Eis
que estou aqui. Pois fugir de si mesmo quando nos olhamos no espelho é
impossível. Mas eu sentia que faltava alguma coisa e mesmo que eu já não veja
sentido, ao menos que eu me esforce para dar sentido ao que comecei. Já
conversei com você há tempos sobre Capitães da Areia, publicado
originalmente por Jorge Amado em 1937, livro que sucede Mar Morto e antecede
ABC de Castro Alves. O que eu te disse, continua valendo, porém, veja
bem, se me prontifiquei a dar sentido à coisa toda, devo dar sentido. Faltava
algo. E em meio aos turbilhões da minha mente, como vastos cachos de uma
cabeleira esparsa ou mar de viração: encontrei.
Já
estava lá há semanas. Um quê qualquer de presságio não me deixou fazer o que eu
queria. E eu gosto de liberdade. Faltava a foto da capa do livro na edição de
2008, com posfácio de Milton Hatoum, com capa azul céu (ou mar) sobre fotografia
intitulada Jogo de Capoeira, de Marcel Gautherot. Tirada em Salvador, c.
1940-5, é uma obra de arte. Mas faltava a minha própria foto do livro como
um todo. Encontrei.
Dedicado,
entre outras pessoas, à Anísio Teixeira, Capitães da Areia é um dos
romances mais conhecidos de Jorge Amado, seu sexto para ser mais exato. O ano
de 37 do século XX marca, também, a perseguição de Getúlio Vargas aos
comunistas e os livros de Amado sendo censurados e queimados em praça pública
na sua adorada “cidade da Bahia”, Salvador. Entre as cinzas se formando no
ardor da fogueira estavam as páginas do recém-publicado Capitães da Areia.
Li
quando menino a história de Pedro Bala e seu grupo tão variado. Não tão menino.
Li adolescente. Alguns anos após a chacina da Candelária, que ocorreu aos pés
da famosa igreja carioca, na noite do dia 23 de julho do ano de 1993.
Coincidentemente, no acervo da Fundação Casa de Jorge Amado, em Salvador, há
uma carta do autor emitida do México para Anísio Teixeira, em 26 de julho de
1937, informando ao intelectual, entre outras coisas, que para o fim do mês
seguinte seria lançado seu último romance e que ele seria dedicado à Teixeira “em
sinal de admiração, amizade e gratidão” (ver carta no anexo final da edição
de 2008 da Coleção Jorge Amado – Editora Companhia das Letras). Datas próximas,
anos distantes. Mas adocica um pouco nossa prosa, mesmo que com ar de tristeza,
você não acha? Eu até acho que prendo sua atenção com isso. Vivo achando
coisas. Por exemplo, ele informa ao Anísio Teixeira na tal carta de 1937, que
começou a escrever o livro em Sergipe e o finalizou na viagem ao México. As
cartas são coisas interessantes, você concorda? Ninguém escreve mais carta para
lugar nenhum, a não ser os bancos e suas cobranças disso e daquilo outro. Deixa
estar.
Li
quando adolescente Capitães da Areia, já disse. Li com uns treze anos de
idade, acho. Acho, pois não sou de marcar as datas e anos de minhas leituras, o
que me atentam à memória são as leituras e o que permeava o ar naqueles tempos
e aqueles assassinatos ficaram na minha cabeça aos dez anos recém completados
em 1993.
A
chacina da Candelária mexeu com muita gente e, tenho certeza, sabe?, que por
isso a professora de Literatura colocou esse livro denso na lista anual de sugestões
de leitura para a antiga Oitava Série Ginasial. Não era obrigatória a leitura,
não fazia parte do currículo dos quatro livros que deveríamos ler naquele ano.
Mas ela sugeria, deixava lá uma listinha. Peguei na biblioteca comunitária da
minha cidade – havia uma biblioteca comunitária – e li. Um tio meu, se me
recordo bem, tinha um exemplar também e eu o já havia visto pela estante e sei
que ele leu, ele lia muito e de tudo. Quem gostava de leitura já havia lido Capitães
da Areia, que eu chamava com o de no lugar do da. Demorei
muitas vidas para entender o motivo do da Areia, acho que no
presságio de ver a areia e o mar e fotografar o livro na solidão do areal
aprendi que melhor e mais correto era mesmo Capitães da Areia e não “Capitães
de Areia”. Percebi isso enquanto focalizava a câmera para a minha fotografia.
Entendi
melhor também as imagens, a poesia nua e a denúncia clara de que a literatura
para ser bela não precisa mascarar a verdade. Ela precisa ultrapassar gênero,
raça, cor, credo e ela ainda precisa ser assim, mas acho que está se perdendo
pelo medo, pelos medos, pela confusão de medos e de lados. A literatura precisa
doer, trazer dor tanto quanto alento. Pois a vida é no fundo essa luta
constante pelo pão e sobrevivência e se há algum humor aqui ou ali nesse livro,
se há as gargalhadas dos capitães da areia... Isso tudo é para nos lembrar
justamente que a vida é luta. Luta que se ganha, mas que no fim, não adianta,
se perde.
Claro
que há passagens amareladas pelo tempo. Fervoroso comunista nos seus romances
iniciais, filho rebelde de um coronel do cacau, Jorge Amado tinha suas utopias,
mas, ora, e quem não as tem? Mas só um calhorda para não enxergar a beleza que
é doutrinada por essa literatura da ação. E isso traz tanta coisa interessante
na escrita desse escritor baiano.
O
suicídio, que tenho observado de perto, traça uma linha como uma constante via
nesses romances iniciais de sua carreira, nem que seja mascarado num mergulho
eterno em busca de Iemanjá, tanto quanto sua denúncia sobre as mazelas da vida
e a esperança no socialismo como solução maior que o mergulho profundo nas
águas de Iemanjá. Não posso dizer que o primeiro aspecto perdurará nas demais
obras – nossa conversa ainda será longa e a maré, tanto quanto a areia da praia
nunca estão no mesmo lugar, nunca ficam da mesma maneira como as deixamos no dia
anterior. As mazelas, sim, continuam como denúncia, com um humor mais constante,
mais vivo, numa invenção de inversão da Bahia que, cada vez mais será Salvador
de maneira mais clara ao mundo, chegando até a confundir esse mundo que é a
Bahia com sua capital que é Salvador. O socialismo também, pois não é preciso
se manter filiado ao antigo e verdadeiro partidão para manter em si a ideologia,
mesmo que não mais a utópica como nos cânones. Explicando isso são melhores analistas
que eu os livros deixados por Eric Hobsbawm, Perry Anderson, Terry Eagleton,
Carlos Astarita, Jacob Gorender, Ciro Flamarion Cardoso, Emília Viotti da
Costa, Anita Leocádia Prestes, entre tantas reflexões, tantas e tantas mais que
já nem sei quais são quais e o que li. Não entrarei em pormenores nessa
conversa, preciso beber alguma coisa. Mas os remédios não permitem, a
preocupação não permite e minha fraqueza diante da vida, vendo a força diante
da morte de uma Dora preparada para o derradeiro final com seus amigos olhando
perdidos dentro de si... tudo isso não me permite descanso para a mente, só me espero
como cinza um dia espalhado, o vento levando, pois a nenhum lugar pertenço mais
e menos me sinto pertencente que não seja a solidão.
Dos
meninos dos trapiches lá do areal, de um Pedro Bala, um Professor, João Grande,
o Sem-Pernas, Gato, o Volta Seca ou Pirulito... Estou longe o mais profundo em
tudo desses personagens que com certeza ainda zanzam por aí. Estou longe em
tudo: história, vida, sofrimento, sobretudo, da força que cada um carrega. Pois,
eu estou dizendo: não se engane você, existem por aí muitos deles resistindo e
dando gargalhadas. Dos meninos capitães do romance de Jorge Amado, eu sou areia,
não sirvo nem para construção de um trapiche.