes em questão, vale frisar –, se aprende os meandros da Política
no ciclo vicioso da histórica maneira de se fazer política no jeitinho.
É como a vida numa cela de
presídio, numa Polinter da vida ou num morro qualquer: se você está ali, chegou
ali, por roubar um frango, um bombom numa loja de grande porte, mofará e perderá
toda a melanina da pele, será esquecido pelo Sistema e quando, enfim, deixar de
ser uma ficha numa pilha gigantesca, quando for lembrado, se for, sairá de lá
assaltante de banco.
Ou se está ali por um baseado queimado,
ou dois, até três, que seja. Por plantar em casa para consumo próprio. Enfim,
por ser usuário. Foda-se: saíra de lá traficante e revoltado.
Mas é claro, o menino do morro,
não planta e, pasmem, pouco fuma. Ele vende e ele é preto e negro é preso.
Presídio, Polinter e Morro: tudo uma coisa só.
Assim é a política brasileira,
assim é a prática universitária, é o futebol na rua, o namoro no portão ou a
arte na galeria: Jogue o jogo para sobreviver.
A práxis do erro: Jogue o jogo
Jogue o jogo. Frase típica nos salões de sinuca, principalmente,
entre os malandros cariocas da Lapa e os paulistas da Boca do Lixo. Jogue o
jogo: Joga vida roubada/ Joga vinte e
um.../ Sinuca, bilhar,/ Joga pra espetar/ Pra matar/ Pra defesa... (Jogador, de João Bosco e Aldir Blanc. Do disco Tiro de Misericórdia, 1977).
O mais temeroso, e essa é a pedra
que quero acertar nas vidraças insensíveis do Shopping Center Building com meu estilingue,
é tanto a esquerda, o centro, a direita e os lugar-comum, não se darem conta
disso.
A esquerda, a que mais me
interessa no momento, por exemplo, se apegou ao discurso de “só caçam o PT” e
caem no sumidouro narrativo de ignorar que a evidente corrupção petista é idêntica
ao jogo jogado pelo PSDB há anos e ao muro de poder que é o PMDB, para citar
aqui apenas os peixes grandes. Por outro lado, a direita, cada vez mais burra e
dominada por cagalhões, tem conseguido, aos trancos e barrancos golpistas,
manipular a massa como o sempre fez e manter o projeto evidente de só
evidenciar os males e falcatruas do Partido dos Trabalhadores e jogar para o
tapete que quem aparelhou o sistema foram eles mesmos e, de fato inegável, não
o PT.
Daí, a esquerda e a militância
petista – há uma grande diferença entre os dois ideologicamente na atualidade e
já alguns anos, por sinal – batem de frente dizendo “não!”, contudo, num tipo
de combate ainda mais tacanho e ingênuo do que mobilizar massas camponesas no
sertão que padecem sem água e pão.
Vejam bem: Primeiramente, o
interino ainda está inteiro. O salvador da pátria, a estrela branca e imaculada
no centro do vermelho sangue, já assinala para as eleições municipais a mesma
vinculação de alianças que lhe custaram mais que um dedo no torno.
Quem vemos no horizonte de
esperança? Ciro presidente?Lomba da massa, lomba da massa que não me
deixa sair de casa!
Veja mal: Em nenhum momento do
debate, se é que existe algum debate atualmente, a não ser agressões mútuas e
infantis, pudemos observar algum tipo de avaliação, um mea culpa sequer, dos erros políticos do governo derrubado. Não,
não estou falando da militância. Do eleitorado, de você e de mim. Falo das
lideranças. Claro, ingenuidade a minha, afinal, reconhecer os erros, é sair do
jogo sacramentado da nossa política, seria abandonar as trincheiras já cheias
de ratos e larvas de moscas varejeiras nas nossas feridas putrefatas e com vivo
pus. Apodreçamos, mas apodreçamos com honra, mesmo que ela, na verdade, seja
pura arrogância hagiográfica construída na Lapa, na Cinelândia ou na Avenida
Paulista sobre um carro de som e rouquidão e evidente cansaço.
Vejo o contrário. Observa-se uma
militância de esquerda reinventando, tão ingenuamente quanto você ouvir minha
voz solicitando autoavaliação das roucas lideranças, pautas de luta contra o
governo golpista, ignorando, por exemplo, que os índios já eram mortos sob a
bandeira vermelha do PT, tanto quanto são assassinados nesse momento e no
governo anterior e no anterior e no anterior e no anterior.
Mariana e Ouro Preto padecem na
lama podre e contaminada dessa Política feita, não pelo preparo político, mas
pelas mãos do jeitinho brasileiro. Se quer o que se quer: manter a práxis.
Ora, tínhamos a rainha do
agronegócio à frente da pasta... da agricultura! E agora assumiu o imperador.
Oito e oitenta.
O macho adulto branco sempre no
comando e A fila de soldados, quase
todos pretos dando porrada na nuca de malandros pretos, de ladrões mulatos e
outros quase brancos tratados como pretos: Reconhecer o valor necessário do ato hipócrita
Rafael Braga continua preso e ele,
a meu ver, é o maior símbolo dos buracos de avestruzes que somos cada um de nós
em nossas “lutas inglórias” de 2013 a 2016, em nossa militância ingênua de
joguetes. Cafés com leite, isso é o que nós somos na Política.
Café com leite. Termo, segundo o cronista paulistano João Antônio,
que se referia aos garotos que frequentavam os salões de sinuca não ser
permitido beber álcool e os mais velhos lhes darem café com leite. Ver a
antologia Malagueta, Perus e Bacanaço
e o conto homônimo (João Antônio. Contos
reunidos. São Paulo: Cosac Naify, 2012. p. 42-181).
Ignoramos os atos assinados
durante a última gestão desgovernada pelos desgovernos de favores e alianças:
Lei antiterrorismo contra nós terroristas.
Ignoramos até o mais sensível: os
únicos que pagaram pela ingenuidade, foram uma mulher branca, que lutou
bravamente contra a Ditadura Civil e Militar, sendo presa e torturada e que foi
eleita pelo povo esperançoso e um negro catador de latinhas, lavador de carro
nas ruas, representando bem o que é a massa e que somos nós massa esclarecida:
cafés com leite.
Os dois são similares. Os dois são
epígrafes para a sociedade e para o subtítulo chupado do falo de Caetano. De duas
canções de Caetano: Haiti,de 1993
(com uma pequena participação de Gilberto Gil) e O estrangeiro, de 1989.
Dilma Rousseff foi o joguete que
marca o machismo político e a dominação masculina nas mãos do mais do mesmo. O
moto contínuo. Ela é o exemplo da honestidade que foi derrubada pelos acordos
entre leões disfarçados de cordeiro. E está pagando esse preço. Quem era Dilma,
se não um interregno do projeto de poder de Lula e o liberalismo disfarçado do
PT? Quem é Dilma se não aquela que não compactuou com a práxis do Jogue o Jogo?
Não enxerga quem não quer ver. E por ser mulher, por si só, teve e tem de
enfrentar o antro sujo de homens sórdidos.
Rafael Braga é o negro, pobre e
marginalizado. É, nas poéticas palavras de Francisco Bosco, o malabarista do
sinal vermelho. Ele é a evidência de Como
quem vê por um vidro/ O que escapa da mão/ Uns exilados de um lado/ Da
realidade/ Outros reféns sem resgate/ Da própria tensão (Malabaristas do Sinal Vermelho, de João Bosco e Francisco Bosco. Do disco homônimo de 2003).
Por isso mesmo: Vamos comer Caetano/ Vamos devorá-lo/ Degluti-lo,
mastigá-lo/ Vamos lamber a língua (Vamos comer Caetano, de Adriana
Calcanhotto. Do disco Maritimo, 1998).
Ele é o profeta. O ateu que viu milagres que sabe que, às vezes, é solitário
viver.
O tiro de misericórdia ou o réquiem dos enganados
Do canto dos escravos, no passado
e no presente, ecoa para um ponto do peito uma canção:
Ê ei
Óia puru céu
Óia puru céu
Puru terra
Diabo te enganou Muriquim
Puru terra
Diabo te enganou João Inácio
Óia pro céu Puru terra
(O Canto dos Escravos – Canto IV. Gravadora Eldorado, 1982)
Assim, a vida segue e
morre mais um garoto de dez anos como ladrão:
Em caso de dúvida, basta realizar
uma pesquisa séria sobre a condução do Congresso Nacional nos últimos anos, em
termos de atraso nas medidas progressistas, e logo se perceberá que, além das
muitas falhas no exercício público da política no Brasil, a chamada Bancada
Evangélica foi um dos maus ignorados por nós, que pretendemos uma modificação
radical no jogo hediondo que marca as negociações partidárias há séculos.
Não sinto nenhum apego ao exagero
ou medo de ser taxado assim, ao afirmar que, ao lado da Bancada da Bala (ex-policiais
civis e militares e alguns ex-oficiais das Forças Armadas) e a dos Bois
(composta pela aristocracia do agronegócio) os senhores da indústria da fé têm
feito um mal tão grande à sociedade que aqueles que fingem não perceber beiram
o cinismo hipócrita.
A religião e a religiosidade são
um direito evidentemente garantido na Constituição. Mas,
principalmente, o primeiro aspecto não deveria – jamais – influenciar no
cotidiano da laicidade da República. Um republicanismo aos frangalhos, eu sei,
mas, ainda assim, é uma República e, claro, Democrática, até mesmo quando
golpista!
O testemunho diário do que fazem os “pastores”
eleitos, queira quer não, democraticamente como deputados federais e estaduais
e senadores, é um crime que vai além do político, vai além de ferir as
estruturas da instituição pública: são crimes contra a humanidade. Cabe frisar
que já o faziam em seu espaço de culto, em púlpitos manchados pela mácula do
suor do trabalho alheio. Suor não só dos crentes fiéis, mas meu e seu, uma vez
que as Igrejas evangélicas não são taxadas com impostos e poucas delas possuem um controle sério de quem pode assumir tal função ou não.
Eu poderia listar aqui o linguajar
infame, as referências racistas e homofóbicas, seus projetos de lei que ferem o
direito feminino de conduzir os ditames de seus corpos. Poderia gritar aqui o
mal maior de projetos que tentam barrar avanços como a pílula do dia seguinte e
o direito ao aborto em caso de estupro, o ensino de igualdade de gêneros nas
escolas... O ensino sobre as culturas e diversidades religiosas.
Houve um momento em que eu até
tentei separar o joio do trigo, buscar uma racionalidade que me ajudasse a
compreender os motivos dessa bancada ser e agir assim. Mas, como já dito, esses
“pastores” foram eleitos democraticamente. E é justamente isso que não pode nos emudecer
na lógica que está profundamente latente aos nossos olhos: Suas
ovelhas-eleitores são justamente isso: ovelhas. A urna é um claro matadouro.
Então, o joio e o trigo são uma coisa só
num mesmo saco eleitoral de ofertas e dízimos entregues de maneira sincera nas mãos desses lobos. E não devem ser separados. Se
não há crítica, há conivência. E a convivência com “bons evangélicos”, com “bons
cristãos” apenas tem me provado que lhes falta algo simples: crítica racional. Sua fé sincera se sobrepõe a realidade que nos cerca atualmente. Se sobrepõe às migalhas a que se transformou o sério propósito social. E explicarei, pormenores, essa minha intencional generalização.
Certa vez, após assistir um vídeo de
um desses estelionatários pela Internet fui repreendido por um colega de
universidade – protestante, se não me engano, Presbiteriano – com a seguinte
frase: Ele é assim exagerado, mas é
ungido, conhece a bíblia como ninguém. Aquilo me deixou extremamente
assustado.
Aquele rapaz possuía uma formação
acadêmica próxima da minha, me era e é muito querido, mas, mesmo assim, mesmo
com tudo ali escancarado à sua frente, preferiu ser mais um evangélico,
protestante, cristão conivente com as atrocidades que são ditas dominicalmente
e diariamente na TV por esses salafrários.
Dos muitos evangélicos que conheço, que ao menos nesse sentido crítico contra o uso da fé como mercadoria são inimigos ferozes das, segundo o termo dito dia desses por um deles, Indústrias Neopentecostais, consigo contar nos dedos de uma mão, os que agem como verdadeiros combatentes contra esse quadro acima pintado: três.Mesmo assim,
essas e esses amigos são ainda reticentes para assuntos como igualdade de gênero,
liberação do aborto, avanço nas leis contra homofobia, etc. Julgo desigual.
Outra pedrada sem preâmbulo e vou mais longe
Deus não abençoa ninguém. Não
abençoa sua família. Não abençoa esse país.
Por quê? Simples: deus existe para
quem quer que ele exista. Isso é um fato latente. Guarde seu deus para você e
viva seu deus ao extremo.
Todorov apresenta uma questão que
considero fundamental sobre o que eu afirmei, com dureza, acima. O filósofo e
historiador radicado na França, se refere ao projeto das Luzes, ou Iluminismo. Segundo ele: (...) o que se rejeita é a submissão da
sociedade ou do indivíduo a preceitos cuja única legitimidade advém daquilo que
uma tradição atribui aos deuses ou aos ancestrais; não é mais a autoridade do
passado que deve orientar a vida dos homens, mas seu projeto para o futuro. Ainda
assim, nada se diz da própria experiência religiosa, nem da ideia de
transcendência, nem de tal doutrina moral sustentado por uma religião em
particular; a crítica visa à estrutura da sociedade, não ao conteúdo das
crenças. A religião sai do Estado sem, no entanto, abandonar o indivíduo (TODOROV,
Tzvetan. O espírito das Luzes. São
Paulo: Barcarolla, 2008. p. 15 e 16).
Não entrarei na complexa esparrela
dos problemas que o Iluminismo trouxe e que, ainda hoje, é ignorado pelo grosso dos doutores. Mas, para os mais antenados, basta pensar no Imperialismo do século
XIX e todo o processo – bem cristão, por sinal – de civilidade e igualdade defendida, mas que ignorou outras formas de organização social diferentes da européia naqueles cem anos anteriores de gestação do "projeto das Luzes". Observem que o impacto, no XIX, estava afastado temporalmente da gênese inicial do que combateram os filósofos iluministas, por, simplesmente, um século!!!!
Dito isto, aliás, citado
isto, só posso exclamar que a Bancada Evangélica é a Marca de Caim da República e só chegou até esse ponto, sem volta,
não ignorem esse fato, pela conivência e estupidez das ovelhas-eleitoras e da
má política diária dos governos, tanto de Direita quanto de Esquerda. É uma
serpente cujo ovo, todo nós, todos, sem exceção, permitimos ser chocado.
Ora, quando uma criança sai de
um culto de Candomblé ou Umbanda e é apedrejada por gente de terno e com bíblia em uma das
mãos, é apenas uma prova cabal de que a serpente já nasceu há tempos.
Quando se ignora que as religiões
de matrizes africanas são tão importantes quanto o cristianismo destruidor e escravizador
que trouxe negras e negros, reis em suas terras, senhores e senhoras de terras, é uma evidência incontestável
de que a laicidade não deu certo neste continente brasilis abaixo da Linha do Equador. Ignorar que em uma organização cristã-colonial como foi a que aqui testemunhou-se, na qual cristãos utilizavam trechos dos Salmos para justificar a escravidão negra, uma vez que David escravizava etíopes e, no mínimo, ignorar a História. Finalmente, esquecer que os primeiros habitantes do solo a que chamamos Brasil, os índios e índias, foram privados de sua cultura religiosa e de organização graças ao discurso de salvação da Igreja Cristã é o cúmulo da exemplificação da relação constante entre dominantes e dominados.
Isso explica porque num país em que se ignora as culturas, é mais do
que claro que será impossível perceber o cristianismo como mais um entre tantos
outros aspectos culturais até enriquecedores ao ser
brasileiro, apesar de seus histórico assassino e destruidor. Entretanto, me pergunto, quem de nós não tem defeitos, mas pode em dado momento corrigi-los? O cristianismo se manteve no Brasil intacto desde que chegou, sem nenhuma correção:
patriarcal, religião de uma minoria dominante imposta aos dominados, destrutiva... Foi assim com o predominante catolicismo que, de pouco a pouco, tornou-se apenas nominal, restando poucos que professam seriamente, e agora o é com a religião evangélica.
Por isso mesmo se hierarquizam
erroneamente as culturas nesses grupos religiosos evangélicos. O samba é batuque, as afroreligiões, macumba, etc. Na verdade, por esses e outros aspectos, que o cristianismo se considera
além da cultura, ele é o ditame do que é certo e errado. Do moral e do imoral.
Mas o que ignoramos é algo tão mais simples: o cristianismo em nosso país e a Marca
de Caim.
A pedrada final: Volto à ilusão da Direita má e a Esquerda boa/ Da
Esquerda má e a Direita boa
Não nos iludamos, associar
tacanhamente os neopentecostalismos somente aos movimentos neoliberais ou à
extrema Direita (aos moldes tupiniquins) é jogar a sujeita para debaixo do
tapete. Motocontínuo, manter o discurso de que os evangélicos nas Câmaras – estadual
e federal – e no Senado são heterogêneos demais para que possamos identificar
exatamente os inimigos, ora, também é, se não, conivência, algo muito pior:
covardia.
O discurso é homogêneo. Se há
homogeneidade, isso vai além do ser
evangélico, é claro, porém, isso está no entrave silencioso, mas ensurdecedor, das pautas progressivas pelos
pastores que ainda se mantém firmes em seus púlpitos sem usar a fé como negócio, mas que em suas latrinas
cometem o pecado da soberba por um segundo ou dois, batendo palmas feito macacos aprisionados no zoológico para mais e mais homossexuais ofendidos e agredidos, para meninas
estupradas e sem atendimento adequado, sem o direito de abortarem um feto oriundo da violência machista diária que o cristianismo ensina ao pregar que as mulheres devem ser submissas aos maridos, logo, ao homens. Palmas que reafirmam simplesmente: Se fosse crente, se fosse normal, não seria
ofendido ou se estivesse na escola,
na igreja, com roupa decente, não teria sido estuprada. O que é ser normal? Desejar dentro de um padrão socialmente construído e imposto? O que é decente?
É tempo, mais que urgente, de se
rever os conceitos por todos os lados na busca pela laicidade, não aquela
formatadora e que emudeça as formas de religiosidade, mas a que percebe os meandros culturais e de diversidade entre os
brasileiros e que justifica plenamente o vídeo abaixo.
Post scriptum
O projeto de destruição do país é
bem coeso e a sua fórmula , politicamente falando, extremamente racional e mesmo se
tratando de forças que podem ser consideradas incompatíveis, o projeto de destruição,
via tomada de poder por essas bancadas políticas, pode ser, deste modo, esquematizado:
Bancada Evangélica: Atua no psicológico minando a possibilidade de
debate, uma vez que o uso de uma entidade invisível como o deus cristão impossibilita a
ação da racionalidade crítica. Como desconstruir o que não se vê? Ao mesmo tempo, os membros dessa bancada firmam suas pautas
antiprogressistas na covardia de usarem tacanhamente o direito, garantido, de
expressar a fé como liberdade de expressão. Contudo, ignorando que esse direito é de todos, inclusive, dos
que não tem fé ou religião.
Bancada da Bala: Uma vez minado o psicológico, atua no estado
físico, no direito de ir e vir. Em breve corremos o risco, novamente, da
institucionalização – ainda atuante, mas ainda não como lei – do direito à tortura,
censura, etc. O modus operandi dessa
bancada é ignorar totalmente o humano.
Ela age na lacuna aberta pelo Estado ainda que em conluio com esse mesmo Estado que caminha para a teocracia. Possui
estratagemas perfeitos que nem Agostinho de Hipona suspeitaria ao elaborar o seu conceito de guerra justa para o
Império Romano cristianizado. Por isso mesmo, é difícil esperar algum tipo de
embate moral entre as Bancadas Evangélica e da Bala. O passado prova que em algum momento o cristianismo precisa de um braço competente para derramar o sangue dos infiéis.
Bancada dos Bois: O agronegócio funciona historicamente vinculado com
o discurso cristão (nosso passado de invasão das terras indígenas e sua catequização é um presente constante) e a ação armada (nosso passado de tomada
das terras indígenas através de seu massacre é um presente constante). Ela une
perfeitamente as duas ideologias acima listadas. Diria eu, em analogia, que a
Bancada do Boi funciona como a concretização da cristianização, logo, alienação
do eleitorado “de bem” e da “justiça” violenta e aprovada pelos cegos
cristianizados pela indústria da fé. Só que o mais curioso é que essa bancada
política, antes a longo prazo, hoje de forma bem imediata, está carregando o
país para o fundo do posso e contribuindo profundamente para uma evidente crise
ambiental que nos alastra.
Pensem bem, se o Brasil está como
está, ainda tendo bem ou mal reservas naturais, que dirá quando suas nascentes
secarem e todos os índios forem mortos?
Enquanto isso, continuemos
ignorando a Marca de Caim.
Eu sei que o momento é cuidadoso.
Pautas mais importantes preenchem nossa mente e seus parágrafos
microscopicamente são analisados pelos nossos olhos. Porém, me permito um
momento de distração nessa noite chuvosa em Aracaju e que está me remetendo à
minha velha Mesquita...
Às favas! Na verdade, comentar
política se tornou uma variável muito difícil de traçar. E como minha garganta
está coçando faz uns dias, querendo imitar alguma voz, emitir algum som, decidi
mudar um pouco o tom e cantar uma melodia que conheço bem.
Atualmente, um dos muitos – e descontroláveis
– problemas, presentes no cotidiano das grandes às pequenas capitais mundiais,
diz respeito à mobilidade urbana. O número de carros, por exemplo, numa pequena
capital como Aracaju, praticamente triplicou nos últimos anos. No nosso caso, isso
deve ser somado a um transporte público deficitário, sucateado, ruas totalmente incapazes
de receber todo o fluxo de motos, ônibus e carros e, claro, uma triste cultura
capitalista de bens: Ter um carro bacana,
do ano, expressa seu sucesso. O trânsito por aqui, não devia, mas é um caos
desordenado entre a falta de educação, típica dos motoristas brasileiros, e
ausência de espaço para todos.
Para não ficarmos correndo o risco
de nos prender ao local e eu correr um sério risco de ser taxado como
preconceituoso, tomem nota: mesmo uma cidade da região metropolitana do Rio de
Janeiro, como Mesquita, na Baixada Fluminense, serviria como exemplo categórico
do que estou tentando afinar com essa voz um tanto rouca. Ter um carro ou moto
por lá expõe a linha tênue entre “necessidade” e “status”. Têm-se sucesso se
não precisa pegar um trem, ônibus ou andar de bicicleta!
De fato, a questão é que no Brasil
há um grande atraso que, se observado frente aos seus vizinhos mais próximos e
grande parte do continente Americano e Europeu, podemos dizer, é até um
retrocesso na possibilidade de avanço – vide todas as manifestações contrárias
ao movimento de ciclovias, ciclofaixas e ciclorotas na cidade de São Paulo.
Ok, a esse último exemplo devemos
juntar a ojeriza pela sigla partidária do atual prefeito da capital paulista
que motiva, inclusive, agressões das mais esdrúxulas contra os ciclistas. De
todo modo, vale um exercício lógico, sem vestir vermelho ou amarelo: No Brasil,
tentou-se resolver o problema da primeira crise econômica, ou a possibilidade
de sua chegada ao continente tupiniquim, através do consumo frente produção. Os
carros, com seus ridículos IPI’s reduzidos – não quero entrar aqui numa complexa
análise do quanto somos lesados pelas multimilionárias fabricantes de
automóveis no nosso país e o quanto de impostos pagamos por um carro “popular” –
foram o principal bem de consumo adquirido no projeto petista daquele período.
A diferença frente os governos anteriores é que a renda, de fato, passou a ser
melhor distribuída, principalmente, entre aqueles que estavam à margem mas que,
claro, não puderam e ainda não podem comprar um carro.
Um exemplo confiável, que essa
relação consumo produção, no nível de automóveis, se limita, sobretudo, à
classe média: nos últimos anos, com exceção de dois ou três vizinhos (e eu), todo
o meu condomínio trocou de carro. Levando em consideração que são duas torres,
com doze andares e cada um deles com quatro apartamentos, tendo algumas
famílias mais de um carro e moto, faça suas contas.
A coisa toda, já sabemos,
desandou. Hoje, o número de endividados na classe média, seja a mais nova ou a
tradicional, é exorbitante. Tanto que numa primeira leva de crise (política)
foi ela quem ocupou majoritariamente as ruas e gritou, ignorando sua
manipulação via TV e Jornais, Igrejas Neopentecostais e os mesmos partidos de
direita de sempre: Fora Dilma! Fora PT! O
golpe foi escancarado, as panelas se silenciaram, as camisas da Seleção
Canarinho voltaram para as gavetas com naftalina e hoje as dívidas se mantêm.
Mais uma vez, a história, que não deveria se repetir, segundo Marx, se repete: a
classe média tradicional, e a reboque a nova, entrou pelo cano. O que isso está
relacionado com mobilidade urbana e, claro, minha relação pessoal com a bicicleta?
Mas louco é quem me diz que não é
feliz
Confesso que do meu escritório
posso ver um fio de paisagem que sei que guarda o mar lá no fundo. O bom é que
o constante céu azul da minha cidade me ilude que entre nuvens e carcarás, o
que eu vejo na verdade é o imenso mar.
Ao mesmo tempo, posso ver também a
chuva que vem fina da orla, se misturando às nuvens, acinzentando o azul...
Quando criança em Mesquita, eu
fazia tudo de bicicleta: escola, padaria, ir para o campo de futebol, igreja,
aula de música, casa dos amigos... Não havia uma rua, ladeira ou encruzilhada
em que eu e minha Monark não tivéssemos ido. Dos 11 aos 18 anos era assim que
eu me locomovia. Não havia na cidade ciclofaixa, ciclovia, nada disso. Era meio
fio e pulando calçada quando dava. Uma vez fui atropelado indo para a escola,
numa rua pacata, atrás do antigo Hospital São José. Fui socorrido pelo próprio
médico que me atropelou, não sofri um arranhão.
Vim morar em Aracaju por motivos
de concurso público, em 2009, e a primeira coisa que me disseram foi: compre um carro, o transporte público aqui é muito ruim. Realmente, era uma loucura
terminar as aulas às 22:30 e pegar o ônibus no campus sei lá que horas.
De qualquer maneira, foram as
ciclovias – não, eu não comprei um carro, mas ganhei um do meu pai – que mais
me chamaram atenção. Vindo da Baixada Fluminense, aquilo era quase um
sentimento de me ver criança em Paquetá nas férias de fim de ano. E Aracaju tem
isso, tem esse misto de cidade pequena com o caos urbano. Mas, é recheada de
ciclovias e ser ciclista aqui, andar de bicicleta aqui – tirando os dias de
chuva – não é um exotismo e há até reconhecimento nisso.
Quando vi a chuva de hoje e meus
afazeres completos, desci com a bicicleta sem pensar duas vezes. No térreo, só
pude ouvir um cochichar de alguém quando saí do condomínio: lá vai o louco da bicicleta. Sorri.
Enquanto o vento e a chuva
banhavam meu corpo, minhas pernas se molhavam nas poças e os pneus deslizavam
no asfalto, a sensação que eu tinha ao ver as pessoas se escondendo nas
marquises, nos pontos de ônibus, era de olhares que diziam: lá vai o louco da bicicleta.
Depois me dei conta que não era
preconceito ou reprovação, mas uma reação ao meu sorriso bobo, apesar do corpo
encharcado e imundo de lama. Sorri novamente.
O fato é que a cidade parou, não
por mim. Mas graças a chuva, as ruas alagaram, carros pararam, se chocaram nas
esquinas. Ao meu lado nas ciclovias, trabalhadores voltando da lida com suas
capas, certamente, mais sérios do que eu, mais responsáveis que eu, mas não
menos compenetrados em seus pensamentos do que eu.
A música soava nos meus fones –
talvez, eu nem precisaria dela –, cada piscada era um flash.
Eu disse certa vez e não volto
atrás, que ao andar de bicicleta me surge uma crônica por cada cruzamento e
sinal fechado, cada cheiro que eu sinto. Para as prostitutas nas esquinas que deságuam
a orla, para os travestis da Ivo do Prado, para os maconheiros da pracinha,
para as crianças nos brinquedos, para o pessoal do cooper e da caminhada, para
mim.
Ao mesmo tempo em que tudo me era
alegria e molecagem, pensei muito na mobilidade urbana e no quanto o Brasil
perde nas suas idas e vindas consumistas. Não se trata de ser “bicho grilo” ou “novo
hippie”. Como eu disse, tenho um carro, uso o carro e entendo bem a necessidade
de todos os que veem no veículo conforto e comodidade. Mas é fato consumado que
a bicicleta é mais barata e faz muito melhor a saúde que o frenesi do trânsito
cotidiano.
O que eu quero dizer, é que não
havendo extrema necessidade, deixo o carro de lado, aliás, me coço aguardando
essa oportunidade.
Não me lembro quando, mas uma vez
assisti uma entrevista de um músico paulistano chamado Curumin. Nela, ele
falava sobre uma composição sua intitulada Magrela
Fever. Eu já tinha o cd (Japa Pop
Show) e, evidentemente, gostava imensamente da música em questão. Porém,
quando ele explicou os motivos da canção, confesso que ela se sacramentou como
uma oração diária que antecede cada vez que monto na minha bicicleta e saio
pelas ruas da cidade, seja para passear, me distrair ou ir para o trabalho. Se
você me permite, transcrevo a fala:
Magrela Fever é uma música que eu fiz. É que eu gosto muito de andar de
bicicleta, gostava muito de andar de bicicleta na cidade. Assim... Em São
Paulo... Num certo ponto, a gente começa a procurar alternativas para escapar
da loucura das ruas, né?, do trânsito e tal. E foi uma alternativa que eu achei
e que além de me fazer bem, assim, de andar, de poder andar de bicicleta, eu
fugia desse trânsito maluco. Então eu estava tão feliz por conta disso, de ter
descoberto isso daí, que eu podia fazer percursos longos, ir pra casa, pro
trabalho, voltar, ir pro estúdio de bicicleta, que daí eu fiz essa música aqui.
Curumin, em cada verso, cada
frase, conseguiu expressar o sentimento tão profundo que é o de se sentir,
simplesmente: livre ao pedalar. Pode parecer loucura, mas não é.
E ainda hoje, para muita gente
desatualizada, a liberdade é uma loucura... Não para mim e, pelo visto, nem
para ele.
Não é a frase que dói, mas a
constatação de que a vida de fato segue. Correremos muitos, como críticos de fim de churrasco, para buscarmos a explicação para a vida que segue... e não encontraremos. Apenas cacos de vidros
quebrados pelo chão.
Hoje, quinta-feira, manhã seguinte
à votação no Senado Federal: Eu liguei para pedir ajuda ao meu pai, respondi
algumas mensagens, folheei um livro e pouco li das notícias. Tem sido esse o
meu dia.
Fui ao centro e as ruas
permaneciam cheias, os carros iam e viam. Não almocei. Entreguei o lixo e o mesmo
sorriso do funcionário do condomínio: Boa
tarde, Bruno. Ele vai e volta de bicicleta. Casa – Trabalho. Trabalho –
Casa. Foi assim hoje pela manhã. Será assim amanhã. Será assim no final do mês.
Logo mais, me sentarei na minha
sala – as repartições ainda funcionam – ouvirei as argumentações de uma
orientanda de monografia que quer concluir seu curso, assumir algum cargo
público de seleção que não há e não haverá por um bom tempo, na esperança de
iniciar sua vida, talvez, ignorando que ela começou desde o seu nascimento.
A vida que segue e, certamente,
sem a gente saber exatamente os motivos.
Fadados ao desânimo, as contas
continuarão sendo emitidas, os direitos pouco a pouco sendo reprimidos
diretamente àquela geração, a que faço parte, que jamais sentiu na pele tal
situação e me refiro aqui comparando àqueles que viveram durante os anos de
repressão da Ditadura de 1964 e que estariam numa mesma posição que a minha
agora.
A questão a se colocar, sensível,
eu sei, é que se um levantamento sincero for feito com alguém que tenha hoje
sessenta e poucos anos e que viveu num subúrbio qualquer do Brasil e que não
era vinculada a nenhum tipo de movimento político, sem acesso a educação, pouco
recordará daqueles 31 anos de silêncio e torturas. Talvez, justamente pelo
silêncio e manipulação midiática. Talvez, pelo excesso de trabalho, pela
família a sustentar, pela falta de saneamento básico, pela vida que lhes era
imposta.
Ora, hoje o quadro permanece o
mesmo: a mídia manipula, o silêncio sacramenta-se e as bocas e barrigas vazias
pedem pão. Mães e pais continuam suas jornadas duplas em busca do sustento. A
vida melhorou nos últimos 12, 13 anos, e a maioria dessas mulheres e homens
associam ao Partido dos Trabalhadores, vide o considerável número de votos nas
últimas eleições. Mas, afinal, é via Rede Globo que eles veem o futebol, as
novelas, as notícias. Cotidianamente lhes é imposta uma sinuca de bico, pois é essa mesma emissora que manipula de maneira tacanha as informações negativadas sobre o PT.
Eu diria até que para o meu pai e
outros trabalhadores que conheço, a vida de maneira automática se amenizará a
partir de uma breve possível calmaria... Fico feliz por isso. Sempre vi meus
pais batalhando por meu sustento, abrindo mão da própria felicidade. Prefiro
que eles sejam felizes. Fizeram escolhas naquele tempo: Trabalho – Casa/ Casa –
Trabalho. Mesmo quando tudo melhorou e melhorou, não posso ignorar que a luta
diária permanecia a mesma.
Neste momento, seria fácil apontar
culpados frente a alienação que testemunhamos: Igreja, Corrupção, Falta de
Consciência da importância do Voto Democrático, Mídia etc. Mas, se há falta de
mobilização popular, se ela existe como falta, é pelo marasmo que respiramos
todos nós. Pois, o povo foi às ruas, aliás, o povo nunca saiu das ruas, das
ruas tiram seu sustento, o povo conhece melhor do que ninguém os becos, as
saídas das crises, como lidar com a polícia e o ladrão. Lembro-me bem do meu
pai chegando cansado, muitas vezes caminhava quilômetros e quilômetros para
visitar seus clientes nos subúrbios com a sua pasta marrom e amostras de
plastic, não almoçava, vivia uma vida dura para me dar estudo formal, quando a
educação estava ali, todo dia em que eu presenciava ele e minha mãe regressando
do trabalho.
O fracasso histórico no Brasil está
nos pseudointelectuais como eu e meus colegas. Não está em gente como os meus
pais. Está naqueles que frequentam butecos populares, quando existiam, com
olhar analista-antropológico e se acham vanguardistas conhecedores do popular,
pois se mijam após o porre de cerveja ou fumam um cigarro de maconha misturado
com bosta de vaca ou compram uma ampola de cocaína do negrinho da esquina
misturada com pó de mármore. São risíveis em seus carros importados, parcelados
em 60 vezes e em seus apartamentos com decoração artesanal. Pagos com Visa
Platinum. Sim, estou puto comigo mesmo. Mas, vale muito uma autocrítica.
Hoje, o futuro pertence aos
secundaristas, os que na maioria ainda nem votam, meninos e meninas que têm
construído uma consciência política a qual não tive acesso com aulas de
Educação Moral e Cívica nos melhores colégios que o suor que os plantões
noturnos de minha mãe em hospitais já sucateados naquela época puderam me dar.
Essa garotada vem de lugares fodidos, são filhos de um verdadeiro proletariado
que trabalha, na sua maioria, em fábricas e lojas de departamento e temem pelo
dia a dia dos rebentos enfrentando o braço armado do Estado.É certo que sempre
existirão meninas e meninos de famílias abastadas que fogem a regra brasileira
de ignorarem a faxineira, o garçom... A luta deles, seu apoio nas ruas aos alunos
de escolas estaduais é mais que bem vindo tanto quanto necessário. O problema não
está, no fundo, no fundo, em quem é mais rico ou mais pobre, mas na maneira em
como os que mais tem encaram os que lutam pelo pouco não lhes chega. Não há
luta menor se ela é pela igualdade social.
De qualquer maneira, minha geração foi fadada à titulação, mestres e doutores, e uma substancial parcela não oriunda das esferas oligárquicas. Evoé!
Esse aspecto, brado em bom som,
foi obra majoritária do Partido dos Trabalhadores e nele me incluo com um
orgulho que não me envergonha.
Mas, apesar das dificuldades
enfrentadas para chegar até aqui, nós nos afastamos da prática. Da rua. Da
origem. Mesmo as jornadas de junho de 2013, capitaneadas por nós
intelectuais-gestores, tem sua origem em movimentos periféricos. Movimentos de
gente cansada de sofrer, de ir e vir em ônibus lotados, de serem oprimidas sem o
teto para o descanso. Gente que cresceu sendo revistada brutalmente pela
Polícia Militar de seu Estado. Mas, eis que os títulos de nobreza, agora um
pouco melhor distribuídos entre os pobres, desconfiguraram tudo, ou nós tiramos
o seu sentido. Viramos intelectuais de gabinete e quando não, analistas de
buteco e de samba de roda.
No fundo, tenho é vergonha de mim.
Em muitos sentidos tenho uma ardente vergonha que me remete ao silêncio tácito
e que quebro nesse vômito amargo de bílis. E me vem à memória para aumentar meu
descontentamento pessoal, uma certa madrugada de desespero, em que assustado
com a insônia me dei conta que meu maior medo é que jamais serei um ser humano
como foram meus pais. Jamais terei a força deles de me manter de pé com meus
próprios pés. Mas, no dia seguinte, com olhos vermelhos de tanto chorar em
silêncio na janela que dá para a avenida, pensei: é coisa de momento, tristeza
passageira. Usei toda a racionalidade conquistada nos anos de universidade para
ignorar o definitivo: a verdade nua e crua que jamais serei como eles e isso me
dói. Tenho o rompante de abandonar tudo. Jogar-me no mundo, sumir, parar de
escrever. Tornar-me um ermitão num buraco de tanta vergonha. Mas este sou eu.
Na verdade, tudo o que vimos e
veremos é muito reflexo do dia a dia, da vida que segue. Do momento. Das
pessoas que não tomam a frente no fazer, no arado intelectual. Trabalhadores intelectuais
frágeis, em sua maioria, que se escondem nas obrigações de gestão. Como eu. Como
você que me lê. É mais fácil o comodismo das conversas de corredores, no
cafezinho do sindicato. É mais fácil criticar pelas costas, em surdina ou usar
alunos para a velha política egocêntrica de problema psicológico de autorreconhecimento
que, talvez, um livro de autoajuda corrigiria.
Tudo é, de fato, reflexo da vida
que segue. Do medo de dizer não. Da vontade de dizer sim que não se concretiza.
Do medo de discordar de quem está à sua frente. O problema está em nós: está em
nos distanciarmos do “cidadão comum” ignorando que somos como ele e testemunhamos, apenas por outro prisma, tudo se acabar na quarta-feira. Nós, de ressaca e com
fantasias vermelhas de folião cansado, ele varrendo o chão de nossas serpentinas
e de vômito de derrotados. Quem sabe, se pegássemos na vassoura ao seu lado, a
coisa não seria como o é.