quarta-feira, 27 de outubro de 2021

“Porque a revolução é uma pátria e uma família” – Em Capitães de Areia (1937)

 


“A temática das crianças que vivem nas
ruas continua bastante atual. Para escrever
Capitães da Areia, Jorge Amado foi dormir no
trapiche com os meninos. Isso ajuda a explicar
a riqueza de detalhes, o olhar de dentro e a
empatia que estão presentes na história.”
Zélia Gattai Amado


Eis que estou aqui. Pois fugir de si mesmo quando nos olhamos no espelho é impossível. Mas eu sentia que faltava alguma coisa e mesmo que eu já não veja sentido, ao menos que eu me esforce para dar sentido ao que comecei. Já conversei com você há tempos sobre Capitães da Areia, publicado originalmente por Jorge Amado em 1937, livro que sucede Mar Morto e antecede ABC de Castro Alves. O que eu te disse, continua valendo, porém, veja bem, se me prontifiquei a dar sentido à coisa toda, devo dar sentido. Faltava algo. E em meio aos turbilhões da minha mente, como vastos cachos de uma cabeleira esparsa ou mar de viração: encontrei.

Já estava lá há semanas. Um quê qualquer de presságio não me deixou fazer o que eu queria. E eu gosto de liberdade. Faltava a foto da capa do livro na edição de 2008, com posfácio de Milton Hatoum, com capa azul céu (ou mar) sobre fotografia intitulada Jogo de Capoeira, de Marcel Gautherot. Tirada em Salvador, c. 1940-5, é uma obra de arte. Mas faltava a minha própria foto do livro como um todo. Encontrei.

Dedicado, entre outras pessoas, à Anísio Teixeira, Capitães da Areia é um dos romances mais conhecidos de Jorge Amado, seu sexto para ser mais exato. O ano de 37 do século XX marca, também, a perseguição de Getúlio Vargas aos comunistas e os livros de Amado sendo censurados e queimados em praça pública na sua adorada “cidade da Bahia”, Salvador. Entre as cinzas se formando no ardor da fogueira estavam as páginas do recém-publicado Capitães da Areia.

Li quando menino a história de Pedro Bala e seu grupo tão variado. Não tão menino. Li adolescente. Alguns anos após a chacina da Candelária, que ocorreu aos pés da famosa igreja carioca, na noite do dia 23 de julho do ano de 1993. Coincidentemente, no acervo da Fundação Casa de Jorge Amado, em Salvador, há uma carta do autor emitida do México para Anísio Teixeira, em 26 de julho de 1937, informando ao intelectual, entre outras coisas, que para o fim do mês seguinte seria lançado seu último romance e que ele seria dedicado à Teixeira “em sinal de admiração, amizade e gratidão” (ver carta no anexo final da edição de 2008 da Coleção Jorge Amado – Editora Companhia das Letras). Datas próximas, anos distantes. Mas adocica um pouco nossa prosa, mesmo que com ar de tristeza, você não acha? Eu até acho que prendo sua atenção com isso. Vivo achando coisas. Por exemplo, ele informa ao Anísio Teixeira na tal carta de 1937, que começou a escrever o livro em Sergipe e o finalizou na viagem ao México. As cartas são coisas interessantes, você concorda? Ninguém escreve mais carta para lugar nenhum, a não ser os bancos e suas cobranças disso e daquilo outro. Deixa estar.

Li quando adolescente Capitães da Areia, já disse. Li com uns treze anos de idade, acho. Acho, pois não sou de marcar as datas e anos de minhas leituras, o que me atentam à memória são as leituras e o que permeava o ar naqueles tempos e aqueles assassinatos ficaram na minha cabeça aos dez anos recém completados em 1993.

A chacina da Candelária mexeu com muita gente e, tenho certeza, sabe?, que por isso a professora de Literatura colocou esse livro denso na lista anual de sugestões de leitura para a antiga Oitava Série Ginasial. Não era obrigatória a leitura, não fazia parte do currículo dos quatro livros que deveríamos ler naquele ano. Mas ela sugeria, deixava lá uma listinha. Peguei na biblioteca comunitária da minha cidade – havia uma biblioteca comunitária – e li. Um tio meu, se me recordo bem, tinha um exemplar também e eu o já havia visto pela estante e sei que ele leu, ele lia muito e de tudo. Quem gostava de leitura já havia lido Capitães da Areia, que eu chamava com o de no lugar do da. Demorei muitas vidas para entender o motivo do da Areia, acho que no presságio de ver a areia e o mar e fotografar o livro na solidão do areal aprendi que melhor e mais correto era mesmo Capitães da Areia e não “Capitães de Areia”. Percebi isso enquanto focalizava a câmera para a minha fotografia.

Entendi melhor também as imagens, a poesia nua e a denúncia clara de que a literatura para ser bela não precisa mascarar a verdade. Ela precisa ultrapassar gênero, raça, cor, credo e ela ainda precisa ser assim, mas acho que está se perdendo pelo medo, pelos medos, pela confusão de medos e de lados. A literatura precisa doer, trazer dor tanto quanto alento. Pois a vida é no fundo essa luta constante pelo pão e sobrevivência e se há algum humor aqui ou ali nesse livro, se há as gargalhadas dos capitães da areia... Isso tudo é para nos lembrar justamente que a vida é luta. Luta que se ganha, mas que no fim, não adianta, se perde.

Claro que há passagens amareladas pelo tempo. Fervoroso comunista nos seus romances iniciais, filho rebelde de um coronel do cacau, Jorge Amado tinha suas utopias, mas, ora, e quem não as tem? Mas só um calhorda para não enxergar a beleza que é doutrinada por essa literatura da ação. E isso traz tanta coisa interessante na escrita desse escritor baiano.

O suicídio, que tenho observado de perto, traça uma linha como uma constante via nesses romances iniciais de sua carreira, nem que seja mascarado num mergulho eterno em busca de Iemanjá, tanto quanto sua denúncia sobre as mazelas da vida e a esperança no socialismo como solução maior que o mergulho profundo nas águas de Iemanjá. Não posso dizer que o primeiro aspecto perdurará nas demais obras – nossa conversa ainda será longa e a maré, tanto quanto a areia da praia nunca estão no mesmo lugar, nunca ficam da mesma maneira como as deixamos no dia anterior. As mazelas, sim, continuam como denúncia, com um humor mais constante, mais vivo, numa invenção de inversão da Bahia que, cada vez mais será Salvador de maneira mais clara ao mundo, chegando até a confundir esse mundo que é a Bahia com sua capital que é Salvador. O socialismo também, pois não é preciso se manter filiado ao antigo e verdadeiro partidão para manter em si a ideologia, mesmo que não mais a utópica como nos cânones. Explicando isso são melhores analistas que eu os livros deixados por Eric Hobsbawm, Perry Anderson, Terry Eagleton, Carlos Astarita, Jacob Gorender, Ciro Flamarion Cardoso, Emília Viotti da Costa, Anita Leocádia Prestes, entre tantas reflexões, tantas e tantas mais que já nem sei quais são quais e o que li. Não entrarei em pormenores nessa conversa, preciso beber alguma coisa. Mas os remédios não permitem, a preocupação não permite e minha fraqueza diante da vida, vendo a força diante da morte de uma Dora preparada para o derradeiro final com seus amigos olhando perdidos dentro de si... tudo isso não me permite descanso para a mente, só me espero como cinza um dia espalhado, o vento levando, pois a nenhum lugar pertenço mais e menos me sinto pertencente que não seja a solidão. 



Dos meninos dos trapiches lá do areal, de um Pedro Bala, um Professor, João Grande, o Sem-Pernas, Gato, o Volta Seca ou Pirulito... Estou longe o mais profundo em tudo desses personagens que com certeza ainda zanzam por aí. Estou longe em tudo: história, vida, sofrimento, sobretudo, da força que cada um carrega. Pois, eu estou dizendo: não se engane você, existem por aí muitos deles resistindo e dando gargalhadas. Dos meninos capitães do romance de Jorge Amado, eu sou areia, não sirvo nem para construção de um trapiche. 



segunda-feira, 18 de outubro de 2021

A solidão ou o que é amizade?

Faz tempo ou mesmo eu não vejo o tempo passar. Você vê? Não sei. O gato dorme aos meus pés e saí antes para fazer a barba, me relaxa fazer a barba. É um bom barbeiro, de lâmina e toalha quente no meu rosto. Calmamente depois de amaciar minha pele, a mesma toalha, já mais fria, cobre meus olhos e sinto a lâmina passar pelo pescoço. Faz tempo.

Era para estar por aqui conversando com você sobre Capitães da Areia, que já li novamente faz tempo. É, faz tempo. Mas não tenho tido forças e nem sei direito o que me move. Se eu pudesse nem me mover me movia. Ia vendo a barba e os cabelos crescerem com o tempo passando e quem sabe a morte chegando tranquila como o gato aos meus pés. Porém, o tempo passa lento, o gato perturba tanto quanto os mosquitos que chegam sem convite quando cai a noite.

Já li uns três livros alguma coisa de quê depois do Capitães da Areia e depois desses três comecei o ABC de Castro Alves, que sucede Capitães da Areia, sabe? Pois é. Faz tempo. Nem sei. Não me lembro bem, mas sei que decidi ler um a um, cada livro – e alguns ainda não tenho – de Jorge Amado na ordem cronológica dos lançamentos originais. Um a um. Mas nem isso me move. Nem a bicicleta me move. Fiz a barba pois estavam me incomodando os pelos do bigode entrando pela boca e, falo a verdade, me relaxa deitar na cadeira do barbeiro nessa cidade pequena que é grande que me faz lembrar da cidade onde eu nasci e ao mesmo tempo esquecer a cidade onde eu nasci... deitar na cadeira do barbeiro me relaxa, pois sentir a toalha quente sobre meu rosto, depois meus olhos vendados e a lâmina percorrendo meu pescoço, nem sei, mas me relaxa.

Não sei bem o que é amizade, acho que nunca soube. Sei que há por aí, espalhadas pelo mundo, tão perto, outros tão longe, umas amizades de contar no dedo. Mesmo assim não sei bem. Pois todo mundo tem problemas. Problemas com família, com dinheiro, consigo mesmo ou até comigo. Acho que às vezes sou um tipo de problema até mesmo para a minha mãe e o meu pai – que o que não vejo os guarde com saúde, pois nem sei, faz tempo e o tempo vai passando. Às vezes bate essa ideia torta que me balança: sou um problema para a minha mãe e para o meu pai. E pensando essa ideia, construindo, me bate forte uma ideia deles lá longe e eu aqui longe também e o tempo passando para todo mundo, já que o tempo passa mesmo. Mas é mais fácil lidar com o tempo passando, a saudade aumentando e a ideia torta crescendo feito barriga gestante, feito barba e cabelos ou crianças mal-educadas por parentes violentos e que se tornam crianças violentas. Ou um amor violento que considera fraqueza qualquer tipo de tristeza diante de qualquer tipo de tristeza, do que lidar com minha cara no espelho.

Faz tempo. Já nem sei. Não há grama mais verde no vizinho, não há nem grama. E não sei direito o que é amizade e por isso fico em silêncio com os pés quentes graças ao gato. Os pés quentes me dão a sensação de vivo, pois morto ou pessoa sem sorte tem pé frio. Não é? Nem sei.

Não pedalo mais. Não acho graça em sair. E se saio é coisa rápida ou mesmo forçado. Mas não pedalo e isso me dói. Dói tanto quanto ouvir de um amor violento que é frescura demais ficar triste pela tristeza. É a síndrome vazia na crença de que se você lida bem com os seus problemas todo mundo tem que lidar. Por isso mesmo me relaxa fazer a barba, a toalha quente sobre meu rosto como que me entorpecendo e de repente meus olhos vendados e a lâmina passando pelo meu pescoço aparando os fios meio brancos, meio ruivos para ficarem brancos da barba que cresce, pois os cabelos já estão grandes.

E todo mundo tem problema, eu sei. Até me satisfaz – não vou mentir – saber que tem gente por aí que lida bem com seus problemas. Mas me bate uma angústia danada e forte de saber que tem gente que só porque lida bem com seus problemas, se motivam num deus, numa santa, numa coisa que não sei o quê, na esperança de viver novamente com quem já se foi ou de ouvir quem já se foi... essa gente que se fia nisso, me angustia quando me falam é frescura, você é fraco. E me vem uma ideia torta – faz tempo, nem sei – de que sou mesmo fraco e, pior, sou um problema para a minha mãe e pai e para as amizades que – olhe lá – conto nos dedos. Eu que nem sei o que é direito amizade, acho que nunca soube e, talvez, nem essas amizades saibam o que é amizade: todo mundo tem problemas e por isso não dá tempo de pensar direito nisso, isso nem é problema, por que basta você ir sumindo e você percebe que ninguém vê ou na verdade você vai sumindo e estão esperando que você pergunte por que elas sumiram e todo mundo no fundo some porque todo mundo está esperando um telefonema, uma mensagem, uma carta de olá, como vai?, mas você, digo, eu, vou sumindo, pois veio essa ideia do amor violento: eu sou mesmo um estorvo, um problema e arranjo problema. E acho mesmo que o problema sou eu e se sou eu, não faz muita diferença ficar incomodando perguntando: olá, como vai?

Faz tempo. Nem sei. É aquela coisa meio chinfrim, você sabe? E vem quem é prolixo, vem quem é alto astral, vem que é do berço da sinceridade e quem quer te mudar o pensamento com frases de efeito: isso é frescura, ficar triste pela tristeza. Aí eu vou ficando em silêncio, vou ficando mudo e acho que mudo a gente vai diminuindo e sumindo. Mas é difícil ficar mudo, é um processo de treinamento e é doloroso.

Acho bonita aquela canção do Paulinho da Viola, Sinal Fechado, acho a letra bonita e é bonito como ele encaixa cada acorde naquela melodia angustiada. E vai sumindo.

Esses malditos mosquitos. Esses malditos remédios. Mas deve ser mais difícil para quem se mete a escrever poesia. Pois quem escreve poesia fica no dilema: dou para o mundo ler ou guardo para mim?

Eu, particularmente, não vejo sentido em poesia que não se dá ao mundo para leitura. Pois poesia quer palco tanto quanto quem pensa em dar cabo um dia dá cabo. Mas aí é ideia minha, ninguém precisa concordar, tanto quanto ninguém precisa chancelar poema como bonito ou feio. Poema é poema. E eu nem entendo direito de poesia, sei que há amores violentos como versos que se encaixam, como há também amizades que se perdem por a gente nem saber o que se tem.

Mas uma coisa é certa, todo mundo tem problema e o meu problema convém mais aos outros do que seus próprios problemas. Todo mundo tem uma solução para o meu problema, às vezes com uma carga tão violenta de certeza que chego a me envergonhar de ousar a falar do que eu julgo serem meus problemas – tem gente com problema pior que o teu! Fraqueza, frescura! – e por isso para quê ficar me expondo? Faz tempo e o vento vai mudando e o que é mesmo amizade? Talvez nem o gato esquentando os meus pés saiba dizer, se ele falasse.

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Mar morto, é o que há de ser

Mesquita, 24 de setembro de 2021, ouço pássaros, alguns sons vindos de alguma serralheria na cidade lá embaixo. No geral, você pode acreditar no que digo: o leve frio do início da primavera é agradável, o céu tem seu azul e o sol brilha manso agasalhando como pode quem na noite anterior dormiu ao relento debaixo de marquises, em bancos de praças públicas. A vida é o que há de ser, mesmo não devendo ser assim.

Publicado por Jorge Amado no ano de 1936 Mar morto deveria mesmo ter sido finalizada a leitura por mim, em seu conteúdo lírico, mesmo que trágico, em Salvador da Bahia, no aeroporto, lugar onde é normal lágrimas caírem dos olhos e serem naturalmente ignoradas como quem passou frio debaixo de marquises no frio carioca. No aeroporto de Salvador li o último capítulo. A potência narrativa da história narrada pelo eterno menino grapiúna sobre a saga de amor e perda entre Guma e Lívia, o cotidiano dos mestres de Saveiros, canoeiros... me balançou. Tremi. Temi.

Ouço o som do trem cortando Mesquita e seguindo rumo ao centro da cidade do Rio de Janeiro. Vidas e sagas de amor, fé, perdas e ganhos estão dentro daqueles vagões. Você pode não ouvir. Já passou. Volta o som da serralheria.

Temi talvez por motivos que nem eu saiba. Talvez pelo Mar morto de Jorge Amado, sua história ali narrada ser a história de muitos de nós: de amor e também de perda. Terminei de ler em Salvador, dia 22 de setembro de 2021. Chorei e solucei. Ninguém me viu ou ouviu. É natural.

O posfácio escrito por Ana Maria Machado li já em Mesquita, terra em que nasci. No mesmo dia de minha chegada que logo se converterá em partida. Posfácio curto, mas tão belo que me fez compreender que é o que há de ser. Ela me fez ver para além da tragédia. Que se pese ainda um pequeno adendo de Zélia Gattai Amado, na edição que repousará com as outras quando eu regressar à terra que não é minha. Edição cuja capa vermelha é ilustrada com fotografia de Marcel Gautherot, intitulada Festa de Iemanjá, Salvador, c. 1941. Zélia, parceira de aventura de Jorge Amado, companheira, namorada, musa, força motriz nos diz, logo após a página final do romance (272):

“Mar morto foi o primeiro livro de Jorge Amado que li. Li e adorei a história de amor passada no mar da Bahia, um romance de fazer sonhar, cheio de poesia. Eu estava longe de imaginar que um dia conheceria o autor, que por ele me apaixonaria, que seria por ele amada e que, juntos, viveríamos 56 anos de puro e verdadeiro amor. Eu, Lívia, nos braços de meu Guma, Jorge, com direito a brisa do mar e moqueca de siri-mole.

Mar morto foi o abre-alas, assim que terminei de ler fui em busca dos outros. A leitura de cada novo livro me emocionava, mas este, o primeiro, nunca perdeu o seu lugar de preferido.

Zélia Gattai Amado” (p. 273).

Cigarras cantam forte no quintal dos meus pais. Um dia, mesmo não sendo alguém do mar, voltarei para repousar eternamente nesse porto.

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

A angústia, o 7 de Setembro e Jubiabá

 



Se a tragédia se anuncia, eu realmente não sei. Mas crer é uma força que faço diariamente. Há tempos essa conversa vai guardada dentro de mim, embrulhada, pronta. Solto por aí tardiamente – antes tarde do que nunca – mesmo que muita coisa deva ir com cada um de nós para o fundo do mar, às profundezas da terra, para o esquecimento eterno.

Não preciso recordar. São vivas essas palavras, vivas tanto quanto me mantenho de pé e seguindo.

A manhã pairava calma, mas desde muito cedo eu me angustiava. Um aperto no peito, sabe Deus o que era e o que é. Suava em ar frio e temia que naquela terça-feira, 7 de Setembro de 2021, de fato um golpe de mais retrocesso fosse dado. Via gente sumindo como eu li nos livros e expliquei nas escolas. E a manhã pairava calma, mas eu angustiado.

O velho me sorriu, um dia há de me ralhar para me acertar um caminho torto aqui ou acolá, mas me sorriu, ofereceu água, café, me perguntou como eu andava e olhou nos meus olhos sôfregos ao perguntar. Não menti, não sou pessoa de mentir o que não posso. Fiquei em silêncio e dei um riso tão sofrido quanto meus dois olhos que não sei bem a cor.

Ouvia meu nome completo sendo repetido, o chocalhar dos búzios, meu nome completo sendo repetido, as palavras em um idioma que não conheço sendo recitadas. Como sempre eu buscava alguma coisa que não eram respostas, talvez perguntas que também nunca faço, nem peço por mim. Mas contava a contas, as moedas e as pedras sobre o pano no qual já se passaram muitos jogos e muitos destinos.

Tudo que ali foi dito, ali ficou mas vem comigo. E é só o que interessa até aqui. Naquela mesma manhã serena terminei Jubiabá, quarto livro de Jorge Amado.

Lançado originalmente em 1935, a edição, que desde o dia sete de setembro de 2021 adormece na minha biblioteca em casa, tem uma bela capa com uma fotografia de Marcel Gautherot: Barqueiro do Rio São Francisco, BA, c. 1945. Foto de uma década após Jubiabá ter vindo ao mundo. O posfácio é de Antonio Dimas, docente titular de Literatura Brasileira na USP, escrito em setembro de 2008 e dedicado à Myriam Fraga.

Jubiabá não fala sobre Jubiabá – pai de santo do Morro do Capa-Negro – o romance de Jorge Amado é sobre Antônio Balduíno de sua infância até seu abc vendido no Mercado. Sua força, andanças, amores...

Jubiabá esse livro que tem nomes, Candomblé, macumbas zunindo por todos os lados. Esse livro que tem palavras que a gente não entende por que não nos ensinaram, porque a gente estuda inglês na escola quando criança, e quando estuda, e quando é criança. Esse livro que fala sobre amizades, mortes e eternidade num abc.

Ainda caminho angustiado, ansioso. Só eu sei. Para alguns a vida é se tornar um abc, para outros, melhor o esquecimento. Mas: “Para que dormir nesta noite tão bonita?” (p. 302).

Lá se vão vários dias e eu não sei bem o que dizer. Tento fortemente o silêncio, me tento fortemente pelo silêncio. Há uma sensação em mim de que o falar, o meu falar só destrói. Tento fortemente o silêncio, pois não quero a eternidade de um abc como tanto sonhou Antônio Balduíno.


segunda-feira, 13 de setembro de 2021

O velho Timimo

Quanto tempo faz eu não sei. Falar sozinho – para todo mundo é coisa de louco. Mas quanto tempo faz, eu não sei.

Sei pouco do que vem antes.

Filho de uma branca com um negro. Seu pai certamente foi filho de ex-escravos, tenho quase certeza, hei de pesquisar.

Altamiro Gonçalves nasceu na região de Vassouras, meu avô Timimo. Meu vovô Tamiro.

Não sei bem quando migraram à Nova Iguaçu, também não me importa muito. Só sei que ontem sonhei com o velho Timimo, sapateiro que em sua pequena oficina no fundo de uma casa de vila, na Estrada da Água Branca, em Realengo, eu crescia nos recessos escolares para o carnaval carioca vendo-o produzir com as mãos, botas, sapatos dos mais diversos para passistas que desfilariam pela Mocidade Independente de Padre Miguel. No decorrer do ano, sobretudo, julho, “descia” de trem com meus pais para visitá-lo e passar bons finais de semana tendo sua mão na minha, correndo feiras de passarinho aos domingos e sendo apresentado como seu neto nos mais diversos botequins da região, mas principalmente no Vila, onde comi pela primeira vez ovo rosa e bebi malzibier. Ainda hoje, se sorvo um copo de malzibier, sinto meu avô, sinto o cheiro da cola de sapateiro, o vejo envergado com seus cabelos lisos e negros, seus óculos com uma corda preta, seu martelinho e tachinhas batendo em formas de sapatos. Pés de madeira que eu olhava com um olhar curioso. Mas nunca cheguei muito perto da oficina: “o menino tem a saúde frágil, o cheiro de cola faz mal”. Como se o cheiro de cola não impregnasse toda a casa numa mistura do cheiro de feijão preto bem feito de minha avó.

Vi meu avô com curiós, conversando com outros donos de curiós nas feiras. Vi meu avô jogando sinuca, magro, ossudo, olhar sofrido, mas com um riso que ontem me visitou em sonho. Um riso meia boca de quem até quer ser feliz quando via que tinha feito uma jogada bonita na mesa, mas que sabia que a vida lhe foi sofrida e continuava a ser.

Contava histórias. Visitava bastante a casa da minha mãe e do meu pai no morro da Chalet. Morro, dos muitos lugares onde viveu, em que ele mesmo morou com minha mãe, tias, tios, minha avó, muito tempo antes da minha memória. Quando mamãe conheceu papai. Muito antes de todos vocês e de mim.

Visitava muito. Sentava-se no sofá, tinha o hábito de colocar uma das mãos na testa como um pensador em sofrimento, cruzar as pernas num requinte das antigas. Quando morreu, minha mãe o via em mim, no cruzar de pernas ao almoçar no braço do sofá da sala – nunca gostei de comer em mesa: Ou era sentado no chão com um lençol forrado ou no braço do sofá.

Quando minha avó morreu, morreu por dentro meu avô. Minha mãe enfermeira acompanhou as mortes e de outros parentes. Minha mãe entende de morte e sabe sofrer as mortes. Sabe sentir o morrer. À minha mãe eu depositei sem pesar ou remorso o desejo que se eu me for antes – pois alguém sempre vai – que não haja enterro, que meu corpo seja cremado. Igual a ela, meu fim é organizado, passo por passo, documento por documento, seguros por seguros, conta por conta a pagar aos meus credores. Mas que me cremem a pele, os cabelos, os ossos. Quero ser pó o mais rápido, sem vermes me comendo. Sem velório desgastando o tempo. À minha mãe confiei, pois meu pai é medroso e não gosta do assunto. Não que eu e mamãe gostemos, mas sabemos e vivemos. Por isso nos desentendemos nos entendimentos mais do que eu e meu pai. O amor entre uma mãe e um filho não é igual a de um pai e um filho. Minha mãe sabe do diário com a foto do Aldir Blanc e o João Bosco nos anos 70, em sépia, na capa, o diário que não é diário, que escrevo a mão e onde ele estará quando da hora da minha partida. E nele há o que se fazer. O que quero e desquero. E minha mãe respeitará e se ela se for antes, deixará claro que o que eu quero, deve ser respeitado, pois minha mãe entende de morte.

Mas quanto tempo faz eu não sei. Sei que quando minha avó morreu, meu avô morreu junto por dentro. O câncer que já existia e vivia dentro dele quis sua parte. As histórias continuavam debaixo de um pé de mangueira no quintal agradável da minha tia Síndia e meu tio Expedito, irmã de minha mãe e irmão de meu pai. Eu e o Gustavo nos sentávamos para ouvir: seus roubos de pães no período em que serviu o Exército, seu medo de armas, suas histórias com a sinuca. Meu tio comprou uma mesa para seu tempo passar mais tranquilo. A morte vinha. Meu tio é como meu pai, teme a morte mesmo sabendo que ela é uma cobrança que não se adia, não se parcela.

Eu e meu primo Gustavo não sabíamos bem, mas o vovô Tamiro, o vô Timimo estava cada vez mais magro, não tinha muita vontade de falar dos passarinhos, ensinar sobre as tacadas na sinuca que meu tio comprou para ele. O câncer ia lhe tomando mais, tirando o que achava por direito tomar. Pois o câncer é assim, ele é seu, mas no fundo você é dele. Vencer o que é seu é complicado. Quando se vence passamos a não ter medo de não ter medo. Ou o pior: passamos a ter medo de não ter medo de nada. Quanto tempo faz, eu não sei. Um dia converso sobre isso, mesmo que falando sozinho.

Meu avô está deitado, o visito no leito do antigo Hospital Iguaçu. O prédio ainda existe, fechado. Um prédio histórico. Ao menos um braço e uma perna engessei ali na adolescência de traquinagem. Um dia eu converso sobre isso, mesmo que falando sozinho. Já não fala, meu vô. Nem conta histórias de tempos passados.

Meu avô, eu sinto, e hoje sei, sabia e tinha medo da morte, não o medo de não ter medo, como eu tenho, como eu sinto.

Naquele dia do leito, do Hospital Iguaçu, de entrar e sair do fusca que meu pai tinha, eu não sabia, mas foi a última vez que o vi. Ele se despediu com os olhos. Faz tempo. Não fui ao enterro. Fiquei na casa da minha tia e do meu tio com o meu primo. Eu tomando conta dele, ele tomando conta de mim. Não havia muitos amigos. Como hoje também não há. Somos os dois o que somos. Distantes e reflexivos. Ontem sonhei com o velho Timimo. Queria que ele tivesse me visto formado em História. Ele gostava de história e de ler. E tinha muita história por trás dos aros dos seus óculos e muita coisa por baixo das mãos marcadas com cola de sapateiro. Ele me levou ao SASE de Realengo para engessar meu braço esquerdo quebrado, traquinagem boba de menino que brincava só e inventava amigos. Levou-me pela mão, fomos andando da casa de vila até o SASE, ele contando histórias, eu sentindo uma puta dor. Mas ele sorria um sorriso de canto de boa, um sorriso que queria ser feliz, mas sabia que a vida era sofrida.

Hoje beberei um copo de malzibier e brindarei sozinho ao velho Timimo, meu vovô Tamiro, quem sabe até sorrio de canto de boca. Pois eu sei, a vida. A vida...

domingo, 29 de agosto de 2021

A vida que a gente não vê




Talvez, não sei, seja algo como resgatar um tempo de infância. Aquele tempo, você sabe, todos sabem, que escapa por entre os dedos como areia seca de praia.

Numa canção chamada “No Compasso da Mãe Natureza ou O amor, A pureza e a Verdade”, da banda pernambucana Cordel do Fogo Encantado, os versos seguintes ilustram um pouco essa conversa: Na velhice a infância é verdade/ E o compasso é da mãe natureza.




E o tempo acaba por ser tudo e muito. O tempo da infância um dia deu uma noção de eternidade e no futuro observa-se que ele passava mais acelerado do que o hoje que já chama de volta o amanhã.

Essa noção de tempo de infância, não sei, pois falo por mim, se concretiza muito nas brincadeiras, nos apelidos que vão se metamorfoseando, nas histórias que viram lendas e vão sendo aumentadas de mentiras descabidas e se firmam como verdades irrefutáveis. Nos apelidos e nas mentiras verdadeiras (ou aumentadas) para provocar o riso, desconcertar fazendo rir quem for o fruto do acontecimento aumentado em mentira – e todos nós temos e passamos por esse momento – está o tempo da infância.

Ouso ser ingrato, quem sabe, nem amigos somos, o que é bem infantil. É como aquele colega inseparável do colégio que o tempo da vida levou para outro lugar, rumo, país, futuro ou morte. Digo isso pois cada um no seu credo, religião ou ausência dela, problemas, trabalhos, família e amigos, deposita naquele momento, naquelas travessuras de desce morro, sobe morro, xinga um, xinga outro, o esquecimento do que está ficando lá atrás por algumas horas. É um esquecimento sadio. Nesse momento somos amigos de infância, inseparáveis, que passam por cima da discordância política, de educação, de fé. Não interpretem errado, não que ninguém se fale depois que a imersão em nós mesmos se acaba. Ou que em nenhum momento, mulheres, filhos, o cronograma da semana que já chama o relógio, seja tudo apagado, um por um, uma por uma das nossas mentes. Acho que apenas adormecem.

Mesmo que em alguns momentos a angústia da semana que passou ou a ansiedade da semana que virá venham à tona, a coisa passa rápido. Divide-se o que se quer dividir, se desabafa os dramas pessoais que se quer. Pois sendo crianças há uma inocência na traquinagem, uma ginga de rabo de arraia. O peido fedido. A risada. Se a Bolsa de Valores subir, que importa? Se a conta de luz veio alta, quem se importa? Naquele momento nada importa, pois voltará a importar quando tudo se encerrar. O morro ir ficando para trás na descida ou o suor escorrendo da testa testemunhando que tudo passa numa subida de ladeira alta. Se a Bolsa de Valores subir, importará na segunda para um ou outro. Se o Presidente da República falar mais alguma merda e alguém não achar que é uma merda o que ele defecou em palavras pela boca, importará na segunda... Mas no momento que se vive o tempo da infância, entre a noite de preparação do capacete, da bicicleta, da sapatilha, o café da manhã na madrugada e sair sem fazer barulhos... nesse momento de vivência  somos a infância e seu tempo. Somos o cotidiano quebrado de adultos que um dia pensaram que o tempo demorava a passar quando criança para se tornarem adultos sonhando em resgatar por algumas horas o tempo da infância.

Talvez, nem sejamos amigos. Pouco nos identifiquemos uns com os outros quando tiramos o capacete, os óculos, as luvas ou guardemos as bicicletas nos suportes dos carros. Talvez, nem nos reconheçamos se nos esbarramos na fila do pão, no caixa eletrônico. Porém, no fundo, no fundo, no tempo da infância, nunca houve amigos mais fiéis. E quem olha de longe pensa: “nunca houve amigos mais fiéis do que aquelas crianças com barbas brancas e princípios de calvície”. É a vida que a gente não vê é o “compasso da mãe natureza”.

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

O suor que escorria e escorre pelas ladeiras do Brasil

 




Talvez dizer que lá vem o Brasil descendo a ladeira não seja mais um axioma – por sinal, palavra bonita: axioma.

O Brasil já desceu há alguns anos ladeiras e ladeiras e não com alegria como quis Os Novos Baianos na conhecida canção. Politicamente, faz tempo, somos um país pobre de consciência social e o modelo dominantes (minoria) exercendo poder sobre os dominados (maioria) se manteve e mantém.

Assim como meu gato Gregório, um bom vira-latas adotado, descansa sob meus pés, mas de quando em quando observa pela janela, as/os personagens do velho casarão na ladeira do Pelourinho, número 68, parecem em alguns momentos estanques frente a realidade mórbida: só parecem.

As mulheres, homens, crianças vão se movimentando como a própria paisagem, mesmo que tal movimento me cause angústias tremendas: O mormaço doía como socos de mãos ossudas. Invadia o sótão e as pessoas.

Mesmo os animais não escapam: O gato ficava espiando junto da porta. Se o mormaço estava muito forte, descia as escadas sem se importar com os ratos que fugiam. Deitava-se então na relva do quintal perto das lavadeiras. Rolava na grama, brincava com bolas de papel e levava pontapés das mulheres de quem sujava a roupa estendida no quaradouro. Quando o sol vinha descendo e as luzes apareciam, voltava para o sótão, entrava no quarto pelo buraco da porta e esperava, atento aos passos.

Publicado originalmente em 1934, Suor, é o terceiro livro de Jorge Amado. Na coleção que leva seu nome, publicada pela Editora Companhia das Letras tem posfácio assinado por Luiz Gustavo Freitas Rossi. Por sinal, belíssimo escrito do antropólogo que em seu currículo possui o pertinente livro As cores da revolução: a literatura de Jorge Amado nos anos 30, publicado pela editora Annablume com apoio da Fapesp, em 2009 (esgotado na editora). Contudo, como é resultado de sua dissertação de mestrado, à quem interessar suas reflexões, segue o link do trabalho no repositório da Universidade Estadual de Campinas: http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/282026.

Não sei exatamente que voz ouço, mas o impacto de Suor em mim bateu forte. Firme. Que pesem as críticas que o futuro faria ao menino grapiúna – críticas sempre existirão. Mas digo em alto e bom som, com voz rouca, querendo ser operário, nem que seja das palavras escritas, mal escritas, que vale a leitura, mas entristece o peito a leitura.

Entristece, pois como conversamos, a lógica – ilógica – permanece. Dominantes e dominados, o suor escorrendo pelo corpo, a crise sanitária, a falta de oportunidades, as mazelas: o Brasil. Que pese quem tente exaltar as belezas – axioma – naturais do nosso país, a ausência de catástrofes naturais, guerras (não há guerras em nosso solo?), contudo, a realidade é mais dura. Há catástrofes todos os dias, provocadas pelos conglomerados, pela vitória constante de uma minoria que mantém em cabrestos a maioria, numa ignorância panem et circenses. E a guerra?

A guerra é cotidiana, pela vida, pelo trabalho, dignidade, a guerra é para muitos, a vitória, infelizmente, para poucos.

Não sei se há rancor na minha voz, se é perceptível o rancor, diria quase ódio ao passado que como um mormaço se mantém firme, estático no presente. Há. Sim, há rancor, ódio. Não por alguém, algo. A não ser que se entenda o passado como alguma coisa sólida, o que não é: o passado é passado. O que odeio é que ele permanece imodificável no presente.

O suor pode emanar por diversos motivos dos nossos corpos: o sexo, o medo, o trabalho, a morte e a vida. O suor nos salga a pele e quando não, pode até nos deixar em carne viva, morta como carne seca a ser comida com feijão.

O suor, o cheiro predominante de suor, mijo, merda, feridas, tudo está presente no Suor escrito por um Jorge Amado que naquele momento ia cada vez mais se estabelecendo numa luta inglória.

A capa, a bela capa, num projeto sobre uma foto de Pierre Verger do Pelourinho, Salvador, Bahia, parece reafirmar o que lhes digo: o passado parece ter estancado como o mormaço que produz o pior tipo de suor, aquele que – parece – impregnara para sempre nossos corpos passados e futuros.

Saravá, Jorge Amado, obá de Xangô, filho e ogã de Oxóssi!


segunda-feira, 9 de agosto de 2021

Continuando na seara de Jorge Amado

 


Há menos de um mês conversamos – nós e mais não sei quem – sobre o livro Navegação de Cabotagem, cuja publicação original foi em 1992. Desde que li este livro algo me tocou profundamente. Evidente que a obra literária (e de vida) do escritor baiano, eterno menino grapiúna, habita no nosso imaginário, sejamos de onde formos.

Desde então quis caminhar, melhor, trilhar na minha maturidade ou quase maturidade – neste momento, não faz sequer um mês dos meus trinta e oito anos completos em julho passado – a obra completa de Jorge Amado por ordem cronológica. Não é um objetivo tácito, algo coach: não consegui, sou um derrotado, não me organizei. Com o perdão da erudição mesquitense, Baixada Fluminense, andanças pela Chatuba: foda-se! Se eu conseguir até o final do ano fechar a leitura da obra inteira, bom, se eu não conseguir, bom também. Livros são feitos para serem lidos. Sigamos, sou um moleque de apostos. Sinto muito.

Finalizei os dois primeiros romances, O país do carnaval, de 1931 e Cacau, publicado em 1933. Não espere muito de mim, não quero ser erudito – ao menos que seja a erudição mesquitense – tampouco conversar de maneira profunda sobre o conteúdo dos romances. Quem quiser que leia e torço para que haja condições para tal. Permaneço, sem que seja propaganda, defendendo as edições publicadas na ColeçãoJorge Amado, da editora Companhia das Letras – e que são as que estou adquirindo de pouquinho em pouquinho. Os posfácios presentes em cada livro são de envergonhar qualquer fala minha, pois são fantásticos, o de Cacau, por exemplo, escrito por José de Souza Martins é uma aula que eu gostaria de ter condições de ministrar como professor de História que sou de formação e ganha pão numa Universidade Pública Federal no lindo e forte Nordeste do Brasil (não o digo Universidade Pública Federal por pompa, mas por orgulho e defesa do Ensino Público e gratuito para todas e todos).

Docente titular aposentado de Sociologia na USP, José de Souza Martins, hoje com seus oitenta e dois anos vividos, sabe do que fala em seu texto sobre o romance Cacau. Oxalá, meu camarada Carlos de Oliveira Malaquias, professor de História Econômica no mesmo departamento que o meu na Universidade Federal de Sergipe e que neste segundo semestre de 2021 eu terei a honra de dividir disciplina na Pós-Graduação em História, concorde em encaixarmos esse romance no debate com as pós-graduandas e pós-graduandos em formação.

Com meu camarada Malaquias, mineiro de Curvelo, teço sempre ótimas prosas, no passado regadas a cerveja e tragos de cachaça, sobre a característica ainda tão rural do nosso país. Outro mineiro que se chegou na minha vida, este de Ponte Nova, terra do grande violonista e compositor João Bosco, parceiro maior do meu mestre Aldir Blanc, o Guilherme Queiroz de Souza, professor de História Medieval na Universidade Federal da Paraíba, também tem ouvido muito meus “causos” sobre a empreitada de ler toda obra do grapiúna. Parece que fiz uma trinca de mineiros na minha vida. Um triangulo mineiro – péssimo trocadilho –, mas me parece isso. Primeiro, meu velho irmão de trincheira, conversas pelo Brasil afora, de copo em riste e às vezes os dois taciturnos de cabeça baixa: Leandro Duarte Rust, professor de História Medieval na Universidade de Brasília, nascido em Teixeiras, menino do sopé que olhava o mundo e seu o tempo no horizonte. A ele se somam os dois acima. E a vida segue.

Acho que era para falar sobre O país do Carnaval (cujo posfácio é de José Castello) e sobre Cacau, os dois romances. Não o fiz. Apenas deixo no ar, como crônica que não é para ser lida. Mas os livros e seus posfácios, estes sim, devem ser degustados como boa pinga, boa conversa e abraço amigo e apertado. Aquele aconchego do forno à lenha no frio e o café preto sendo passado ali, assim, ao vivo. Nós vivos.

Sigamos. Inicio Suor, originalmente de 1934.

Até.


quinta-feira, 15 de julho de 2021

NAVEGAÇÃO DE CABOTAGEM

 


Há tempos não ouço – ou talvez ouça demais – vozes para além da minha. Para bem de toda a verdade, ela existindo ou não, a voz de Jorge Amado, prestes a completar 80 anos, em 1992, quando foi publicada a primeira edição de Navegação de Cabotagem: Apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei, me acompanhou nos últimos dias. Claro, numa edição luxuosa, posfácio de Lêdo Ivo, edição comemorativa ilustrada com fotos, documentos, capa dura, publicada em 2012, pela Companhia das Letras.


Conhecia passagens do livro. Foi marcante quando publicado. Conhecia passagens do livro através de reproduções das memórias nele contatas em conversas de mesa de bar com um professor meu na faculdade de História – Jorge Amado ainda estava vivo (apesar de ainda estar vivo) quando eu ingressei no vestibular.


Mas nunca li por inteiro um romance desse ilustre baiano das terras do cacau. No máximo, uma passagem aqui, outra acolá nas aulas de literatura no Segundo Grau, hoje, Ensino Médio.


Comprei Navegação... ironia do destino, duas vezes. A primeira é mais importante, numa pequena e resistente livraria-vende vinis e cds na Rua Fonte dos Bois, no Rio Vermelho, em Salvador. Por sinal, bem próximo da famosa casa da Rua Alagoinhas, número 33, no mesmo bairro. Disse que comprei duas vezes. Sim! Não pestanejei quando vi num site desses conglomerados que estão afundando essas pequenas livrarias-vende vinis e cds. Quando a caixa chegou (o livro é o que chamamos de um verdadeiro caramalhaço – vida agitada a de Jorge) me dei conta que já tinha uma edição verdadeiramente baiana, soteropolitana, banhada de dendê. Como livro não se vende quando já o temos, dei de presente para um amigo.


Apaixonado fiquei. Li degustando, fechando os olhos, relembrando depois que fechava a capa dura. Deitava-me na cama e nas minhas insônias recorria às lembranças e histórias de Jorge Amado pelo mundo, por Sergipe, pelo Rio de Janeiro, por Salvador, pelo Brasil afora.
Atrasava afazeres, aumentava as horas só para ler mais e mais, mesmo que já soubesse o fim do livro. Todo livro de memórias de um já morto que continua vivo é duro de se ler, acredite você que me ouve. Mas a navegação, ou melhor, o mar que navegamos a cada parágrafo do Seu Jorge Amado faz ou refaz-nos entender o Brasil de ontem e de agora. Coisa dura de se enfrentar: a realidade do ontem continuando no amanhã que é hoje.


Decidido coloquei as mãos nas parcas economias, afinal, como diria a economia: livro é coisa de gente rica. E por ordem cronológica de publicações de seus livros decidi comprar as edições – sorte a Editora Companhia das Letras ter uma coleção intitulada JORGE AMADO, cujo Conselho Editorial é composto por Alberto da Costa e Silva e Lilia Moritz Schwarcz (quem tive a oportunidade de assistir alguns cursos quando de viagens como estudante de História e também já graduado).


Assim que me refiz do fim do livro de memórias de um homem prestes a completar seus 80 anos e que passaria oito anos depois, às vésperas de completas 89 anos de idade, em 2001, me surpreendi. Que vida! Que final de livro.  Surpreendeu-me pela candura como se encerra.
Assim, hoje, 15 de julho, iniciei a leitura do primeiro romance do jovem de 18 anos – O país do carnaval – publicado em 1931, antes mesmo dele completar seus 19 anos, mas já atento às mazelas desse grande pedaço de chão que chamamos – ou chamaram por nós – de Brasil. Salve Jorge, que sejas sempre amado. Axé!

segunda-feira, 7 de junho de 2021

Fluxo de pensamento e bits

É evidente que não devemos falar aquilo que pensamos no instante que pensamos, deve haver um filtro – provavelmente a Ciência já deva ter estudado isso no nosso cérebro – que segure a junção das palavras até que forme uma oração.

Nota mental: fluxo de consciência é em Literatura, no fazer literário, resumindo didaticamente, o pensamento de um personagem sendo descrito pelo narrador enquanto o pensamento ocorre, algo assim. A escritora Virgínia Wolf tem muito isso em seus livros (ao menos é a que li). Em nossa língua, posso dizer de carteirinha que o grande alagoano Graciliano Ramos e o mineiro Guimarães Rosa, faziam como ninguém Fim da Nota mental

Voltando ao que eu chamei de “fluxo de pensamento” – que é quase a mesma coisa que o tal do fluxo mental. É preciso tomar cuidado com essa merda, se não você acaba se tornando um presidente de uma república federativa, cuja Democracia ainda é jovem demais e você se enrolará nos seus fluxos e refluxos, demorará a responder e-mails, enfim, vai fazer merda. Por isso mesmo, se você me ouvir bem, você aí que acha que está lendo, mas na verdade me ouve com sua própria voz, me escute bem: há um lapso entre o que eu penso e o que eu falo. Um lapso grande. Por isso contarei um causo. Gosto de causos em prosas.

O Teixeirinha é um grande amigo meu, um dos melhores, dou meu braço esquerdo pelo Teixeirinha e sou canhoto. Ele gosta de correr, acho que resolve lá seus problemas correndo. Eu acho um saco correr. Mas entendo. Eu por sua vez, pedalo. Hoje, segunda-feira, o dia mais temível da semana – sempre odiei segunda-feira e curiosamente nasci numa – após os afazeres do trabalho fui pedalar no rolo fixo com minha querida Prozac (uma Caloi Comfort 500, ano 2013, modificada em suas peças de fábrica, original, só o quadro, os freios e as rodas). Enquanto me preparava para começar meu exercício do dia, me veio à mente o Teixeirinha e certa vez que ele esteve aqui em casa, fumamos muito charuto e bebemos muita cachaça e ficamos analisando bateristas. Revimos uma três vezes, talvez cinco, um vídeo de análise com partitura das levas de John Bonham, baterista do Led Zeppelin.

Teixeirinha, assim como eu, teve aulas de música quando garoto e sabe lá seus solfejos. Estudou clarinete. Mas diz que queria muito, muito aprender bateria. Curioso que o primeiro contato que todos nós temos com a música, acho que todos, sem sombra de dúvida, é com o batuque de alguma coisa, nem que seja com a testa no chão. Eu por exemplo, história mais que verdadeira e foi o que levou minha mãe a me matricular em aulas de música, é que quando vi o show do Nirvana, em 1993 pela TV e os caras quebrando tudo, pensei: “Putz, isso é rock!”. A coisa ficou estranha em casa. A caixa estourou quando em 1996 comprei com minha mesada o Cd “Roots” do Sepultura e comecei a juntar panelas e tampas, colheres de pau e montei uma “bateria” e “ensaiava” quando chegava do colégio, lá por voltas das 13:00. Minha mãe estava sempre dormindo, pois seus plantões nos Hospitais eram noturnos. Não irei longe. Nunca fui baterista. Fui estudar violão e instrumentos mais “melódicos” na mentalidade da minha mãe.




Se você cresceu entre os anos 80 e 90 com certeza ouviu Phil Collins. Na sua biografia “Ainda estou vivo: uma autobiografia”, Rio de Janeiro, Editora BestSeller, tradução de Phellipe Marcel, 2018 [original: “Not Dead Yet”, de 2016), por sinal, baita livro, o músico no prefácio escreve duas coisas que me marcaram muito e repito em voz alta o que li: “[...] como trabalhei! Se você consegue se lembrar dos anos 1970, certamente não esteve em tantas turnês do Genesis quanto eu, Tony Banks, Peter Gabriel, Steve Hackett e Mike Rutherford. E se você se lembra dos anos 1980, peço desculpas por mim e pelo Live Aid.”


Algumas linhas se seguem e ele finaliza o prefácio e já dá a dica que os compassos dos capítulos que compõem o livro serão frenéticos, leio em voz alta, mais uma vez: “Fui tocado pela morte quando meu pai faleceu, justamente no momento em que a decisão de seu filho hippie de trocar uma vida segura por uma vida na música começou a render frutos. Também fui atacado quando, no curto período de dois anos, Keith Moon e John Bonham morreram, ambos aos 32 anos. Eu os venerava. Lembro de ter pensado, na época: “Esses caras deveriam durar para sempre. São indestrutíveis. São Bateristas.” Meu nome é Phil Collins, sou baterista e sei que não sou indestrutível. Esta é a minha história.”.
Enquanto eu pedalava, uma hora cravada, ouvia o primeiro disco solo do baterista que virou cantor e que tem como pérola a frase: “I’m not singer who plays a bit of drums. I’m a drummer that sings a bit.”


O disco terminou. Como eu usava streaming, joguei para o EP da banda em que seu filho Nic Collins é baterista e um grande baterista!

O coração é ritmo. Pedalar é ritmo. Correr é ritmo. Caminhar é ritmo. Viver é ritmo.

sábado, 5 de junho de 2021

Sábado de Aleluia

 


Não sou cristão – ao menos em credos e práticas –, mas, quase inevitavelmente, nascido num país colonizado por europeus católicos que dizimaram com a catequese católica os índios e suas muitas línguas, escravizaram nações negras da África podando suas religiões, idiomas, tanto quanto o protestantismo em suas muitas variantes... como você pode ouvir, é praticamente quase inevitável sendo um ocidental não ter o mínimo do moralismo cristão – e toda religião tem seu moralismo, seus ismos ideológicos.

Hoje chove forte, chove fraco, é um chove não molha chato em Aracaju. Você não pode ouvir, mas ouço um cd – sim um compact disc – de 2000 que comprei no Norte Shopping, nas Lojas Americanas. Início dos anos 2000. Lembro-me como se fosse hoje, mas é outra conversa. Chove e é sábado, Sábado de Aleluia.

Tenho tido sonos agitados, os médicos vaticinam que são efeitos do uso contínuo das medicações. Os doutores sabem o que dizem. Confio.

Ontem, Sexta-feira Santa, tive reunião sobre um Dossiê que estou coordenando com o Teixeirinha para uma revista acadêmico-científica. Às 16:00 horas em ponto conectamos essa coisa de vídeo conferência, ele de lá e eu daqui. Na verdade, sempre foi assim. Oxalá, como Aldir Blanc e João Bosco que fizeram tantas pérolas por cartas e fitas cassetes indo do Rio de Janeiro para Minas Gerais e mesmo quando afastados estavam juntos, eu e ele possamos continuar bem assim. De qualquer maneira, ouça bem, nunca é uma simples reunião de trabalho, sempre há algo místico e intelectual na prosa, seja sobre Os Trapalhões ou algum causo antigo da infância vivida há léguas no interior de algum interior.

Contei-lhe de um trecho estranho de sonho que tive na madrugada, era toda a passagem do Gólgota, mas o que salientei foi: “Bicho, me chamou atenção no sonho que eu via Jesus indo ao inferno no intervalo pós-crucificação/morte e ressurreição. E já li a Bíblia em tantas versões na minha vida. Cara, não lembro se isso está em algum dos quatro evangelhos.”. Batata! Bastou! O Teixeirinha se levantou da cadeira e foi buscar na sua vasta biblioteca e foi a folhear: “Não, bicho. Tem não! Acho que tem no credo católico isso, a coisa mais como um dogma. Mas bíblico não parece ser, não parecer ser evangélico” (evangélico aqui é o termo técnico para nos referirmos ao conteúdo bíblico, dos quatro evangelhos, os livros. Assim como escritos mosaicos estaria referido aos livros vinculados a Moisés. Fica aqui a informação). Insisti.

“Velho, talvez no Apocalipse”. E ele: “É. Ah, bicho, não vou ficar com essa dúvida, vamos ver aqui” – e foi. No final das contas, havia uma passagem, mas não exatamente explícita de “ida ao inferno”, mas algo sobre deter as chaves dos portões do inferno. Começamos a reunião.

Ao término da reunião, a noite cobria a sala do pequeno apartamento em que moro e o sol se punha na janela lá no Serrado. O Teixeirinha avisa: “vou tomar uma garrafa de vinho inteira que está gelando desde meio dia. Mas deixa eu te perguntar, quando você pedala ouve música?”, respondo que não. “Nem indoor?”, sim, aí ouço. “O quê? Há algo específico?”, confesso que vindo do Teixerinha, algum motivo havia de profundidade fraterna na pergunta, sugestiva, não sei, mas havia.

Expliquei que dependia do dia, da noite que tive, do meu estado de espírito, do que eu me propunha com a pedalada indoor. Aprofundei superficialmente a prosa – os mosquitos estavam me carregando – que às vezes até estudava música enquanto pedalava no rolo fixo: “Coloco a partitura na minha frente e pratico solfejo”. Ele sorriu.

Deixei de fora, infelizmente, isso aqui, essa conversa que estou tendo com você. Pedalo para dar voz aos pensamentos através das muitas vozes que tenho vontade de colocar para fora e o faço quando dá aqui n’O Ventríloquo. Mesmo no Strava – aplicativo muito utilizado, principalmente por ciclistas e corredores – deixo fragmentos do que chamo de “CRÔNICA QUE NINGUÉM LÊ”. Acho que o Teixeirinha também corre um pouco para isso ou pelo menos desenrolar um trecho de vazio documental aqui, outro acolá. Esvaziar a cachola da mente. Eu acabo preenchendo e tendo que falar. Sábado de Aleluia, não é isso?

Pouco tempo depois chega uma mensagem do Teixeirinha, com uma indicação de uma música chamada “Claudeland”, da banda – que eu não conhecia – Highly Suspect.

E como de sempre um afetuoso “Abraço”.

É: “Dance, dance, dance motherfucker, dance, motherfucker. Just dance. Dance the night away...” 

sexta-feira, 28 de maio de 2021

Os diários publicados de Kurt Cobain (Editora Belas Letras, 2021)


 

Mesmo que pareça, isso não é uma resenha. Minha voz soa um tanto rouca – talvez pelo excesso de sorvete de menta com chocolate ou mesmo por, em meio a pandemia de COVID-19, lecionando remotamente do pequeno apartamento alugado, esquecer de beber água enquanto falo sobre História Medieval para docentes em formação. Ontem terminei após três dias as 591 páginas da edição em língua portuguesa publicada neste ano de 2021 pela Belas Letras, Editora de Caxias do Sul, RS, com tradução de Fernando Scoczynski Filho.
Intitulado “Kurt Cobain- Diários”, a leitura é pesada, afinal, são escritos retirados de diários. A organização é interessante, mesmo que, enquanto historiador de formação, eu esteja habituado com isso: de um lado os manuscritos – fotografados/escaneados/fotocopiados, como queiram – e do outro a tradução à nossa língua (não tenho conhecimento da edição original cujo título é “Journals”, certamente, seguiu essa linha). Não quero falar com você sobre conteúdo. Kurt foi um artista, mas acima de tudo: uma pessoa. Basta uma busca pela Internet e você poderá ter suas próprias conclusões sobre seu trabalho musical – se bom ou ruim – e, se se achar no direito, tecer suas conclusões vazias sobre a personalidade de um jovem de 27 anos que se suicidou com um tiro de espingarda no queixo na estufa de plantas de sua casa, em 1994. Eu ainda tinha 13 anos de idade e o show do Nirvana um pouco mais de um ano antes, no Hollywood Rock, no Rio de Janeiro, transmitido ao vivo por uma grande rede de TV, ainda era um forte impacto na minha cabeça. Não, não é um trocadilho com o impacto do projétil na cabeça do jovem Kurt. Nunca busquei fotos macabras da cena do suicídio e demorei muito para ler na íntegra sua carta final (que, FELIZMENTE, não está presente na publicação “Diários”.  O que não deixa de ter lógica, afinal, trata-se de uma carta de suicídio – não publiquem cartas de suicídio, a Sociedade de Psicologia agradece, abutres. Tais documentos só têm validade se manuseados – no meu ponto de vista – historicamente, sociologicamente, antropologicamente. Como me esquecer do que senti numa aula de História da antiga 7ª Série ginasial a carta-suicídio de Getúlio Vargas, a frase de efeito: “Saio da vida para entrar na história” me assombrou durante meses. Que ironia).
Por sinal, um parêntese, disse que sou historiador de formação, sim, é verdade e me veio na lembrança uma pichação que li a caminho da faculdade, não lembro o ano, deveria ser nos primeiros períodos, pois ainda ia de ônibus (depois meu pai me liberou o carro): “É melhor queimar de uma vez a se apagar aos poucos”. A frase que se tornou lendária, pois foi citada na carta deixada por Cobain, na verdade, é um trecho de uma canção de Neil Young, chamada “My My, Hey Hey (Out Of The Blue)”. Quem pichou o muro, ali, na altura da Praça do Canhão, em Realengo, Zona Oeste do Rio de Janeiro, onde está a Estação de Trem, o pequeno viaduto, um complexo de quarteis do Exército, casas de subúrbio e por onde passava meu ônibus Nova Iguaçu X Bangu, talvez não tivesse essa informação sobre ser uma citação. Eu não sabia. Soube quando no mesmo dia entrei no laboratório de informática da Universidade, acessei a Internet e “descobri”. Fim.
Como eu disse – acho que você ouviu bem –, terminei ontem o livro “Diários”. Escolho mal minhas leituras quando não estou bem psicologicamente. Já disse isso outras vezes, eu sei. Sou repetitivo. Acho que já conversamos sobre isso a respeito d’O Processo de Kafka.
Diários são materiais importantes. Eu tenho um diário. Não, O Ventríloquo não é um diário. Por mais que possa parecer que eu reparta com você minha vida, são vozes que sei imitar, vozes que sei colocar para fora sem que você perceba meus lábios se movendo. É assim desde 2007. Mas, eu tenho um diário. Escrevo a mão. A capa é linda. Ele foi feito artesanalmente pela Aline Viana, acho que ela tem uma conta no Instagram chamada Miçanga na Praia e vende esse material. A arte dele [o meu diário] é uma fotografia em sépia do Aldir Blanc com o João Bosco tomando cerveja num botequim no Rio de Janeiro e na contracapa os dois de pé, foto em preto e branco, na porta, acho, do mesmo botequim. Elas são do período de lançamento do Lp Galos de Briga (1976).
Ontem escrevi nesse diário. Apesar de ser um diário, não escrevo diariamente. Mas como havia terminado de ler o livro – do Kurt Cobain? Livro? – fiquei pensando nas últimas páginas escritas, sobre vício em heroína, sobre o que viria ser o último trabalho de estúdio do Nirvana, o Lp “In Utero” (1993), o impacto na mídia, sua ira etc. Antes de dormir, ouvi via streaming o material. “In Utero” de fato é um bom trabalho artístico, mistura bem o que foi o primeiro Lp “Bleach” (1989) – meu preferido – com o que alavancou a banda para o cenário mainstream, o conhecido “Nevermind” (1991). Tenho a discografia completa em Cd e alguns Lps da banda. Em Cd as versões são todas remasterizadas e Delux, comemorações de 20 anos de lançamentos. Dei as edições antigas para amigos.
No fundo, numa sexta-feira como essa, numa sexta-feira de final de maio, 28, nem sei por que estou conversando, falando. Talvez eu esteja meio zonzo ainda. Não sei. Continuo. Sigo.
Recordei-me, ou encaixou melhor, a biografia que li da banda tempos atrás, escrita por Michael Azerrad, intitulada “A História do Nirvana – ‘Come As You Are’”, tradução de Júlio de Mattos, Editora Madras, 2008 [original de novembro de 1993, nos Estados Unidos] e, também, o excelente documentário “Cobain: Montage of Heck” (2015).
Os antidepressivos foram fazendo efeito no meu corpo. Ainda com certo tempo de tirar os fones dos ouvidos após a audição de “In Utero”, fiz o download na plataforma de streaming do show “Live and Loud” gravado pelo Nirvana no dia 13 de dezembro de 1993 e cujo DVD minha mãe me presenteou na última vez que visitei o Rio de Janeiro, em 2019. Fiz meu exercício matinal no quarto onde tenho estudados nos últimos meses obras de Bach no piano da Roland e ouvi offline “Live and Loud” e só parei de pedalar quando a última canção “Endless, Nameless” terminou.
 
Ps. Como comprei o livro em pré-venda no site da Belas Letras, recebi algumas memorabilias como o manuscrito em folha separada da letra da canção “Lithium”. Música número um no meu setlist de fã do Nirvana e se o post scriptum pode ser mais longo, a bicicleta mais cara – no sentido monetário do termo – que tenho, dada de presente em outubro de 2019 pelos meus pais, foi batizada justamente com o nome da canção. Lítio é uma medicação ambulatorial para transtornos mentais, como bipolaridade, por exemplo. Infelizmente, em determinando momento da vida, tanto eu quanto minha mãe tivemos que ser tratados, não ao mesmo tempo, é claro, com essa medicação.

quinta-feira, 27 de maio de 2021

12 anos de Universidade Federal de Sergipe

Universidade Federal de Sergipe - Campus São Cristóvão




Dia 27 de maio de 2009, uma quarta-feira. Eu e mais umas duas pessoas aprovadas em concurso público de provas e títulos, assinávamos o Termo de Posse como Servidores Públicos Federais, novos docentes. Eu havia chegado no domingo, dia 24 de maio, meus pais me levaram ao Aeroporto Internacional Antônio Carlos Jobim, o Galeão. Meu pai me abraçou e apertou minhas mãos olhando com seus olhos verdes, querendo chorar, nos meus castanhos escuros já chorando. Minha mãe me abraçou e chorou, disse algo quase sussurrando no meu ouvido, que nunca me esqueci e mantenho firme, gostem ou não de mim. Ela disse assim: “Nunca esqueça de onde você partiu, não esqueça tudo o que você lutou para chegar aonde chegou, mas principalmente, de onde você é, quem você é, onde é sua casa, onde você nasceu.”
Nasci no dia 18 de julho de 1983, às 06:20 – em ponto – de uma tarde chuvosa e fria, em Mesquita, Primeiro Distrito do Munício de Nova Iguaçu. Parto normal e rápido. Meu pai trabalhava no comércio, em Madureira, numa rede chamada Papelaria América, entrou como auxiliar de serviços gerais e aos poucos chegou a Gerente de uma das filiais, passou por várias, Rua Uruguaiana, no Centro do Rio de Janeiro, Rua da Alfândega, Cascadura, Nilópolis... Minha mãe foi auxiliar de cozinha, trabalhou com faxina em casas de gente rica, oriunda ainda naquela época da aristocracia iguaçuana e que nos anos 90 migrou para a Barra da Tijuca, Recreio dos Bandeirantes... Morávamos num sítio enorme, as terras eram baratas em Mesquita nos finais dos anos 70 e início dos anos 80, a casa era “bem ajeitadinha”, segundo conta minha mãe. Era uma casa de estuque, o que chamamos aqui em Sergipe de “casa de taipa”. Não havia luz elétrica, uma pequena televisão de imagem preta e branca conectada numa bateria de carro não me chamava atenção. Eu gostava de ficar no chão da casa brincando com bonecos, trecos de todo o tipo, ou correr entre as plantações de cana, café, pés de jaca, manga espada e carlotinha. Havia muitos abacateiros também, além de araçá e goiaba (branca e vermelha), isso quem conta é meu pai. Essas minhas incursões me renderam quase morrer afogado numa fonte que havia ao lado de nossa casa, o que me salvou foi o instinto rápido de minha mãe e as várias vitórias-régias e um velho que não lembro o nome – depois ligo para o Rio de Janeiro para perguntar – que tinha um sítio vizinho ao nosso e capinava seu terreno no outro lado da cerca de arame. Eu tinha problemas de saúde: não peguei peito, logo não mamava leite materno, não comia direito e o ambiente era muito frio no inverno e no verão mesmo que o sol não fosse algo diretamente chocante, as muitas árvores e a mata atlântica oriunda da Serra do Mendanha que é todo um maciço que circunda a geografia entre Baixada Fluminense e Zona Oeste etc. tornava a necessidade de respirar complexa para mim. Na verdade, a geografia do Estado do Rio de Janeiro é fantástica, a própria capital tem um quê de charme medonho: uma cidade espremida entre as montanhas, morros e o mar. Com quase dois anos de idade completos, meus pais e tios (irmão do meu pai casado com a irmã da minha mãe) que também moravam no grande sítio, aonde também residiam minha avó paterna e seus dois filhos: um tio mais novo e uma tia doidona mais velha que até hoje não fala com o restante da família, compraram uma casa – mais abaixo da montanha. Mudaríamos então para o Morro da Chalet, n. 300, hoje no bairro Santa Terezinha, no agora munícipio de Mesquita. 12 anos. E ainda tenho sotaque. 12 anos e ainda sinto o cheiro das árvores no quintal da minha infância. 12 anos e não vejo muito sentido em tudo que fiz para chegar aonde cheguei, mesmo chegando. 12 anos e aprendi que assim como a força do amor da minha mãe e do meu pai, proporcionalmente, eu não sabia, quando via minha – já formada – enfermeira, trabalhando para o SUS, se doando, ganhando pouco, com o branco do uniforme com gotas de sangue que não eram seu – que o ódio, inveja, rancor, contra Servidores Públicos iria me fazer o mesmo mal que fez à ela, levando-a ao poço da depressão, aos remédios, psicólogos, psiquiatras. Sigo o mesmo caminho, mas ao menos ainda há a Prozac. Quando converso com minha mãe e questiono se não há um excesso de drama, sua firmeza e sutileza de quem nasceu em Marechal Hermes, subúrbio do Rio de Janeiro, viveu a infância em Cabuçu e Mesquita, ela me aconselha: 
se disserem que você está fazendo drama ou é fraco: Manda se foder”.
 

quinta-feira, 20 de maio de 2021

Certa manhã acordei de sonhos intranquilos


 
Chove. 06:00AM. Ponto. Estou quase terminando os diários do compositor e cantor estadunidense Kurt Cobain. 06:00AM em ponto, tive insônia. Para dormir ou tentar me acolher nos braços de Morfeu resolvo ouvir dois cds que me foram muito importantes, os dois do percussionista, compositor e cantor (e às vezes ator de cinema) pernambucano Otto: “Samba pra Burro” (1998) e “Certa manhã acordei de sonhos intranquilos” (2009).

Em meio a madrugada chuvosa, o ar-condicionado sempre em 20 ºC, enviei uma mensagem de texto compartilhando a canção “Bob”, faixa 1 do cd de 1998 para meu primo Gustavo Gonçalves Alvaro, no Rio de Janeiro. Prontamente, o que é raro, ele respondeu: “Caralho, moleque, estava ouvindo esse cd anteontem”. De fato, em meados da década de 2000, íamos muito, ele, eu e mais gente e pelas madrugadas nos sentávamos no fim da tarde na praia de Copacabana. Copacabana assim como a Avenida Paulista: nunca dorme. Nós também não dormíamos.


Clipe da música "Bob"


As músicas terminaram, o sono não veio. Os remédios devidamente tomados. Seria talvez alguma ansiedade? O impacto da letra manuscrita de Kurt Cobain em inglês escaneada de um lado e suas impressões angustiantes sobre si e o mundo postos em minha língua materna? Lembrei do cd de 2009 do Otto. Ainda de fones de ouvido o coloquei para tocar, como o ouviria mais tarde ou agora enquanto vocês me ouvem quando acabei de pedalar dentro de um quarto pequeno em minha bicicleta com pneus slicks aros 26. Caminho – não de um lado para o outro, não chego a tanto – inevitavelmente por corredores de minha própria mente e busco lá no fundo, não que eu não soubesse, que não fosse conduzido como numa hipnose, já que eu havia escutado recentemente, e ouço como fã de carteirinha, o programa do Canal Brasil e também transformado em podcast “O Som do Vinil” com o ex-baterista do Titãs e pesquisador musical Charles Gavin, sua conversa com o Otto sobre o cd de 2009 e o impacto que essa obra artística teve (não vejo outra expressão)... Enfim, o próprio Otto deixa claro, o título do disco faz referência ao livro “A metamorfose”, de Franz Kafka (Link do Episódio no Spotify).


Gosto muito da edição que tenho traduzida pelo Modesto Carone, cuja edição publicada pela Companhia das Letras data de 1997. Em sua 22ª reimpressão, de 2009, já amarela na estante e tirei a poeira para deixar como posfácio ao que vocês não ouvem as frases kafkianas iniciais do livro e a primeira vez que se ouve a voz de Gregor Samsa na narrativa (p. 7):

“Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranqüilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas uras como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo do qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha. Suas numerosas pernas, lastimavelmente finas em comparação com o volume do resto do corpo, tremulavam desamparadas diante dos seus olhos.

– O que aconteceu comigo? – pensou.

Não era um sonho. Seu quarto, um autêntico quarto humano, só que um pouco pequeno demais, permanecia calmo entre as quatro paredes bem conhecidas.”
 
Obs. Mantive tranquilo grafado como publicado na edição que tenho em mão, naquela altura o famoso acordo da língua portuguesa ainda não havia sido assinado. Linguiça era lingüiça, tanto quanto tranqüilos se mantinham os porcos que hoje continuam tranquilos.